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Novo filme de Gaspar Noé não é sobre droga: é um rito de morte e celebração

"Clímax" traz música, dança e uma sangria batizada com o que há de melhor e pior no ser humano.

Mesmo o espectador mais atento demora em dar-se conta de quando realmente começa Clímax, o novo filme de Gaspar Noé, já nas salas de cinema. Os créditos iniciais enganam, parecem levar ao final trágico de uma história paralela sobre a qual nada conhecemos. É somente na metade do longa, quando estamos com mais de quarenta minutos, que piscam freneticamente na grande tela os nomes responsáveis por Clímax, da equipe, dos atores/dançarinos, dos músicos que compõem a trilha sonora, quase toda eletrônica – há uma menção curiosa a Erik Satie e aos Stones.

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O nome de Satie pode causar espanto, em um filme calibrado pela música eletrônica: Aphex Twin, Daft Punk – com uma canção inédita, Sangria –, Kiddy Smile, M/A/R/S/S, entre outros. Conhecido por suas “Gymnopedies”, o compositor da Belle Époque abre o filme, em um misto de reverência francesa a um extremo cinismo, elementos estes que vão perpassar todo o filme, quando quem está por trás da versão do primeiro movimento da peça para piano é Gary Numan, isso mesmo, um dos pais dos sintetizadores e da New Wave.

É sem dúvida a música quem dá o tom a Clímax, que levou o grande prêmio da Quinzena dos Realizadores em Cannes no ano passado. Conforme a história vai se desenvolvendo, e ganhando um incômodo atrito, somos sugados por uma trilha que começa celebratória e vai ficando sinistra, até quase se tornar um incômodo ruído no final – quando toca uma estranha versão de Angie, dos Stones, a música mais perturba do que gera algum sentimento catártico ou redentor, o que poderíamos esperar. Claro, há a dança (que não cessa mesmo nos momentos em que os personagens já fritaram todos e a violência física escancara), há a sangria batizada, há as cores da França estampadas por trás das picapes, mas é a música que dá o compasso e o descompasso do longa. E, mais do que isso, é a morte quem congrega todos esses elementos.

Estamos todos diante de um espetáculo ritualístico, como sempre houve no assombro humano, de celebração à morte. Morrer é uma experiência extraordinária. Da cena inicial, quando o vermelho do sangue suja uma neve tão perfeita de branca, por exemplo. As entrevistas para o casting exibidas em uma TV antiga, por sua vez, brincam também com a morte, com o inferno, com o suicídio, nas palavras inseguras ou seguras até demais dos personagens. Ao lado da televisão, alguns livros e filmes, como Suspiria, Schizophrenia e um ou outro Fritz Lang. Há uma pulsão de morte que corre em nossas veias, sem nos darmos conta, naquele mitológico confronto entre o sexo (Eros) e Tânato.

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Não por acaso o sexo, talvez incorretamente associado ao diretor franco-argentino, surja em Clímax de uma maneira tão castrada, em um tabuleiro em que os dançarinos escorregam no limite entre o tesão e a violência, aqui exposta de forma social (o árabe Omar expulso a pontapés da festa, et vive la France et vive la République), na suástica desenhada torta com batom na testa do personagem branco, depois de muita porrada, ou mesmo na automutilação. Em um intervalo de uma noite, em que um grupo de jovens dançarinos, com históricos e estímulos muito distintos, dança até a morte, não é pouca coisa.

Tudo isso ocorre de maneira muito direta, como se estivéssemos ao lado dos personagens, acompanhando seus diálogos particulares, seus segredos, suas paranoias, seus estados alterados de mente. Noé conduz bem a trama, e muito de perto, em praticamente um longo plano-sequência, com pouquíssimos cortes, daquele típico do cinema experimental. Isso causa uma espécie de hipersensibilidade ao espectador, que aproxima a experiência dos personagens até cada um de nós: o efeito alucinatório, em uma espécie de dark night contemplativa, quando passamos do limite. Chamar aquilo de bad trip, como alguns críticos identificaram, me parece inadequado, uma vez que 1. há algum senso de iluminação, ainda que se dê por paranoia, como é o caso de Selva (interpretada por Sofia Boutella), e 2. nem todos provaram da sangria “do mal”, mas mesmo assim todos são afetados. É a cabeça, não a droga.

Clímax não conta uma história sobre drogas, nem é um filme em que alguma substância psicoativa mudou os rumos de uma festa. É um filme sobre o estado atual, e zoneado, das coisas, da sociedade, das nossas cabeças. O inferno são os outros, sabemos, mas os outros somos nós mesmos – o homem é um ser social, daí Selva assustar-se com a própria imagem no espelho.

Passada no fim dos anos 90, era fundamental para entendemos o que somos hoje (continuamos vivendo nos anos 90, porém com internet móvel), a trama revela também um universo bastante particular, o da França, com os filtros do vermelho, da fraternidade, e do azul, da liberdade. Pergunto-me onde está o branco, da igualdade. Creio que esta é a pergunta que Noé deixa aos franceses e, por extensão, ao resto do mundo. Quem será o acusado de batizar a sangria, quem será chutado para fora?

Filme de horror, como Suspiria, de borrar-se de medo, e que precisa ser encarado com o cinismo dos franceses e a frieza do mundo out of the dancefloor.

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