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Mundo vs Representação

Tudo começou quando liguei a televisão da cozinha. Enquanto comia o Ricardo Salgado respondia no Parlamento.

"Se queremos que as coisas permaneçam como estão, tudo deve mudar" disse Tancredi Falconeri a D. Fabrizio Salina em Leopardo (1963) de Luchino Visconte.

Nesta última semana tenho andado interessado nos desenvolvimentos do caso BES. Não por motivos pessoais, nem tampouco pelo jogo do detective (que tanto gostamos de jogar no sofá de nossa casa). Ele é seguir pistas, juntar peças, tirar conclusões, antecipar respostas, adivinhar desfechos… Confesso que é um jogo divertido, mas não foi isso que me fez colar à tv. O que me fascinou no escândalo da semana foi a semelhança da realidade com a ficção, aliás, um bom aviso legal seria: "qualquer semelhança com ficção é pura coincidência".

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Tudo começou quando liguei a televisão da cozinha, ao mesmo tempo que almoçava um "ganda" noodle do chinês. Enquanto comia o Ricardo Salgado respondia no Parlamento. A primeira coisa que me chamou a atenção foi a postura soberana e o discurso autoritário. A minha parte preferida é quando repete o que já disse antes, mas desta vez com voz de pai com pouca paciência, a dar uma entoação diferente às palavras chave, como se estivesse a sublinhá-las. Nesse momento não liguei muito ao caso, mas a sensação geral era que estava a ver o Leopardo da nossa praça a pôr os chacais todos com pantufinhas, todos na linha.

No dia a seguir vejo nas notícias que Ricardo Salgado cita um provérbio: "O leopardo quando morre deixa a sua pele. O homem quando morre deixa a sua reputação". E este foi o catalisador que despertou a minha curiosidade. Será coincidência? Será que é a ficção a invadir a realidade? Ou a realidade a invadir a ficção? Se o leitor achar que isto é só uma coincidência que deu origem a uma paranóia sem sentido, sugiro que pare de ler neste momento.

Não vou entrar em grandes tecnicismos judiciais, nem me atreveria, porque não sei. Pela mesma razão, também não atiro veredictos para o ar, porque acredito que seja um problema sistémico, que vai para além da responsabilidade deste ou daquele elemento. E com isto não quero dizer que não há responsáveis. Mas voltando ao assunto. Não era a primeira vez que sentia este tipo de similitude – realidade/ficção - e por isso tentei lembrar-me em que outra situação já tinha visto este filme. Tinha sido no caso BPN, quando Luís Caprichoso, supostamente braço direito de Oliveira e Costa, vai responder em tribunal (com um chapéu fedora, à gangster de Hollywood).

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Lembro-me de pensar, nessa altura, qual seria a ideia. Obviamente que aquele dia não era um dia qualquer. Aquele era o dia em que estaria presente em tribunal, como arguido num caso de crimes financeiros, onde alegadamente, era o mandante das operações que deram origem ao "buraco" do Banco. Conhecia certamente as razões pelas quais era acusado, sabia que a comunicação social estaria presente, e também que a expressão "bankster" começava a ser usada de forma corriqueira. É uma coincidência? Foi um pormenor que escapou a toda a gente próxima dele, no dia em que era preciso estar atento a tudo?

Voltando ao BES. No último episódio, José Ricciardi, primo de Ricardo Salgado, que estava à frente do não sei quê investment, subiu ao palco e veio dizer que, não só já tinha avisado, como tentou demover Salgado, mas no dia da votação foi traído por todos os seus apoiantes e ficou pendurado. Isto não é de um filme qualquer? Isto acontece? É real? É curioso como a imprensa, os deputados e toda a pandilha saltaram logo para este carrossel. Enfim, já está tudo bem, já descobrimos o bom da trama. O que, contra tudo e contra todos, lutou pelo que é certo e justo. É o Zorro, aí vem ele a cavalo, agora é que vai ser, está tudo safo, com o novo herói do novo banco. Tinha de acabar tudo bem, não fosse a malta começar a perguntar-se se vale a pena manter um sistema que, cada vez mais, parece não funcionar.

Neste momento estou cada vez mais aberto à hipótese de isto ser tudo uma simulação, um RPG, em que temos de escolher um avatar para poder jogar. Sondei a minha gente mais próxima, quis certificar-me de que não estava a ficar maluco, e a verdade é que ninguém acredita que estas coisas sejam coincidência. Um deles, assim com um olhar de quem está farto de saber onde quero chegar, disse: "é a paródia". Outro ouviu tudo com atenção e depois fez de Coronel Kurtz: "The horror… the horror", ri-me. Mas a maior parte acha que estas representações são "tripes" de ego fora de controlo, misturado com algum regozijo na personagem que estão a representar.

No decorrer deste censos, uma pessoa falou-me no Teorema de Thomas. Esta teoria explora a ideia de que as nossas impressões subjetivas são projetadas na realidade, quando uma impressão, apesar de não ser verdadeira, é a energia mais presente, a mais partilhada. Então essa passa a ser a nova definição da realidade, e toda a gente adequa a sua conduta a essa nova situação, ou seja, torna-se uma profecia auto-realizada. Esta abordagem foi curiosa, ou pelo menos, a mais interessante. A energia que pomos no universo faz ricochete e volta como consequência. Desde então tenho reparado nessa dinâmica, sempre que vou à cozinha fazer um preparado do "arrebimba o malho", e ligo a tv. Desde os da casa dos segredos a representarem-se a si próprios, ao careca do "shark tank 2" a fazer uma imitação do Mr. Burns, passando pela jornalista que tira os óculos quando vai dizer uma coisa que acha importante… enfim, é a paródia.

Talvez seja uma consequência deste novo mundo, em que cada vez se usam menos palavras e cada vez mais ecrãs, talvez seja um novo paradigma, em que a realidade e a ficção tem uma relação mais bidirecional, talvez seja uma dificuldade em distinguir realidade de ficção, num mundo cada vez mais psicotrópico, onde está toda a gente a enfardar comprimidos para se sentir bem, talvez seja eu a ter um episódio psicótico, talvez seja o LSD que voltou a bater passados estes anos todos, talvez neste momento alguém esteja a olhar para ti sem tu saberes.