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Um velho médico japonês que sobreviveu a Hiroshima

Um médico hibakusha [palavra japonesa para “Sobrevivente da Bomba A”] de 95 anos continua a chamar a atenção para os perigos e a brutalidade da bomba.

O Japão continua sendo (pelo menos até a data desta postagem) o único país do mundo a ter sido vítima da bomba atômica. Desde que os demônios caíram sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki 67 anos atrás, o país continua a sofrer silenciosamente com as repercussões. Um médico hibakusha
[palavra japonesa para “Sobrevivente da Bomba A”] de 95 anos continua a chamar a atenção para os perigos e a brutalidade da bomba. Seu nome é Shuntaro Hida. Em 1º de agosto de 1944, um ano antes da bomba cair na cidade, Dr. Hida foi transferido para o hospital do exército de Hiroshima como médico militar. Ele experimentou o impacto da bomba a seis quilômetros de distância do epicentro, e desde então viu tudo que há pra se ver como médico especializado no tratamento das vítimas da bomba atômica. O Dr. Hida conhece os efeitos da bomba não só da perspectiva de alguém que estava realmente lá, mas também do ponto de vista especializado de um médico do exército. Não é surpresa então que quase seis mil pessoas com doenças causadas por radiação no Japão e em todo mundo tenham procurado por sua ajuda. Mas o que aconteceu de fato naquele dia fatídico em Hiroshima? A VICE conversou com o Dr. Hida, que se lembra de cada detalhe dessa experiência.

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VICE: Como você conseguiu evitar ser atingido diretamente pela bomba apesar de estar em Hiroshima naquele momento?
Dr. Shuntaro Hida: Eu estava cochilando no meu futon na noite anterior ao bombardeio de 6 de agosto, quando alguém me chacoalhou para que eu acordasse. Era um idoso que veio da vila de Hesaka, que fica alguns quilômetros de distância de Hiroshima. Sua neta tinha uma doença na válvula cardíaca e tinha convulsões com frequência, então eu ia sempre para a vila para ver como ela estava. Naquela noite, ela tinha tido outra convulsão, então subi na traseira da bicicleta do velho e fomos até a casa dele. Isso significa que saí de Hiroshima bem a tempo. Fui exposto à radiação, mas de uma distância de uns 5 quilômetros do epicentro.

Você realmente viu o momento em que a bomba atômica caiu?
Sim, vi. Acho que sou a única pessoa que realmente viu isso com os próprios olhos e depois escreveu sobre a experiência, porque a maioria das pessoas em Hiroshima morreu no instante em que viu o brilho do flash de luz.

Me deixe explicar como vi a bomba. Passei a noite na casa do idoso depois de cuidar da neta dele. Na manhã seguinte, decidi dar a ela um sedativo antes de voltar para o hospital, porque se ela acordasse e começasse a chorar, podia acabar tendo outra convulsão. Tirei uma pequena seringa do bolso, virei para cima e empurrei o líquido para deixar o ar sair. De repente, vi um avião voando sobre Hiroshima bem na minha frente.

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Devia ser o Enola Gay. O que você viu quando a bomba atingiu Hiroshima?
A primeira coisa que vi foi a luz. Era tão brilhante que fiquei momentaneamente cego. Simultaneamente, fui cercado por um calor intenso. A bomba liberou uma onda de calor de 4 mil graus no momento em que tocou o chão. Entrei em pânico, cobri meus olhos e deitei no chão. Eu não conseguia ouvir nenhum barulho e as árvores não estavam farfalhando. Achei que alguma coisa estava acontecendo, então olhei cuidadosamente pela janela de onde eu tinha visto o flash de luz. O céu estava azul, nenhuma nuvem à vista, mas havia esse anel vermelho de fogo bem alto no céu sobre a cidade! No meio do anel havia uma grande bola branca que continuava crescendo como uma nuvem de tempestade, bem redonda. Ela continuou crescendo e crescendo até que finalmente tocou o anel de fogo exterior, e aí a coisa toda explodiu numa grande bola de fogo vermelha. Era como se eu estivesse testemunhando o nascimento de um novo sol. Era tão perfeitamente redondo! Quando eu era criança, vi o monte Asama entrar em erupção de muito perto, mas isso foi muito mais completo. As nuvens eram brancas, mas brilhando em cores do arco-íris enquanto se levantavam. Era muito bonito. As pessoas chamam isso de “cogumelo atômico”, mas na verdade é um pilar de fogo: a parte de baixo é uma coluna de chamas e a parte de cima uma bola de fogo, que se transforma em nuvens conforme vai subindo.

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Então, abaixo da coluna de fogo, nuvens negras começaram a se espalhar horizontalmente sobre as montanhas que cercam Hiroshima. Elas consistiam de areia e pó que se levantaram do chão devido à pressão gerada pela explosão. Elas vinham na minha direção como um maremoto. Estávamos numa colina e havia um penhasco perto da gente, mas no momento seguinte a nuvem de poeira se arrastou pra cima. Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, a casa do velho foi engolida e esmagada pela onda. Felizmente o teto de palha funcionou como uma almofada, salvando a mim e a criança. Foi aí que percebi que alguma coisa horrível tinha acontecido e voltei correndo para o hospital em Hiroshima com a bicicleta do velho.

Qual foi a primeira vítima humana da bomba que você viu?
Encontrei a primeira vítima no meio do caminho para Hiroshima. Uma coisa preta surgiu do lado da estrada de repente, balançando instável. Eu não tinha ideia do que era aquilo. Diminuí a velocidade, me aproximei pouco a pouco e percebi que era uma pessoa.

Tentei olhar para o rosto, mas não havia um. Só duas bolas inchadas onde os olhos deveriam estar, um buraco onde era o nariz e os lábios estavam tão grandes que cobriam metade do rosto. Era horrível. E havia essa coisa coisa preta que parecia uma manga presa no braço, então inicialmente pensei que a pessoa estava usando trapos. Eu estava tentando entender aquilo quando a pessoa começou a se mover na minha direção. Minha primeira reação foi me afastar. Mas aquilo tropeçou na minha bicicleta e caiu. Sendo médico, eu imediatamente me aproximei para tentar tomar o pulso. Mas a pele do braço inteiro tinha escorregado e não havia nenhum lugar onde eu pudesse tocar.

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Percebi que a pessoa não estava usando trapos, estava inteiramente nua. O que achei que era uma manga na verdade era a pele que se desprendeu do corpo e ficou pendurada. A pele que tinha caído também queimou e se desprendeu completamente, e havia dezenas de pequenos cacos de vidro perfurando sua superfície. A pessoa se contorceu algumas vezes, e depois ficou completamente imóvel. Estava morta.

Essa é uma imagem muito chocante. Você se deparou alguma outra cena tão forte?
Sim. De algum jeito consegui chegar ao hospital, mas havia um grande incêndio e não consegui entrar. Pensei sobre a situação e decidi que como eu era médico e continuava vivo, o melhor a fazer era voltar para a vila. Hesaka é a vila mais próxima de Hiroshima, então todos os evacuados com certeza iriam para lá e eu provavelmente deveria tratar os feridos. Passei mais três horas subindo pela estrada ao longo do rio até chegar à escola primária da vila. Olhei ao redor do pátio. Estava pontilhado de pessoas carbonizados caídas no chão, como se alguém tivesse semeado elas ali. Umas mil pessoas deviam estar na escola no momento da explosão. Três outros médicos do exército se reuniram na escola, então discutimos qual seria nosso curso de ação. Mas as vítimas estavam todas severamente queimadas e em condições críticas. Não havia muito que pudéssemos fazer. O que fizemos naquela noite foi separar os mortos dos vivos entre as mil pessoas que estavam ali no chão, e começamos a limpar seus corpos.

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Enquanto fazia isso, os hibakusha olhavam pra mim. Fiz o melhor que pude para evitar contato visual. Mas então acidentalmente olhei nos olhos de alguém e senti que tinha que continuar e fingir que estava tratando deles. Conforme me aproximei, ele me encarou com os globos oculares, um olhar horrendo. As pessoas que estavam morrendo não tinham absolutamente nenhuma ideia do que tinha acontecido com elas, então tinham esses olhos bestiais. Já viu os olhos de um porco sendo abatido? É assustador, concorda? Essa pessoa me encarava com esse mesmo olhar. Isso continua me assombrando nos meus sonhos até hoje. Todo ano, perto do dia 6 de agosto, sonho com esses olhos várias noites seguidas. Nunca mais quero vê-los, mas eles continuam me assombrando. A impressão que eles deixaram é muito forte.

Quando você começou a tratar os hibakusha sobreviventes?
Na terceira manhã após a bomba, foi quando finalmente pudemos começar a tratar aqueles que achamos que poderiam sobreviver. Foi quando descobrimos os efeitos agudos da radiação. Primeiro, as vítimas apresentavam uma febre alta de mais de 40 graus. Era tão alta que achamos que os termômetros tinham quebrado. E quando tentamos nos aproximar de seus rostos, percebemos que eles tinham um mau hálito inacreditável. Era quase impossível chegar perto deles. Acho que em termos médicos esse cheiro é descrito como uma combinação de necrose e decomposição. Quando olhávamos dentro das bocas deles, tudo estava completamente preto. Como as células brancas do corpo morreram, as bactérias da boca se multiplicavam profusamente. E como não havia mais nada para proteger a parte interna da boca, ela começava a apodrecer muito rápido sem passar pelos estágios da inflamação ou formação de pus. Era desse apodrecimento que vinha o cheiro. É um cheiro que só os médicos que passaram por isso conhecem.

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Dr. Higa em 1942, três anos antes da bomba.

Depois, manchas vermelhas começaram a aparecer na pele que não estava queimada. Em termos médicos chamamos isso de púrpura, e elas geralmente se formam logo antes da morte de um paciente com doença sanguínea, como leucemia. Fiquei surpreso quando descobri isso nas vitimas, já que não tinha ideia de por que essas manchas estavam aparecendo. Depois disso, o cabelo todo caía, como se a cabeça tivesse sido varrida com uma vassoura. A radiação geralmente mira nas células saudáveis, então as raízes do cabelo são as primeiras a ir. Os sintomas finais eram vômito com sangue, hemorragia pelos olhos, nariz, ânus e órgãos reprodutivos. As vitimas só duravam mais algumas horas depois disso. Nesse ponto, todos estávamos extremamente assustados, porque ninguém sabia o que estava causando tudo isso.

Você disse que também foi exposto à radiação? Você apresentou algum sintoma?
O sintoma predominante que experimentei é que meus ossos envelheceram muito rápido. No momento, minha espinha está em péssimo estado. Tive problemas lombares depois de ser exposto à radiação e fui submetido a cirurgias muitas vezes. No pior momento eu me arrastava no chão por causa da dor. Mas o envelhecimento parou quando eu estava com 80 anos, quando comecei um tratamento que consistia em andar por uma piscina. No Dia da Bomba Atômica passado, andei por Hiroshima e Nagasaki sem minha bengala. Mas o maior medo que um hibakusha enfrenta é que a ansiedade que sentimos se torne câncer um dia. Não podemos planejar nossas vidas como todo mundo. Quando nos matriculamos na escola, quando casamos, quando temos filhos, constantemente temos que enfrentar essa ansiedade. Nos roubaram nossos direitos humanos. E não só tivemos violado o nosso direito de viver como seres humanos, como também somos forçados a viver com o conhecimento de que um dia inevitavelmente vamos desenvolver algum tipo de doença como resultado direto de termos sido expostos à bomba. Mas não sabemos quando exatamente isso vai acontecer, então, até lá, temos que viver com medo. Mesmo se processássemos nosso país nos tribunais e recebêssemos dinheiro, isso não resolveria nada. Dinheiro não pode comprar de volta os 63 anos que vivi em sofrimento.

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