Reagindo mal: racismo é racismo mesmo quando é sem querer
Ilustração por Felipe Pessanha.

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Reagindo mal: racismo é racismo mesmo quando é sem querer

É preciso entender de uma vez por todas a diferença entre expressar uma opinião e reforçar uma história horripilante de racismo.

A internet é amplamente considerada uma ferramenta à serviço da informação. Conectando pessoas de diferentes lugares e culturas, a internet oferece oportunidades: Novos artistas e, por vezes, gêneros inteiros, acham na internet solo fértil para prosperar. O rap é uma das muitas comunidades que ganhou bastante com essa abertura e a chegada dos serviços de streaming. Acompanhando o crescimento do rap no mundo digital, a cultura do hip hop também cresceu. Além das músicas, hoje é possível encontrar no YouTube resenhas, notícias, discussões, análises e provavelmente algum react com que você concorde, ou que te apresente uma visão que você ainda não tenha considerado. Mas ao mesmo tempo que a grande rede de computadores abre portas para partes incríveis do mundo, também abre os caminhos das partes mais feias.

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Reacts são, basicamente, vídeos em que fãs de rap reagem às músicas e vídeos dos seus artistas favoritos ou novos lançamentos indicados pelos espectadores. A fim de tecer opiniões sobre as músicas e os vídeos, o conteúdo desses canais é, em sua maior parte, inocente. E, infelizmente, não é incomum encontrar nesses canais, e até nos canais de notícias sobre rap, reproduções de ideias racistas.

Na segunda passada (13), o youtuber de reacts Gustavo Lazaro postou em seu canal um vídeo analisando o cypher "Favela Vive 3". O react gerou polêmica e amplo descontentamento. Gustavo foi racista em seus comentários. Tanto no vídeo original, quanto no segundo vídeo, postado no dia 14, em que tentou se explicar. Aparentemente incapaz de conseguir separar suas opiniões dos fatos, Gustavo passa alguns minutos construindo o argumento de que o responsável pelas mortes de pessoas negras não é o sistema, ou a polícia; o youtuber transfere essa responsabilidade para os negros, que "deveriam ser menos carne e mais navalha e deixar de vitimismo". Isso não é uma opinião, isso é só racismo.

Não é a primeira vez que eu passo a conhecer o trabalho de alguém envolvido com hip hop, ou com qualquer atividade cultural, em decorrência de comentários racistas. É um padrão que anda se repetindo bastante. E geralmente começa com a ascensão de um cara branco, que fala algo “sem pensar”.

O que acontece a seguir é uma coreografia bem ensaiada. Justificativas vazias como “minha intenção não foi ser racista” ou “hoje em dia não podemos mais falar nada, eu não fui racista”. O canal perde visualizações e inscritos, mas não todos. O assunto morre e esperamos a semana seguinte para descobrir qual youtuber ou comediante vai ser racista, sem querer, dessa vez.

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O que essa justificativa não leva em conta é: não é preciso querer, pra ser racista. Ter amigos ou familiares negros não te impede de reproduzir racismo. Não é de quem ofende a última palavra, na hora de decidir se algo foi ofensivo. Parece óbvio, pelo menos pra mim.

Aqui vai uma analogia crua, e peço perdão de antemão. Alguém anda até mim com um copo cheio de um líquido amarelo e com cheiro de xixi. O conteúdo do copo é despejado em mim, e claro, eu me enfureço. “Agora eu estou todo molhado e cheirando a xixi! isso não foi muito legal!” E é quando eu recebo a resposta: “Eu sinto muito que você esteja se sentindo molhado e que você pense que esse cheiro é de xixi. Mas na verdade não é xixi.”. Essa era a última coisa que eu queria agora. O cara que acabou de jogar que aparenta e cheira como xixi em mim, me dizendo que aquilo não era xixi e que eu estou sendo exagerado.

Impressionantemente, não é incomum que youtubers e digital influencers não percebam isso. Chegando ao ponto de se vestir como a vítima, tocam em pontos como o “racismo reverso” e clamam pelo seu espaço. “O rap é pra todos, não é por que eu sou branco e não moro na favela que eu não posso dar minha opinião.”. Isso é verdade. O rap é pra todos. Opiniões são bem vindas, quando respeitosas. É difícil acreditar que os brancos estão sendo excluídos pelo hip hop, quando a impressão do público é de que a maioria dos canais mais famosos de react são de brancos.

Comentei há um tempo que no nosso país, um preto ainda tem que trabalhar em dobro pra chegar no topo. Até mesmo dentro da própria cultura. No nosso país, o assassinato de negros ainda é 2,5 vezes maior que o de outras etnias, principalmente dentro das nossas comunidades pobres. Ser respeitoso inclui respeitar os protestos, dentro ou fora do hip hop, que escancaram essa realidade.

Um preto diz que a cada 21 minutos morre um jovem negro no Brasil, como o Djonga fez em "Favela Vive 3", e um branco responde “Tá, mas também morreram brancos hoje”. Um periférico aponta o assassinato de uma criança negra, como DK fez na mesma música, e um cara de classe média pergunta “Tá, mas quem foi que matou?”. Isso não é respeito. Ao buscar falhas e buracos num protesto a favor da vida, essas pessoas demonstram exatamente o quão distante estão de compreender a seriedade dessa questão. Djonga não chama a atenção pra esse número por achar que é uma vantagem. Não é uma competição sobre quem morre mais, e também não é um exagero. É uma realidade devastadora. Quando um negro, de origens periféricas, chama a atenção pro assassinato de negros é, provavelmente, por ter presenciado isso. Por ter perdido um amigo ou um familiar pra um racista fardado. Não é uma conversa meramente sobre opiniões divergentes. Estamos falando sobre a vida das pessoas.

É preciso entender de uma vez por todas a diferença entre expressar uma opinião e reforçar uma história horripilante de racismo. Já é passada a hora de parar de dar ouvidos a achismos e “e se”s, para nos focarmos na realidade. “Mas e o jovem branco que morre? E o negro que morreu tava rezando?” não deveriam ser as perguntas que seguem a notícia da morte de negros, mas sim “O que podemos fazer pra mudar isso?”. “Isso não foi racista.” Precisa ser urgentemente substituído por “Eu me arrependo de ter sido racista.” Porque se eu tiver que ouvir mais uma palavra que seja de um youtuber racista, eu quero que sejam essas. É preciso dar espaço aos criadores de conteúdo negros, e ouví-los com atenção. Não queremos nada além de ser ouvidos, porque é isso que vai ajudar a desconstruir esse racismo enraizado que tem tanta dificuldade de se reconhecer.

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