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Do fundo do mar para a prateleira do supermercado

Inaugurado em 2015, o centro do Instituto Politécnico de Leiria, Cetemares, tem sido o berço de inúmeras pesquisas que transformam algas, bivalves ou ouriços do mar em pão, gin, cosméticos ou armas contra o cancro.
Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.

Pão, gin, azeite ou gelado são alguns dos produtos alimentares inovadores, que têm vindo a ser desenvolvidos com base nos recursos marinhos da nossa costa, no edifício Cetemares, em Peniche, e que têm chegado às prateleiras dos supermercados nacionais e internacionais. Mas, esta é apenas a ponta do icebergue num oceano de oportunidades que estão por aproveitar.

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Existe um número vasto de investigações científicas desenvolvidas nesta casa do Instituto Politécnico de Leiria (IPLeiria), apostadas em fazer uso dos recursos marinhos nas mais variadas vertentes. Artigos anti-envelhecimento, produtos que aspiram combater o cancro ou o avanço da Doença de Parkinson são outras das potencialidades saídas dos oceanos, que os investigadores do Cetemares estão a estudar.


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Oficialmente inaugurado em 2015, o Cetemares - Centro de I&D, Formação e Divulgação do Conhecimento Marítimo é a sede do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente do IPLeiria. É neste edifício, localizado no porto de Peniche, que, em estreita articulação com as empresas, com diversos organismos nacionais e internacionais, trabalha uma equipa de cerca de 40 investigadores. Esta infra-estrutura, exclusivamente dedicada à Ciência e Tecnologia do Mar, distingue-se pelos seus laboratórios, providos com os mais modernos equipamentos na área da biologia, pescas, aquacultura, biotecnologia, química, microbiologia e tecnologia dos alimentos, bem como vários espaços dedicados à formação e transferência do conhecimento.

E que resultados tem obtido este centro? Diversos, aponta Maria Manuel Gil, coordenadora do MARE – IPLeiria, que identifica tantos produtos desenvolvidos no Cetemares, que são já suficientes para, por exemplo, se confeccionar uma refeição completa. “O nosso Centro tem três linhas de investigação: aquacultura, biologia marinha e sustentabilidade; biotecnologia marinha; e recursos alimentares marinhos. Estas áreas estão interligadas e permitem-nos adquirir conhecimento para trabalhar depois directamente com as empresas no desenvolvimento de produtos para colocar no mercado”, explica a coordenadora.

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“Os produtos que mais depressa chegam ao mercado, e que têm mais visibilidade, são os da área alimentar”, continua Maria Manuel Gil. E acrescenta: “No que à área alimentar diz respeito, também trabalhamos em duas vertentes. Por um lado, no desenvolvimento de novos produtos com base nos recursos marinhos. Por outro, valorizando espécies que tenham actualmente baixo valor comercial”.

Dito isto, existem já vários produtos saídos do Centro de Investigação para o mercado. Além do pão com algas, cuja utilização nos produtos alimentares permite reduzir o teor de sal, os cientistas do Cetemares também desenvolveram o pão com farinha de bivalves, com o aproveitamento de bivalves que são produzidos em aquacultura e que, por terem pequenas dimensões, de outra forma não conseguem ser colocados no mercado. Com as algas foi também criado o azeite que já está a ser comercializado. “O azeite com algas foi desenvolvido com uma empresa do Bombarral, que nasceu com este projecto e que, neste momento, já exporta praticamente toda a sua produção para o Japão. Trata-se de azeite aromatizado com algas para pratos de peixe e azeite aromatizado com algas para pratos de carne”, especifica Maria Manuel Gil.

Gelado de algas e kéfir. Cortesia Jornal de Leiria (Direitos Reservados)

Com recurso a micro-algas foi também desenvolvido no Cetemares e colocado no mercado o gelado de kéfir. Com a ajuda do centro de investigação, a geladaria Emanha melhorou as técnicas de produção do gelado artesanal e associou- os benefícios do kéfir - como a regulação do funcionamento intestinal, ou a promoção da absorção de cálcio – aos da alga Spirulina, um superalimento, com elevado teor em proteínas, vitaminas e sais minerais. Este produto revelou-se de tal forma original, que mereceu o primeiro prémio na categoria “lácteos” do primeiro Concurso InovCluster de Produtos Alimentares Inovadores.

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Outra inovação saída do Cetemares é o gin com algas. Chama-se gin Nautilus, é uma bebida fresca e com cheiro a mar, produzida em Peniche, em articulação com a Oficina de Espíritos (Évora) e com a Algaplus (Aveiro). Disponíveis no mercado estão também outros produtos alimentares desenvolvidos pelos cientistas deste centro de investigação de Peniche, pensados para valorizar uma espécie que, até então, tinha baixo valor comercial. Trata-se das almôndegas de cavala e do hambúrguer de cavala, iguarias concebidas pela professora da Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar do IPLeiria, a chef Patrícia Borges. Entretanto foram também desenvolvidos os hambúrgueres de salmão e os hambúrgueres de paloco, adianta Maria Manuel Gil.


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O centro de investigação trabalha também em projectos que visam aumentar a durabilidade dos produtos. É o caso do revestimento de maçãs fatiadas, comercializadas na cadeia de restaurantes MacDonald's, que foi feito com recurso a algas comestíveis e que servem para minimizar o processo de oxidação que tem início assim que o fruto é cortado. E, em fase de desenvolvimento, há ainda mais projectos baseados nas algas, adianta a coordenadora do MARE - IPLeiria: “Praticamente concluído está o desenvolvimento de bebidas alcoólicas inovadoras com base em Ginja e Licor de Ginja da região de Óbidos”.

Em parceria com a Lusiaves, o centro de investigação está também a estudar a utilização de extratos de algas em filmes termoplásticos ultrafinos, com características multifuncionais que poderão assim contribuir para o aumento do tempo de vida dos produtos embalados. Já com a Câmara Municipal de Peniche e com a panificadora Calé, o centro de investigação está a trabalhar na elaboração de bolachas alusivas às rendas típicas do concelho e que têm de inovador o facto de incorporarem algas na sua confecção.

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Patentes e prémios pela originalidade

As patentes e os prémios obtidos com os produtos desenvolvidos neste centro de investigação de Peniche atestam o reconhecimento do edifício Cetemares e da equipa de cientistas do MARE -IPLeiria, não só entre a comunidade científica, como entre a sociedade civil e demonstram a capacidade de inovar e de pensar “fora da caixa”.

Entre as patentes obtidas, refere Maria Manuel Gil, está o mel em pó desidratado, que também foi concebido com base em recursos marinhos. Já existia um produto semelhante nos mercados asiático e norte-americano, realça a coordenadora do MARE -IPLeiria, mas nesse caso era adicionado açúcar. “Mas se juntamos açúcar deixamos cair por terra as qualidades do mel. Então, nós recorremos a um composto extraído de algas, que não tem valor calórico, e que adicionamos ao mel em vez de açúcar. O resultado é um mel em pó muito interessante, para distribuição pelo canal horeca, que permite adoçar e decorar de forma fácil e sem ser peganhento”, explica a coordenadora.

Outras patentes alcançadas por cientistas do Cetemares foram o gelo com algas, que serve para aumentar o tempo de vida útil do pescado e o também já referido revestimento para maçãs fatiadas, exemplifica a professora. A comunidade civil tem reconhecido também o desempenho deste centro de investigação, que tem trabalhado com empresas de todo o País e cooperado com instituições nacionais e internacionais. Como? Basta dizer que o azeite aromatizado com algas já venceu diversos prémios em Itália e em França e que a sua taxa de exportação ronda os 90%, com enorme aceitação no Japão, refere a docente. Em congressos nacionais e internacionais, também se têm destacado os pães com algas e os pães com farinha de bivalves, acrescenta Maria Manuel Gil.

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Cientistas do Cetemares na luta contra o cancro

É certo que os produtos alimentares são aqueles que mais rapidamente chegam ao mercado. Já nos trabalhos de investigação realizados com vista à área da saúde, os resultados demoram um pouco mais a chegar e carecem de bastantes validações até que os medicamentos possam chegar ao público, realça a coordenadora do MARE – IPLeiria. Mas, ainda que com menos visibilidade, existe um conjunto de projectos em curso, que envolvem investigadores, estudantes de doutoramento deste centro de investigação, e que têm o objectivo de utilizar recursos marinhos no tratamento de doenças. “Estamos a pesquisar compostos com capacidade anti-inflamatória, anti-bacteriana e anti-tumoral”, adianta a professora.

Um desses projectos de investigação que envolve cientistas do MARE chama-se POINT4PAC – Oncologia de Precisão através de Terapias e Tecnologias Inovadoras. Neste caso, o MARE-IPLeiria é um dos parceiros deste projecto nacional dedicado à descoberta de novos fármacos anti-tumorais. “O MARE-IPLeiria irá seleccionar novas moléculas anti-cancerígenas biocativas, obtidas a partir de algas vermelhas, plantas e moléculas sintéticas com presuntiva actividade anti-tumoral“, revela Maria Manuel Gil. E carescenta: “Será realizada uma triagem exaustiva do cobaio de bactérias epífitas de macro-algas, aquáticas e de solo existente no MARE-IPLeiria e de colecções de cultura marinhas e ambientais comercialmente disponíveis, seguida do isolamento e elucidação estrutural dos compostos seleccionados. E os mais relevantes serão fornecidos ao projecto para tratamento, de acordo com o fluxo de trabalho padrão do processo de descoberta de novos fármacos”.

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Trata-se de um projecto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, com a duração de 36 meses (a desenvolver entre 2017 e 2020, que conta com a coordenação de Rui Pedrosa, da parte do IPLeiria, e que tem como parceiros: iMed.ULisboa, Faculdade de Farmácia, da Universidade de Lisboa; Centro de Química Estrutural, do Instituto Superior Técnico; o Instituto de Nanociência e Nanotecnologia do INESC; o CIISA, Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, o MARE da Universidade de Coimbra e o MARE da Universidade de Lisboa. Além desta pesquisa, existe uma estudante de doutoramento, que está a avaliar a capacidade de utilizar os extractos das algas na prevenção de Parkinson, adianta a professora.

Rações, protectores solares e novas iguarias “picantes”

Já ao nível da biotecnologia, prossegue a coordenadora do MARE - IPLeiria, “também desenvolvemos extractos de algas, que identificamos e caracterizamos. Depois, conhecidos esses compostos, aplicamo-los não só na área alimentar, mas também em rações para animais, para cosmética e farmacologia”. A identificação de produtos que possam ser novas fontes de alimento está directamente relacionada com o aumento da população mundial e com a dificuldade, que tenderá a crescer, de garantir proteína para todas as pessoas. “É preciso garantir princípios de sustentabilidade e nós podemos trabalhar em duas vertentes: na melhoria da aquacultura, por um lado, e na identificação de espécies que ainda não estão, mas que podem passar a ser consumidas, por outro. Algas e não só”, aponta Maria Manuel Gil”.

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“Nesse sentido, temos em curso um projecto que consiste no aproveitamento dos 'pepinos do mar', espécie que não tem valor comercial - os pescadores deitam-nos fora –, mas que têm um valor nutricional muito interessante”, explica a coordenadora do MARE – IPLeiria. E exemplica: “Desidratado e transformado em farinha pode ser uma das formas de ser utilizado na alimentação humana”. Em estudo está também a utilização de medusas e de “ouriços” do mar. Além desta proposta “picante”, fazem-se neste centro de investigação “avaliações a extractos de algas que pode ser incorporados em protectores solares, cuja composição comum é actualmente bastante nociva para os oceanos”, acrescenta Maria Manuel Gil.

Cosmética, alimentação humana, alimentação animal e biocombustíveis, são várias as possibilidades de utilização das micro-algas produzidas em Pataias, num projecto desenvolvido em articulação com o MARE-IPLeiria, nota ainda a professora. A Secil quer aproveitar o dióxido de carbono (CO2) emitido na fábrica de Pataias, para desenvolver produtos inovadores através da produção de micro-algas. Foi com esse intuito que o grupo inaugurou na cimenteira, em 2016, a unidade de produção de micro-algas, que está a ser preparada desde 2007. O objectivo é utilizar 20 a 25 por cento das emissões totais de C02 da cimenteira no prazo de uma década.

A criação desta unidade, que correspondeu a um investimento de cerca de 15 milhões de euros, resultou numa área de 1,2 hectares, com uma capacidade instalada de 1.300 metros cúbicos de cultura de micro-algas, 90 por cento das quais exportadas, maioritariamente para a Europa. A comercialização de micro-algas para os diferentes mercados que as aproveitam como ingrediente sustentável, natural e rico em diversos compostos bioquímicos, é uma actividade de negócio centralizada pela empresa Allmicroalgae – Natural Products, unidade pertencente à Secil, que trabalha com diferentes marcas. O projecto de captação de CO2 e produção de biomassa, através da produção industrial de micro-algas foi, de resto, distinguido em Paris, em 2009, com o prémio Environmental Innovation for Europe, tendo alcançado o Prémio de Prata entre os vários projectos concorrentes apresentados por 17 países europeus.

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Do Cetemares para a biblioteca

Tal como sucede com os produtos alimentares, os fármacos ou a cosmética que é desenvolvida no Cetemares, com o objectivo de disponibilizar as inovações à comunidade, existe também uma variada produção literária gerada neste centro de investigação, que tem por princípios informar, sensibilizar e formar a comunidade civil. Assim, além de outros trabalhos, produzidos por cientistas e que são destinados à academia, existem já várias obras acessíveis ao público em geral.

Um desses livros, desenvolvido entre 2013 e 2014, chama-se Peixes Marinhos de Portugal, tem a coordenação de Paulo Maranhão, do MARE – IPLeiria e o seu principal objectivo é dar a conhecer as espécies de peixes mais comuns da costa portuguesa. É uma edição bilingue (Português e Inglês) onde são apresentadas mais de 200 espécies, através de fotografias, a maior parte delas inéditas, feitas no habitat natural. Do livro faz parte informação acerca do nome comum, nome científico, tamanho máximo, intervalo de profundidades e distribuição geográfica.


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Em 2015, foi também publicamente apresentado Peixes das Berlengas, livro com coordenação da professora Teresa Mouga, um manual ilustrado, que permite aos alunos de escolas básicas e secundárias da região - e também aos seus professores - ter um maior conhecimento acerca das mais de 70 espécies de peixes que vivem nesta ilha. Em 2016 foi lançado um terceiro livro direccionado à comunidade civil. Chama-se Do Mar ao Prato – biologia, ilustração e gastronomia. Com coordenação do professor Sérgio Leandro, a obra faz um levantamento de várias espécies que compõem a fauna marítima da região Oeste, 11 peixes, dois crustáceos (lagosta e percebes) e um molusco (polvo).

Além da caracterização biológica da espécie (habitat, local onde pode ser capturado, informação sobre a longevidade máxima registada, ou mínimos legais de tamanho para captura), cada um dos exemplos está acompanhado pela devida ilustração científica. E, para cada espécie, é ainda traçado o respectivo perfil nutricional e são apresentadas duas receitas diferentes. “Aumentar o conhecimento do público sobre os recursos, potenciar a consciência ambiental e a valorização da gastronomia da região”, são os grandes objectivos deste livro, explicava o professor ao JORNAL DE LEIRIA aquando do seu lançamento.

Ainda em 2016 foi apresentado publicamente o documentário Ao ritmo das marés, desenvolvido no âmbito do projecto GACOeste, uma obra que foca as diferentes formas de vida que ocorrem nos ecossistemas costeiros, especificamente na zona afectada pelo ciclo das marés, e que contribui para informar e aumentar a consciência ambiental da comunidade.


Daniela Franco Sousa é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.

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