Um LRAD é um dispositivo acústico de longo alcance, um alto-falante portátil poderoso, criado para assustar pessoas com sons, e está se tornando cada vez mais popular entre policiais. É frequentemente descrito por críticos como um canhão de som, oferecendo ao usuário "a habilidade de lançar comandos verbais claros e autoritários, seguidos de tons dissuasivos potentes".
Um modelo popular, o LRAD-100X, foi utilizado em Ferguson, e em dois dias de dezembro, foi usado para afastar manifestantes que protestavam na cidade de Nova York por conta da morte de Eric Garner. Segundo o fabricante, o LRAD proporciona a policiais "intensificação quase que instantânea em todo o espectro da força de proteção".
Que som seria esse?
Diferente de alto-falantes convencionais, que usam eletromagnetismo para vibrar um diafragma e amplificar o som, o LRAD usa transdutores piezoelétricos para concentrar e direcionar energia acústica. Transdutores internos e externos se curvam e vibram para produzir ondas sonoras que não saem completamente em sintonia. Esse efeito gera ondas sonoras que cancelam as demais ondas do exterior do feixe, e também produz um som que é mais "plano" que o normal, com dispersão mínima enquanto se propaga. As ondas sonoras do LRAD também interagem com o ar, criando frequências adicionais dentro da onda, ampliando assim o som e o tom. Isso permite com que comandos de voz — pré-gravados e tocados em seu MP3 player interno, ou ditos por um policial em um microfone — a certo volume sejam inteligíveis a 600 metros de distância.
O "modo de alerta" da máquina é seu atributo dissuasivo. Imagine pressionar a cabeça contra o capô de um carro enquanto o alarme soa. Danos permanentes de audição começam com sons sustenidos acima de 90 dB SPL — por exemplo, o barulho de um trem do metrô a 60 metros de distância —, mas você só sente dor imediata a partir dos 120 decibéis, volume de um tiro. A 160 dB — volume um pouco mais baixo do que um lançamento de foguete — o tímpano arrebenta.
Os tons do LRAD podem alcançar até 152 decibéis — isto é, de 20 a 30 dB mais alto do que um megafone —, o que facilmente pode causar danos permanentes de audição. É uma sirene que faz a expressão "de estourar os ouvidos" deixar de ser metáfora.
Durante protestos no centro de Manhattan, semana passada, uma sirene LRAD dispersou as pessoas. Créditos: Moth Dust
ESTOU PREOCUPADA COM OS DANOS QUE O DISPOSITIVO CAUSOU E QUE PODERIA CAUSAR CASO FOSSE UTILIZADO NOVAMENTE.
A SENSAÇÃO
"Ao vivo, primeiro pensei que fosse apenas um alarme de carro agudo, bem alto", Anika Edrei, fotojornalista que estava documentando os protestos sobre Eric Garner, me contou. Na madrugada do dia 5 de dezembro, Edrei estava apenas a dez metros de um dispositivo LRAD quando a NYPD ligou sua função de alarme. "Era muito alto — dava para escutar através dos dedos."
Edrei disse que os manifestantes já estavam se dispersando na Rua 58 quando qualquer coisa se espatifou no chão. "A polícia tomou isso como uma ameaça violenta", contou. Foi quando ligaram a sirene.
Depois, "durante a semana seguinte, tive uma enxaqueca, e senti muita pressão facial", disse. "Desde o incidente com o LRAD, tenho medo de voltar", acrescentou. "Estou preocupada com os danos que o dispositivo causou e que poderia causar caso fosse utilizado novamente."
"Parece que os tímpanos estão transbordando", o fotojornalista Shay Horse, que também estava por perto, contou à VICE News. "O dispositivo deixa o lado do corpo que foi atingido dormente e os sinos inflamados. Parecia que meus orifícios estavam sangrando. Ouvi o zumbido por uma semana."
A Força Policial de Nova York (NYPD) também usou a sirene na noite anterior. Um porta-voz da NYPD contou ao Times que o aparelho foi usado apenas para advertir pessoas de conduta ilegal, e que policiais foram treinados para controlar a intensidade do som, duração e distância. "No dia 4 de dezembro, todos esses fatores foram controlados em níveis que não são considerados perigosos ou prejudiciais", o porta-voz disse.
Numa carta escrita à NYPD, semana passada, advogados do Grêmio Nacional de Advogados (NLG) alegaram que a NYPD usou os dispositivos LRAD "a distâncias perigosas e volumes excessivos".
LRAD loop. Should the NYPD have military weapons designed to permanently destroy hearing? #EricGarner https://t.co/9HsAZyH1f3
— Keegan Stephan (@KeeganNYC) December 6, 2014
Elena Cohen, co-autora da carta para a NYPD e presidente da sucursal nova-iorquina do NLG, manifestou num e-mail preocupação com a questão das distâncias. "Ainda estamos determinando a que distância a polícia estava dos manifestantes quando o LRAD foi acionado. Como vocês podem ver nos vídeos abaixo, parece que estavam relativamente perto." Além do vídeo acima, ela anexou estes vídeos:
O LRAD apareceu nas ruas de Nova York pela primeira vez durante protestos em torno da "Convenção Nacional Republicana", depois que a NYPD comprou dois dispositivos por 35 mil dólares cada. (Eu estava cobrindo a convenção e testemunhei — um negócio preto, circular, do tamanho e formato de um bolo de aniversário gigante, montado num camburão.) Dispositivos LRAD também entraram em cena nos protestos do Occupy Wall Street. Mas até dezembro, não se tinha notícia do uso da sirene dissuasiva do LRAD em Nova York.
O primeiro uso notável do LRAD nos EUA foi nas ruas de Pittsburgh, em 2009, durante a reunião do G20. Karen Piper, professora de Inglês da Universidade do Missouri que estava estudando protestos acerca do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, estava a 30 metros de distância quando a polícia acionou a sirene LRAD, "sem aviso, gerando um som estridente, emitido durante vários minutos." Ela processou a cidade de Pittsburgh, alegando que o LRAD a deixou com náuseas e dores de cabeça e fez um fluido vazar de seu ouvido.
"Contrário a alguns relatórios", afirma o site da LRAD Corporation,"o dispositivo não gera a frequência de tons ultrabaixos necessários para causar náusea e desorientação." Mas o site também constata que "transmissões via LRAD foram otimizadas para o alcance de 1 – 5 kHz, em que a audição humana é mais sensível." Por fim, Pittsburgh pagou uma indenização de 72 mil dólares e concordou em desenvolver uma política de uso seguro para dispositivos LRAD.
Mas assim como no caso de outros aparatos militares tecnológicos que chegam a delegacias ao redor dos EUA — lançadores de granadas, camuflagem, tanques, rifles com mira, torpedos Sting Rays —, o conceito de "uso seguro" de um LRAD ainda é incerto. E mal há evidências de que outras delegacias, ou quaisquer outras pessoas, estejam praticando o uso dos LRADs com segurança.
A "ÁREA DE PERIGO EM POTENCIAL"
Além das preocupações sérias que essas máquinas levantam a respeito dos efeitos no corpo humano, críticos também questionam o que elas significam para a estrutura política de uma sociedade democrática. Essas questões são urgentes, em parte porque o uso do LRAD parece estar se espalhando.
Inicialmente, a tecnologia foi desenvolvida para o exército para afastar barcos durante o ataque ao navio USS Cole e desde então se tornou uma ferramenta para afastar carros e cidadãos indesejados no Afeganistão e no Iraque, deter piratas e manifestantesno oceano, ou espantar pássaros perigosos de pistas de aeroportos. LRADs já apareceram em delegacias de Nasvhille e San Diego (onde o dispositivo serve como "um meio de emitir advertências de segurança, avisos e outras notificações emergenciais, [e] de identificar e localizar pessoas perdidas/desaparecidas nos diversos desfiladeiros e montanhas do interior da Califórnia"), assim como na Guarda Nacional dos EUA e em operações das Forças de Defesa de Israel na Cisjordânia. Quando "O Grito", como locais o chamam, é acionado, o jornal Toronto Star reportou, "os joelhos perdem a sustentação, o cérebro dói, o estômago se revira e, de repente, ninguém sente vontade de protestar mais".
Uma série de empresas privadas de segurança possuem o LRAD e um deles entrou em cena na arena O2, em Londres, presumidamente para controlar multidões. Agora os LRADs são projetados para operar remotamente — o novo modelo é "endereçado via IP" — e têm sido colocados em barcos-drone. Em 2014, a LRAD Corporation recebeu uma série de pedidos milionários de clientes não identificados da Ásia e do Oriente Médio.
LRAD outside the O2 Arena, I guess it's in case the tennis fans get over excited. pic.twitter.com/J4klZZ2H
— Scumbly Blythe (@piombo) November 11, 2012
Em 2010, a Associação Canadense de Liberdades Civis escreveu uma carta para autoridades do governo antecipando o potencial uso do LRAD em torno das reuniões do G8 e do G20: "A introdução de qualquer nova arma no arsenal da polícia requer um processo de pesquisa científica objetiva sobre seus efeitos físicos a curto e longo prazo, discussões com o público que é alvo em potencial da arma e debates sobre a política de uso. Não basta confiar em pesquisas feitas pelo fabricante… Em termos práticos, novas armas como o LRAD não deveriam ser empregadas sem avaliações e estudos independentes prévios".
Há preocupações menos tangíveis também. Um alto-falante muito alto, ou "canhão de som", pode prevenir violência e poupar o uso de armas mais violentas como cassetetes e pistolas, mas críticos apontam que isso também pode nublar a linha entre manter a paz e dissuadir concentrações públicas. Nas mãos de uma unidade de controle de desordem, um LRAD detonando uma multidão logo passa a ideia de que cidadãos unidos em públicos por razões políticas é uma espécie de ameaça à segurança.
"Quando a polícia usa o dispositivo, não é como se estivesse mirando numa só pessoa", Gideon Oliver, advogado nova-iorquino, contou ao site Gothamist. "É indiscriminado, como o gás lacrimogêneo." Oliver foi um dos advogados que escreveu a recente carta de reclamação ao comissário da NYPD, solicitando mais detalhes sobre o programa. Um pedido anterior, ao abrigo Lei de Acesso à Informação, feito por Oliver em 2012, não constatou regras sobre o uso de LRADs. Outro pedido, ao abrigo da mesma lei, enviado às Forças Policiais de Boston em 2012 por Michael Morissey, do Muckrock, não obteve resposta efetiva.
O pedido de 2012 de Oliver à NYPD trouxe à tona um documento interessante: um relatório interno de 2010 sobre uma série de testes com LRADs, conduzida naquele ano. (Segundo o relatório, os resultados dos testes de 2004 estão "indisponíveis".)
NO ESTUDO DE 2012, A NYPD NÃO MEDIU OS DECIBÉIS DISTÂNCIAS MENORES QUE 100 METROS, ZONA QUE O RELATÓRIO CHAMOU DE "ÁREA DE PERIGO EM POTENCIAL"
Os testes de 2010 foram conduzidos em um estacionamento vazio, durante um dia frio de janeiro, pois supuseram que o inverno extremo manteria as pessoas em locais fechados. Os testes mediram os volumes do LRAD, de várias distâncias. A 245 metros, o volume do dispositivo era de 68 decibéis, mais baixo do que um tom de discagem de um telefone (80 dB), de acordo com o relatório. A 100 metros, 102 dB, tão alto quanto uma moto. As autoridades aparentemente não mediram os decibéis a distâncias menores que isso, zona que o relatório chamou de "área de perigo em potencial".
Os vídeos que emergiram de manifestações recentes em Nova York parecem mostrar o LRAD em ação a distâncias menores que essa, e com estouros mais longos do que as sugestões do fabricante.
"Ainda não recebemos respostas da NYPD", Cohen prosseguiu, "mas gostaríamos muito de saber que políticas de uso e treinamentos estão em curso para a aplicação do LRAD em Nova York, e se testes independentes foram feitos para avaliar os perigos para a saúde que um canhão de som na cidade representa". O Motherboard também pediu à LRAD Corporation para prover informações sobre que tipo de treinamento acompanha as vendas dos dispositivos, mas a empresa nunca retornou a solicitação.
Sobre uso adequado, um estudo conduzido pelo físico alemão Jürgen Altmann em 2008 oferece certa clareza (ênfase minha):
No modo de alerta, o LRAD produz níveis de pressão sonora prejudiciais à audição de alvos que estiverem desrprotegidos e forem expostos ao som por um intervalo de tempo mais longos do que os seguintes períodos: alguns segundos a 50m de distância; 1,5 minuto a 100m. A menos de 5m de distância, qualquer exposição pode produzir danos permanentes à audição.
Um relatório da polícia de Toronto advertiu contra o uso do volume máximo do LRAD a distâncias menores que 200m, e acrescentou: "Seria de bom tom não operar os LRADs se houver transeuntes a 10 metros dos dispositivos."
Forças policias defendem o aparato como uma maneira fácil de controlar comportamentos criminosos sem o uso de balas ou cassetetes. "Independente de como foi descrito pela mídia", o major Joe Schrantz escreveu para a publicação Army Lawyer, "quando usado para seu devido propósito, o LRAD não é uma arma. É uma ferramenta de comunicação legal para uso em ambientes operacionais complexos", onde pode salvar vidas.
Uma Longa História, Sem Padrões Claros
Suzanne Cusick, professora de Música da Universidade de Nova York que estuda violência acústica em guerras, recentemente contou a Brian Anderson que não há uma convenção internacional comum a respeito do uso de armas sonoras, embora várias organizações de direitos humanos pressionem para que haja. A Administração de Segurança e Saúde do Trabalho dos EUA propõe diretrizes, mas, relata Cusick, falta especificidade. "O volume precisa ser correlacionado ao intervalo de tempo que uma pessoa é exposta ao som", assim como à distância da fonte.
Em alguns lugares, a arma sonora é um LRAD; em outros, pode ser uma boombox gigante. Em Camp Romeo, uma área de punições dentro de Guantánamo, foram autofalantes enfileirados em frente à cela de um prisioneiro. O Black Sabbath foi militarizado para tentar retirar Manuel Noriega da Embaixada do Vaticano e canções de Natal e cânticos tibetanos foram usados com o Ramo Davidiano em Waco. Na prisão americana secreta conhecida como "Cova de Sal", no Afeganistão, foi um ruído branco quase contínuo.
O uso de sons como arma, que pode ter surgido no Terceiro Reich ou na CIA — ou como instrumento de dissuasão, segundo a terminologia daqueles que mantêm a paz —, levanta novas questões interessantes. Quão alto e quão longo e quão perto do ouvido humano devem ser aplicados os sons? Quem mais, além do exército e da polícia, usará os dispositivos, e com que finalidade? O Departamento de Defesa detém os direitos autorais da banda industrial Skinny Puppy para usar sua música com detentos de Guantánamo? Que tipo de efeito colateral será considerado aceitável, a velha questão de proporcionalidade e — de novo — que políticas de uso estão em curso para prevenir acidentes ou abusos quando a polícia estiver brincando com os brinquedos novos? E o que esse tipo de poder fará com a democracia?
O relatório da Army Lawyer termina apontando que:
"Um usuário pode, no entanto, empregar o LRAD inadequadamente para causar dor intencional. Quando isso acontece, o LRAD deixa de ser um dispositivo de comunicação e passa a ser uma arma não letal. Contudo, o LRAD foi projetado para ser usado como um dispositivo de comunicação, não um 'arsenal', 'arma' ou 'canhão de som' para 'inflingir dor ou até surdez permanente', mas mesmo em caso de uso inadequado como arma não letal, o LRAD está de acordo com a lei da guerra, pois o 'desconforto' que pode causar 'está aquém de danos permantentes ao ouvido' e não excede o 'limiar de lesão supérflua ou sofrimento desnecessário'.
A cientificidade do último trecho está bem vaga, assim como a ideia do parágrafo todo. O artigo da Army Lawyer mal cobre o uso potencial do LRAD em relação ao propósito do dispositivo. São duas noções bem diferentes, mas separadas por uma linha tênue — que, por ora, está invisível. Manter a paz é importante, mas é uma questão de delicadeza. Quão difícil é ser delicado com uma máquina que permite, conforme o fabricante assinala, "intensificação quase que instantânea em todo o espectro da força de proteção"?
Até o público ouvir uma articulação (de preferência, não muito alta) sobre como a polícia e outras forças estão usando ferramentas como esta, manifestantes em frente a LRADs podem recorrer a um mecanismo de defesa bem básico, um instrumento que soa como uma metáfora para uma política definida por ruídos: tampões de ouvido.
Tradução: Stephanie Fernandes