FYI.

This story is over 5 years old.

cenas

Existe mesmo o vício da pornografia?

Alguns especialistas defendem que se trata apenas de uma crença popular e que não se deve tratar as pessoas como "viciados".

Fotografia por Jamie Fullerton.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

Dois homens. Um desejo enorme de se masturbarem enquanto vêem pornografia na Internet. No entanto, apenas um destes homens é "viciado em pornografia".

"Vejo pornografia diariamente e acho que a minha colecção de vídeos ocupa uns sete terabytes, divididos entre vários discos rígidos e dispositivos", conta Ben. E acrescenta: "Estou plenamente consciente de que me masturbo e vejo mais pornografia do que a média e, honestamente, não te sei dizer porquê. Acho que acontece porque me estreei nisto do sexo mais tarde do que muitos dos meus colegas e comecei a ver a pornografia como a única maneira de explorar a minha própria sexualidade".

Publicidade

Sete terabytes é muita pornografia acumulada, especialmente tendo em conta que estamos em 2015 e existem literalmente milhões de vídeos que podes ver online. Mas, fará isto com que Ben seja um viciado em sexo? Não, ele diz que não.

Mark (nome fictício) também acha irresistível a pornografia da Internet. Mesmo no trabalho, tem de se conter para não ver porno. Mas nem sempre é bem-sucedido. Pouco antes do Natal, um colega viu o seu monitor cheio de badalhoquices e Mark passou o resto dos dias a ver se era ou não despedido. Desta vez conservou o emprego, mas decidiu procurar ajuda. "Sou viciado em pornografia", admite.

Assim como o vício sexual - muito na moda entre as celebridades -, o conceito de vício em pornografia tem atraído muitas críticas. No seu novo livro Sex Addiction: A Critical History, os académicos neozelandeses Barry Reay, Nina Attwood e Claire Gooder garantem que o vício da pornografia é um mito, um produto do "oportunismo social, o diagnóstico amorfo, o auto-interesse terapêutico e a aprovação cultural popular".

Reay argumenta que existem muito poucas bases científicas para se qualificar como vício o gosto pela pornografia. Por outro lado, a atitude negativa da nossa cultura em relação ao sexo, as armadilhas publicitárias à distância de um clique e a florescente indústria terapêutica, juntaram-se para inventar uma condição extravagante e assustadora.

Mark e outra centena de homens (poucas mulheres procuram tratamento para o vício em pornografia), no entanto, não estariam de acordo. Um programa de recuperação ("Kick Start Recovery Programme"), criado pela britânica Paula Hall, especialista no vício em pornografia, tem mais de 11 mil utilizadores.

Publicidade

No Centro de Marylebone de Terapia Psicológica, que é o organismo de tratamento para viciados em pornografia e em sexo mais antigo do Reino Unido, dispararam as inscrições de pacientes ao longo dos últimos cinco anos. Foi aí que Mark procurou tratamento, sendo um dos 600 homens que o Centro ajudou com o seu programa de 12 semanas, com base na terapia conversacional. Não houve nenhum estudo de acompanhamento para avaliar a eficácia desta terapia, mas o director clínico do Centro, o psicoterapeuta Thaddeus Birchard, garante que os grupos de ajuda demonstram que funciona. Birchard não tem dúvida de que o vício em pornografia é real.

"É uma forma de vício sexual", ele explica. E acrescenta: "Isto é delimitado através de quatro critérios: comportamento fora de controlo, dificuldade em deixar, não pôr fim a este comportamento apesar das consequências adversas e uma função anestésica associada a ele. Um dos problemas quando se fala de vício em pornografia, ou em sexo, é que tudo é muito subjectivo. A única pessoa que pode realmente dizer se estás viciado em pornografia és tu".

É a imprecisão destas definições que torna este estilo de dependência vulnerável aos ataques. Birchard enfatiza que a maior parte dos seus pacientes sofrem de angústia, o que, seguramente, os torna merecedores de ajuda. No entanto, a "culpa" - um conceito sem sentido se não for dentro de uma cultura especifica - é uma palavra que surge continuamente e os efeitos negativos são susceptíveis de incluirem a desaprovação da companheira, ou do companheiro. Curiosamente, de acordo com um estudo recente, as pessoas religiosas são mais propensas a acreditar que estão viciadas em pornografia".

Publicidade

"Uma das fraquezas do conceito de vício em sexo, ou em pornografia, é determinar o que é que constitui essa angústia", diz Reay. E adianta: "É uma medida muito distorcida. Esta decisão não pode ser deixada nas mãos do indivíduo, mas, uma vez que existe algum tipo de critério, quem é que pode decidir o que constitui um consumo excessivo de pornografia?".

Reay acredita que "o vício em pornografia" é um produto cultural que procura simplificar questões complexas. Os relatórios categóricos sobre o vício em pornografia estão bastante difundidos nos meios de comunicação social. Isto, segundo Reay, "cria um envolvimento cultural, onde conceitos simples e incontestáveis, como o vício em sexo, ou em pornografia, são de fácil explicação para qualquer transtorno de comportamento sexual".

Birchard questiona isto e afirma que não existem provas de que o vício em pornografia seja um problema físico. A neurociência é o apoio favorito quando se quer suportar estas alegações. Alguns estudos parecem demonstrar que a compulsão sexual pode causar mudanças físicas no cérebro, deixando a marca do vício. No entanto, nem tudo pode ser analisado. Houve algumas investigações com ratos e as poucas que têm sido feitas em seres humanos têm sido com grupos muito pequenos (oito homens, neste caso), o que reduz a fiabilidade dos resultados.

O professor David Ley, que encabeça as críticas às teorias do vício em pornografia, atacou sem piedade as fraquezas desta pesquisa, que, afirma, está "cheia de projectos experimentais muito pobres, um rigor metodológico limitado e uma nítida falta de especificação do modelo".

Publicidade

Em teoria, as pessoas podem tornar-se "viciadas" em qualquer coisa: em ganhar dinheiro, em conversar ou em tabletes de chocolate.

O conceito de dependência de pornografia e as suas formas de tratamento estão claramente englobadas num quadro moral específico. Birchard explica que "as mulheres são propensas a terem dependência dos relacionamentos e os homens, do sexo", que " as mulheres praticam sexo para terem relações e os homens têm relações para praticarem sexo" e que os homens são "atraídos", enquanto as mulheres são "atraentes".

Mas, talvez todo este debate fique em segundo plano se pensarmos que as pessoas procuram ajuda porque se sentem infelizes. É válido para ti estares feliz a masturbares-te 10 horas por dia, mas o que acontece às pessoas que não o são?

O psicoterapeuta Ash Rehn explica: "Não me sinto qualificado para dizer se a dependência de pornografia é, ou não, 'real'. As pessoas que me consultam sobre a sua relação com a pornografia estão numa posição muito melhor do que eu para julgar se é algo real para eles, ou não. O que está claro é que existem pessoas que se encontram a fazer grandes esforços para impedirem, ou limitarem, o seu próprio consumo de pornografia".

No entanto, Rehn diz que o foco extremo no "vício em pornografia" pode implicar a não observação dos problemas subjacentes. "Se um terapeuta fizer isso, corre o risco de perder o propósito original ou a relevância do uso da pornografia pelo seu paciente", diz.

Em teoria, as pessoas podem tornar-se "viciadas" em qualquer coisa: em ganhar dinheiro, em conversar, ou em tabletes de chocolate. Muitas vezes, um comportamento compulsivo indica outros problemas de saúde mental. Num estudo com homens "viciados em sexo", 62 por cento tinham um histórico de depressão grave e quase todos tinham uma história de abuso de álcool, ou mesmo alcoolismo, enquanto outros apresentavam transtornos obsessivo-compulsivos e fobia social.

Nada disto significa que as pessoas como Mark - incapazes de se afastarem do PornHub num dia de trabalho - não tenham um problema, ou que se lhes deva negar ajuda. A questão é: estamos a ajudá-los ao coniderá-los viciados? Porque é que só surgem teorias em redor dos vícios associados à culpa como comida, sexo, ou jogo? Não conheço ninguém que esteja preocupado com o seu vício em leitura, ou em música.

@frankiemullin