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vice

Tinha sete anos quando descobri o meu primeiro herói espacial

Da BD para a imortalidade, passando pelo ZX Spectrum.

É uma tira do

Dan Dare

, mas podia ser o Milhões de Festa pelas quatro da manhã.

Entre as memórias que guardo de puto, existe uma que me ocorre com especial lucidez: ouvir do meu pai a frase “isto é muito pesado para ti”, seguida de um dedo no stop do vídeo ou no botão que desliga a televisão. A situação repetia-se quando a cara do vilão nazi começava a derreter no primeiro

Indiana Jones

, ou quando

Highlander

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Os Imortais

colocava o Christopher Lambert em trajes menores e pronto para mostrar a espada medieval à sua paixão da era moderna. Os dois excertos parecem hoje completamente inofensivos (o segundo é até mesmo risível), mas estávamos em 1986, um ano em que tudo era mais “pesado”, porque os miúdos eram também muito mais ingénuos.

Rebobinando a cassete do tempo até 1986, damos conta de que esse foi um ano a todos os níveis espectacular, excepto para a Federação Portuguesa de Futebol, a entidade que ainda hoje vive assombrada com os escândalos acumulados no Mundial de 86, no México. Todos os relatos dessa obscura campanha futebolística sublinham os aspectos mais desprestigiantes da presença portuguesa no México, mas nunca deixei de acreditar que aquela malta se divertiu à brava no estágio em Saltillo. Portanto, enquanto um qualquer craque da bola aproveitava as regalias de Saltillo, 1986 dava aos miúdos razões várias para se divertirem também: foi esse o ano de

Aliens – O Reencontro Final

(lol, “final”),

Highlander – Os Imortais

e do primeiro jogo do Dan Dare (

Pilot of the Future

) para o ZX Spectrum.

É sobre este último que vos quero falar, porque

Dan Dare: Pilot of the Future

, para o velhinho Spectrum, foi provavelmente a minha primeira experiência interactiva num universo de pura ficção-científica, com direito a simulação de anti-gravidade e aterragens em plataformas espaciais. Mas, antes de mais, era talvez importante explicar como comprar um jogo para o Spectrum, quando se tem sete anos, depende essencialmente do que um puto vê na capa, e a de

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Dan Dare

sugeria de imediato uma aventura muito colorida, com um herói pronto para acabar com um vilão extra-terrestre anormalmente cabeçudo. E, quando digo “cabeçudo”, estou a falar de grande ao ponto de abrigar dois bairros sociais e um aeroporto.

O herói naquela capa era Dan Dare, o piloto do futuro situado um pouco antes de 2000, e o vilão era The Mekon, malvada criatura, que escapava no final de cada história para voltar mais forte e com um plano mais articulado para conquistar a Terra. Nada disto era evidente na adaptação para jogo de computador, mas fiquei a saber mais tarde que por detrás do Dan Dare (que, para mim, era apenas um boneco que percorria um labirinto aos tiros) existia uma das mais importantes criações da banda-desenhada britânica e de todo o universo sci-fi.

Dan Dare, herói criado pelo venerável Frank Hampson, inspirou muitas sagas do género, canções de iluminados como Syd Barrett e David Bowie, e todo um rol de coisas que podem encontrar na página da Wikipédia reservada à personagem. Editado com regularidade semanal, em duas páginas coloridas na revista

Eagle

, Dan Dare explorava, na década de 50, um conjunto de noções e elementos, que só mais tarde se tornariam muito comuns em séries de televisão e filmes. Peças essenciais da ficção-científica como o teletransporte ou as viagens além do sistema solar eram bem encaixadas nas histórias de Dan Dare, ao mesmo tempo que comprovavam o génio de Frank Hampson. O ritmo algo lento e a complexidade da banda-desenhada dificultaram a adaptação de

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Dan Dare

à década de 60, mais dada a outros andamentos, e o valor de Frank Hampson para a indústria da BD caiu como se fosse a moda passada.

É interessante e igualmente triste a história de um desenhador que, depois de consolidar uma visão de mundos nunca visitados, acabou por perder o controlo dos rumos da sua principal criação (Dan Dare) à medida que a sua companhia, a Eagle, ia caindo nas mãos de novos proprietários interessados numa renovação. Contam os relatos que Frank Hampson chegou a tentar o suicídio ao ver-se tratado apenas como um estagiário. Isso não chegou a acontecer porque a sua mulher voltou a casa para ir buscar as luvas de que se tinha esquecido. Reparem: um visionário salvo por um par de luvas. Algures nesta caso da vida está um filme por acontecer e para ganhar todos os Óscares possíveis para o Tom Hanks e o Ron Howard.

Frank Hampson, tal como tantos outros homens encurralados pela vida, encontrou a solução em Jesus. Inspirado pelas mudanças e com vontade de desenjoar de Dan Dare, o lendário desenhador mergulhou num intenso período de pesquisa pela Palestina, com vista à criação de uma BD sobre a vida de Jesus Cristo. O livro acabou por ter o título de

The Road of Courage

(e é aqui que o Mel Gibson começa a salivar) e dizem os especialistas que a sua abordagem aos episódios bíblicos envolvia já alguma da complexidade política de um Oliver Stone ou de um Soderbergh. Desenvolver esses aspectos em 1961 era muito à frente, mas a mente criativa de Frank Hampson manteve sempre uma volta de avanço sobre as outras. Levou um puto de sete anos na sua primeira viagem pelo espaço e esse terá sido apenas um caso entre muitos.