Como a Copa de 2018 explica o nacionalismo do século 21
Ilustração: Cassio Tisseo

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Como a Copa de 2018 explica o nacionalismo do século 21

Dos astros da França aos suíços albaneses, os imigrantes do torneio futebolístico são como microcosmos de como nosso planeta se organiza.

Em tempos de globalização, a Copa do Mundo parece ser uma resistência do nacionalismo. As cores e bandeiras dos países aparecem em todos os lugares, dos uniformes às bochechas dos torcedores; os hinos são executados antes dos jogos, muitas vezes com letras que ressaltam a força da pátria e pedem a cabeça e o sangue dos inimigos. Mas, na realidade, a globalização atingiu em cheio também o mundo da bola, com brasileiros jogando por várias seleções, africanos nascidos na Europa e até tretas nacionalistas causadas por jogadores de seleções teoricamente neutras.

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Levantamento da Folha de S.Paulo aponta que 80 jogadores foram inscritos na Copa para defender seleções de países em que não nasceram. Os recordistas são os franceses: ao todo são 50 jogadores nascidos no país, sendo apenas 21 defendendo os Bleus – que também conta com um congolês. Ou seja: daria para formar uma seleção francesa a mais e ainda sobrariam jogadores para completar o time nos coletivos só com os jogadores.

Os principais “importadores” da França são Tunísia, com 9 jogadores, Marrocos e Senegal, ambos com 8. A questão é: quão franceses de fato esses caras são? A maioria deles joga no país de Deschamps, e são filhos de imigrantes, questão delicada em tempos de intolerância como os atuais.

Ou nem tão atuais assim: a única conquista de Copa da França foi em 1998, em casa. A vitória sobre o Brasil saiu com dois gols de um descendente de argelinos nascido em Marselha, Zinedine Zidane, liderando um time que só entre os titulares tinha os negros Desailly, Thuram e Karembeu, além dos então reservas Vieira e Henry, entre muitos outros descendentes de imigrantes. Nem o título convenceu o líder direitista Jean-Marie Le Pen a aceitar a miscigenação: para ele, aquela seleção era “uma França artificial”, e muitos jogadores não eram verdadeiros patriotas por se recusarem a cantar o hino nacional antes dos jogos. Em 2002, quando Le Pen chegou ao segundo turno das eleições presidenciais com suas propostas xenófobas, Zidane e Desailly fizeram campanha aberta contra ele.

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De fato, a Marselhesa não é das mais suaves. Sua letra chama os inimigos franceses de “soldados ferozes que vêm degolar nossos filhos” e de portadores do “estandarte ensanguentado da tirania”, e pede que o país pegue em armas contra eles para “irrigar nossos arados com o sangue impuro”. Para muitos lá na França, os “negros maravilhosos” como Mbappe, Pogba e Kanté de franceses só têm o documento – como mostram os mais de 10 milhões de votos recebidos nas eleições presidenciais de 2017 por Marine Le Pen, neta de Jean-Marie e candidata com a mesma plataforma do avô, algo como “a França para os franceses”.

Mbappe, cuja correria demoliu a Argentina, mandou Messi para casa e virou meme, é nascido em Paris, filho de pai camaronês e mãe argelina. Kanté também nasceu nos subúrbios da capital, em família de origem malinesa – inclusive chegou a ser convocado duas vezes para a seleção de base do país africano, mas recusou. Pogba é de Lagny-sur-Marne, nos arredores de Paris, e seu irmão mais velho, Mathieu, joga pela seleção de Guiné. Tanto ele quanto Kanté, gostem os ultranacionalistas ou não, são franceses não só por nascimento, mas por opção.

“Eu sou espanhol, com muito orgulho, com muito amor”

As regras da Fifa hoje sobre nacionalidade já foram mais rígidas. Até alguns anos atrás, jogadores com dupla cidadania que já tivessem atuado por alguma seleção, mesmo nas categorias de base, não poderiam defender outro país. A regra foi flexibilizada, mas com ressalvas: jogadores pudessem mudar de seleção, mesmo depois de já terem jogado pelo time principal do outro país, desde que só em amistosos ou em competições com restrição de idade (categorias de base ou Jogos Olímpicos) – nesse caso, só pode mudar de camisa se já tivesse a segunda cidadania quando jogou pela primeira.

Isso foi feito para evitar verdadeira festa de compra de jogadores, que ameaçou se estabelecer num primeiro momento – por exemplo, o Catar chegou a “contratar” Emerson Sheik para defender a seleção, mas ele acabou suspenso por não respeitar o regulamento. Já para o lateral Mário Fernandes não houve problema: o jogador nascido em São Caetano do Sul chegou a ser chamado para defender o Brasil em 2011, por Mano Menezes, e em 2014, com Dunga. Depois de alguns anos no CSKA, decidiu obter a cidadania russa. Está desde 2017 na seleção de Putin, sob críticas de ultranacionalistas locais. Atuou até agora nos quatro jogos dos anfitriões.

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Mario é um dos cinco brasileiros a jogar por outras seleções, e o único sobrevivente entre eles: já foram embora o curitibano-polonês Thiago Cionek, que defende a terra de seus avós; o luso-alagoano Pepe, e o hispano-sergipano Diego Costa, que saíram cedo e desconhecidos do Brasil e se naturalizaram depois de anos jogando no respectivo país. A Espanha ainda teve Rodrigo Moreno, filho do ex-lateral flamenguista Adalberto, que mora no país desde a infância por causa de compromissos profissionais do pai.

Ainda pela Espanha, jogou Thiago Alcântara, filho do tetracampeão Mazinho. Ele não conta entre os brasileiros porque nasceu na Itália, quando o pai defendia o Lecce, mas cresceu entre o Brasil e a Espanha e, na hora de defender uma seleção, optou pelos europeus. Seu irmão, caçula, Rafinha, já jogou pelo Brasil com Tite e é nome certo para o ciclo até a Copa de 2022. Um eventual Brasil x Espanha, nos próximos anos, pode perfeitamente ter um confronto familiar.

Irmãos, irmãos, Copa do Mundo à parte

Não seria a primeira vez, aliás, que isso aconteceria. Nas duas Copas anteriores à atual, os jogos entre Alemanha e Gana, na fase de grupos, tiveram duelo de meio-irmãos: o zagueiro alemão Jerome Boateng e o atacante ganês Kevin-Prince Boateng. Eles são filhos de pai africano com duas mães alemãs diferentes e viveram o mesmo dilema de tantos outros descendentes: escolher a seleção para jogar.

O sisudo Jerome, zagueirão, ficou com os alemães, por quem ganhou a Copa de 2014; o irreverente Prince, meia-atacante, depois de jogar pelas seleções de base da Alemanha, preferiu Gana. Os irmãos chegaram até a bater boca pouco antes do Mundial da África do Sul, quando uma entrada de Prince tirou da disputa o veterano Michael Ballack, então no Chelsea. Jerome criticou o irmão pela falta de cuidado, levou uma resposta atravessada e os dois ficaram estremecidos por um tempo; mal se cumprimentaram antes da partida. Hoje, estão de boas, mas a Copa de 2018 não foi lá muito feliz para ambos: a Alemanha passou vergonha, caiu na primeira fase e Jerome Boateng foi expulso na vitória contra a Suécia; Gana nem sequer se classificou nas Eliminatórias africanas.

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Na Eurocopa de 2016, na França, houve outro confronto fraterno: a Suíça, de Granit Xhaka, venceu a Albânia, de Taulant Xhaka por 1 a 0. Nas arquibancadas, a mãe dos dois, Eli, vestia uma camiseta preta e vermelha em que a cruz suíça dividia espaço com a águia albanesa. Dois anos depois, em campos russos, Xhaka voltaria a dar o que falar.

Ódios milenares

Em 1986, Ragip Xhaka era um universitário de 22 anos que estudava na Universidade de Pristina, capital do Kosovo, então uma região autônoma da Iugoslávia habitada principalmente por pessoas de origem albanesa. Durante protestos contra o governo central de Belgrado, foi preso e condenado a seis anos de cadeia. Passou três anos e meio preso, sofreu torturas e, depois de solto, decidiu se exilar. Foi parar com a esposa na Basileia, onde nasceram seus filhos: Taulant, em março de 1991, e Granit, em setembro de 1992.

Nessa época, a Iugoslávia como o mundo conheceu no período do pós-Guerra estava se desfazendo. A Croácia já pedira sua independência, seguida por Eslovênia, Macedônia e Bósnia. O Kosovo, que não tinha o mesmo status de república dos outros países, se mantinha em estado de insubordinação leve, com protestos pontuais como o que resultara na prisão do pai Xhaka. A confusão ali, aliás, era muito mais antiga: remete ao século 14 e a batalhas épicas que fazem parte da construção da identidade do povo sérvio, que basicamente dava as cartas na Iugoslávia.

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Ainda em 1992 chegou à Basileia uma outra família de kosovares-albaneses, vinda da cidade de Gjilan, trazendo consigo um menino de um ano: Xherdan Shaqiri. Assim como os meninos Xhaka, ele cresceu nas categorias de base do FC Basel, o principal clube da cidade, e os três logo se tornaram presença constante nas seleções sub-17 e sub-20 da Suíça, até chegar à seleção principal. Em 2013, Taulant, decidiu voltar às origens e atender a convocação para defender o ascendente time da Albânia.

Palco de uma sangrenta guerra na virada do século, o Kosovo ainda não teve sua independência reconhecida pela comunidade internacional. O Brasil e a Rússia, por exemplo, não o fizeram, ao contrário dos Estados Unidos. A Fifa e a Uefa aceitaram a seleção kosovar em 2016, mas Xhaka e Shaqiri preferiram seguir defendendo a Suíça, que se firmou recentemente entre as seleções de primeiro escalão – disputa sua quarta Copa seguida, em três delas passando da fase de grupos.

O destino, esse sacana, reservou para o último dia 22 de junho, em Kaliningrado, um duelo entre a Sérvia, herdeira da Iugoslávia, e a Suíça de Xhaka e Shaqiri. Mitrovic, o centroavante grandalhão sérvio, provocou antes do jogo: “Se são tão kosovares, por que não jogam pelo Kosovo?” E ainda abriu o placar no primeiro tempo, com uma cabeçada certeira. Nas arquibancadas, parte dos torcedores sérvios mostravam bandeiras com dizeres xenófobos e um casaco com a foto do ex-militar Ratko Mladic, condenado por genocídio contra muçulmanos na Guerra da Bósnia.

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Aos 7 minutos do segundo tempo, Xhaka empatou com uma bomba de fora da área. Foi à beira do campo e cruzou as mãos bem espalmadas – não era “a pomba da paz”, como tentou explicar o locutor global, e sim, a águia de duas cabeças, presente na bandeira albanesa (e na camisa da mamãe Xhaka em 2016). Nos acréscimos, Shaqiri puxou um contra-ataque e virou o jogo. Foi à mesma câmera, tirou a camisa e, à frente do abdome cheio de gominhos, reapresentou a águia.

O técnico suíço, Vladimir Petkovic, ele mesmo um bósnio de nascimento, preferiu colocar panos quentes na discussão e, ao menos em público, lamentar “a presença da política no futebol”. O treinador sérvio, Mladen Krstajic, ficou mais pistola que o canarinho brasileiro: xingou os jogadores e criticou o árbitro, dizendo que eles tinham que ser “mandados para Haia”, em referência à cidade holandesa que sedia o tribunal que julga crimes de guerra.

A Fifa agiu rapidamente, mas de leve: multou Xhaka e Shaqiri em 10 mil francos suíços cada um; a Federação da Sérvia e o técnico Krstajic pagaram cinco mil francos suíços, o que dá cerca de 20 mil reais (convenhamos, dinheiro de pinga no mundo do futebol internacional e que foi pago por meio de uma vaquinha de torcedores do Kosovo). Mais do que a grana, ficou o recado: não misturem as coisas. Como se fosse possível.

Como se fosse possível não pensar se Mbappe e Pogba seriam aceitos como franceses por todo o seu país se não fossem craques da bola; o que seria a vida de Shaqiri sem que a Suíça acolhesse sua família; quantas vezes Pepe não foi ofendido na terrinha e em outros lugares por causa da pele mais escura, Pepe cuja seleção de Portugal teve como primeiro grande craque um negro moçambicano, Eusébio. Como se fosse possível esquecer, quando a bola rola, que o futebol é um microcosmo do planeta, em toda a sua amplitude, um ponto de partida para reflexões mil sobre a vida.

E ainda há quem chame a Copa de pão e circo. Esses aí, eles não sabem de nada.

Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas , sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.

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