Lupe de Lupe

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A vocação da Lupe de Lupe para o caos

Novo disco da banda mineira, 'Vocação', tem um quê da desesperança brasileira e outro da bagunçada vida aos 30.

“Agora é a hora daquela. Quem quiser aproveita para fumar um cigarro lá fora”, disse Vitor Brauer na metade do show da Lupe de Lupe no Sesc Pompéia, em junho. Era uma referência a “O Brasil quer Mais”, primeiro single do novo disco da banda, Vocação. Mas ninguém saiu. Pelo contrário, os fãs — e o que a Lupe de Lupe tem são fãs — cantaram juntos trechos da longa letra provocativa embalada numa base repetitiva e desconfortável.

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Vocação foi lançado no dia 15 de novembro, feriado da Proclamação da República, quase cinco meses depois daquele show. De lá para cá, outras três músicas haviam sido divulgadas, cada uma cantada por um dos demais membros da banda, Cícero Nogueira, Gustavo Scholz e Renan Benini. Bem antes disso, a escolha do single deixava claro o tom do álbum. Não que a Lupe de Lupe já tenha sido uma banda acessível, mas em Vocação ela soa ainda mais suja e pronta para o confronto.

De certa forma, é um reflexo do momento que o Brasil atravessa. Quando o disco anterior da banda, Quarup, saiu em 2014, as coisas não estavam tão bem, mas nada próximo da desesperança generalizada atual. O sentimento de derrota, aliás, fica explícito na fotografia da capa, feita por Denilson Takeda.

Além disso, o intervalo desde Quarup levou a banda para perto da casa dos 30 anos de idade, o que não passa incólume. “É o nosso retrato do momento. De gente que vai e vem na sua vida, aquela coisa que quando for tentar lembrar daqui a 20 anos vai ser só flashes”, fala Gustavo, que toca guitarra e canta. “É estranho porque mesmo vivendo vidas completamente diferentes, nós todos temos a mesma idade e a gente sempre tá na mesma coisa, sei lá.” O resultado, ele define, é um disco obscuro, que olha para o futuro.

Desde 2015, Gustavo mora na Austrália, onde dirige uma van e entrega bolos. Cícero, o baterista, é coordenador de uma escola de idiomas em Maceió, capital de Alagoas. Renan, baixo e voz, é dentista em Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Só Vitor vive na música em tempo integral e, apesar de continuar baseado em Minas Gerais, passa um bom tempo rodando o Brasil com suas inúmeras turnês Sem Sair na Rolling Stone.

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Esse arranjo geográfico resulta em um processo fragmentado de composição, o terceiro elemento que parece definir Vocação. “Nosso principal equipamento de gravação chama WhatsApp”, diz Cícero. “A gente acaba cada vez fazendo menos músicas e trabalhando mais em ideias. É interessante, com o tempo vai perdendo a musicalidade, no melhor sentido”, diz.

De fato, em determinados trechos os elementos da música parecem ser mais conflitantes que complementares. Tipo uma pecinha de quebra-cabeça forçada a encaixar no lugar errado. Mas funciona, como as guitarras no começo de “Midas”, a segunda faixa.

“Não é pior nem melhor, é uma outra dinâmica, um esquema diferente. Mas como tocamos juntos há muito tempo a gente se entende”, diz Renan sobre o processo de gravação. Hoje, Renan grava apenas a voz das suas músicas — o baixo fica por conta de Vitor. “Eu tenho a ideia, mando para eles mais ou menos o que espero e falo ‘agora cês trabalham a partir daí’. Acaba que a música vira outra coisa que eu nem esperava”, conta.

Para isso funcionar, foi preciso encontrar um equilíbrio entre as características individuais do grupo. “A gente entendeu qual a pegada de cada um. Poderia ser só uma estética definida, nós vamos ser uma banda noise e ponto final. Mas a gente sabe quem nós somos. A música do Brauer tem uma característica específica, se falasse que tem que fazer assim ou assado, não ia dar certo”, explica Renan. “É a representação de cada um. Não apenas o coletivo se sobrepondo ao individual, mas a mesclagem disso.”

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Cover na facul

Assim como tantas bandas mal-sucedidas, a Lupe de Lupe começou na faculdade. Vindos do interior de Minas Gerais, eles se conheceram na UFMG, em Belo Horizonte. A princípio, Cícero, Vitor e Renan se juntaram para tocar covers em festinhas universitárias em 2009.

“Eu namorava uma menina que era amiga de uma namorada do Vitor. Nós passamos um final de semana juntos, e uma hora eu tava escutando umas músicas e cantando por cima. Eu nem conhecia ele direito, mas o Vitor só falou ‘Cícero cê vai entrar na banda’”, conta o baterista, que vinha de Uberlândia. “Eu falei beleza.” Renan, por sua vez, havia chegado de Muriaé e era uma figurinha carimbada no DA de Psicologia, sempre com o violão embaixo do braço. Logo também foi coaptado.

O problema é que nem a voz do Vitor era convencional o suficiente para o circuito de covers, nem eles eram músicos para quem a maior preocupação era a técnica. “A gente não se encaixava muito, então vimos que tínhamos que fazer nosso próprio rolê”, afirma Cícero.

Como tanto Vitor quanto Renan já tinham uma série de músicas compostas, foi natural dar um passo além e trabalhar em material próprio. O primeiro disco, Recreio, foi lançado em 2011, pouco antes de Gustavo entrar na banda. “Eu e o Vitor tínhamos nos conhecido de supetão num pré-vestibular em Governador Valadares, ali em 2007 ou 2008. Eu cheguei a ir a shows da Lupe”, conta.

Na época, Cícero tocava guitarra e assumiu as baquetas após o grupo passar por diversos bateristas. Gustavo tomou seu lugar na frente do palco. Desde então, a Lupe de Lupe criou em torno de si um ar de banda cult, o que em iguais medidas a faz ser fruto de amor e implicância de quem acompanha a música independente brasileira.

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Esteja você de um lado ou de outro, é inegável que a banda se tornou relevante para além de mundo virtual. Na conversa com Cícero, Gustavo e Renan, fica claro que muito disso se deve a diligência de Vitor. “Ele é o motor do negócio”, fala Gustavo.

“Ele é um grande compositor? Sim. Mas o maior talento dele nem é isso, é a capacidade de não se queixar pelas coisas e fazer acontecer. Tem muito a ver com o signo dele, que é capricórnio”, diz Cícero. “Ele é prático. Queria viver de música, viu que ia ter que fazer isso, isso e aquilo e fez. Não buscou subterfúgio. Como ele quer viver de música, ele tá sempre produzindo”, explica.

Vitor não conversa com a imprensa — ele só dá entrevistas via Curious Cat.

O teto caiu

No show do Sesc Pompeia, pouco depois de Brauer fazer troça com “O Brasil quer Mais”, dezenas de jovens — e os fãs da Lupe de Lupe são jovens — subiram no palco para cantar as últimas músicas juntos da banda. Um tipo de devoção que os acompanha desde sempre.

Em 2013, numa das primeiras apresentações de São Paulo, a Lupe de Lupe importou de Minas Gerais a maioria do público no Walden, um porão minúsculo que ficava em frente a Praça da República, no Centro. Mesmo assistindo a banda de amigos com quem tinham acabado de viajar juntos, eles estavam alucinados a ponto de em determinado momento alguém pular, acertar um murro no teto e derrubar um pedaço de meio metro de gesso.

“Isso foi inacreditável. Eu tinha lido Mate-Me Por Favor e vi as histórias do livro acontecendo na minha frente”, diz Renan. “Mas essência não mudou mesmo. A nossa forma de interagir não mudou.” O que mudou foi o público, hoje bem maior. Por um lado, uma consequência natural de quase dez anos de também. Por outro, de novo resultado de um esforço em ser acessível ao vivo.

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Cícero lembra de um episódio marcante para os colocar nesse rumo. Durante uma turnê no Nordeste, após o lançamento de Sal Grosso, o segundo disco, eles se encontraram com Teco Martins em Sousa, cidade de 70 mil habitantes no interior da Paraíba. Teco, ex-vocalista do Rancore, estava rodando o Brasil num “corsinha ou golzinho” junto com outro compositor chamado Valentin.

“Ele tocou em uma churrascaria na cidade bicho, uma churrascaria. E foi um dos melhores shows que já vi na minha vida. O cara pegou a galera, o público do interior da Paraíba, e fez todo mundo cantar junto com ele”, conta Cícero. “Foi uma grande lição. Ele fez o sacrifício de ir lá e cantar. Artistas como Teco Martins vão ser longevos, vão pendurar. Ele tem um público real.”

De qualquer forma, a vida ativa da banda ficou para trás. Após a turnê no meio do ano, a Lupe de Lupe voltou a hibernar. Apesar de Gustavo dizer que há um acordo tácito de que caso três deles estejam juntos, estão liberados para tocar sob o nome, não há planos de show num futuro próximo.

“Um próximo projeto que vamos fazer ainda é como se fosse quatro álbuns. Ou seja, cada um vai fazer o seu, por assim dizer”, diz Cícero, que canta “Vejo uma Lua no Céu” em Vocação — não havia uma música sua num disco da banda desde Recreio. Mas isso ainda é uma ideia distante.

De próximo, Renan trabalho em um primeiro disco solo — ele lançou uma campanha de crowdfunding para viabilizá-lo. “Eu penso nesse negócio tem 10 anos, mas sempre tem algo, a Lupe, faculdade, mudança. Agora as coisas vão meio dando liga”, conta. “Pode ser que fique uma merda. São músicas que nunca iam funcionar com a Lupe. Ou ia ficar bisonha demais, ou não iam ser as músicas.”

Vocação foi lançado pela Geração Perdida de Minas Gerais e pela Balaclava Records. O disco pode ser ouvido no Bandcamp, YouTube e outras plataformas.

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