Porque é que em Portugal o 8 de Março de 2018 não ficou para a história
Marcha promovida a 10 de Março pelo Movimento Democrático de Mulheres, em Lisboa. Foto por Sérgio Felizardo.

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Feminismo

Porque é que em Portugal o 8 de Março de 2018 não ficou para a história

Fazemos gala de sermos a "geração mais avançada", aquela em que o casamento gay é tema de anteontem e em que todos somos muito à frente... mas, depois, parece que não é bem assim.

Em 2017 a Europa tremeu quando um homem que se gabou de agarrar as mulheres pela… bem, pela vagina, tomou posse como Presidente dos Estados Unidos da América. Fez-nos tremer a vários níveis, mas também serviu para nos abrir os olhos para uma questão fundamental: como é que um homem que, abertamente, descarta e sexualiza metade da população mundial chega ao cargo mais poderoso do cenário politico norte-americano e mundial?

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Claramente percebemos que não andámos a dar a devida importância a este tema. Então, saímos à rua, gritámos por igualdade, pelo direito a decidir pelo nosso corpo, pela igualdade salarial, pelo fim de sermos tratadas como objectos sexuais. Gritámos por tudo isto em Março de 2017 - um pouco por todo o Mundo - e acabámos o ano a denunciar abusos sexuais no ambiente de trabalho (em Portugal, ainda assim, quase nada), praticamente em todos os sectores do mercado de trabalho - até na VICE. Andámos uns passos para a frente… baby steps.


Vê: "Conhece a adolescente que criou o poema 'Nasty Woman'"


Chegou 2018 e, com ele, a convocação de uma greve feminista a nível internacional. Assim, uns dias antes do 8 de Março, comecei a preparar-me para aquela que seria a minha primeira acção política como adulta, a minha primeira participação no direito à greve como trabalhadora, como mulher que acredita que a união faz a força. Ah, a emoção!

Recebi no e-mail do trabalho várias explicações por parte dos Recursos Humanos - quanto é que se descontava no salário, qual era a posição da empresa em relação à causa - e na redacção da VICE em Barcelona tivemos uma reunião para estabelecer como iria decorrer o dia 8, já que o escritório estaria a meio gás. Por toda a capital catalã havia marchas marcadas, discursos, todo o tipo de actividades em torno do Dia Internacional da Mulher.

Estava eu a decidir a que actividades me ia juntar, numa espécie de moca de energia revolucionária e vontade de mudar o Mundo, quando decidi dar uso à magia do WhatsApp para manter em contacto grupos inteiros e, ao meu grupo de amigas, enviei a mensagem “Meninas! Quem vai fazer greve?”. As respostas, todavia, não foram as que esperava. Como boas millennials que somos, muitas de nós trabalham no estrangeiro e dessas a resposta foi positiva e entusiasmada. No entanto, por parte das que trabalham em Portugal, a coisa ficou-se na maior parte dos casos por um esclarecedor: “Greve? Que greve?”.

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Não sabiam. Estamos na era da informação e elas não sabiam. E, antes de insultar o seu intelecto ou discorrer sobre a falta de atenção ao Mundo que as rodeia, preferi questionar-me: estariam as empresas a dar a conhecer os direitos das trabalhadoras como a minha tinha feito? Que meios de comunicação nacionais é que andavam a cobrir o assunto? Quantos apoios é que os movimentos feministas em Portugal conseguiram para que a greve tivesse, de facto, impacto? A resposta, a todas estas perguntas foi simples: “Não o suficiente”.

Marcha promovida a 10 de Março pelo Movimento Democrático de Mulheres, em Lisboa. Foto por Sérgio Felizardo.

Em Portugal, a Greve Internacional de Mulheres foi convocada pela Assembleia Feminista de Lisboa (AFL) - organização não institucional, sem financiadores, fundada há apenas um ano. Em declarações prestadas à VICE, a AFL garante que, "apesar de desiludida com a ausência de apoios e de cobertura mediática", a Marcha convocada para dia 8 em Lisboa "foi um sucesso". “Há um ano atrás estavam aproximadamente 300 pessoas na concentração que teve lugar no Rossio, enquanto este ano foram à volta de mil e 500 pessoas. A Rua do Ouro estava completamente cheia, foi surpreendente”, sublinham as responsáveis da Assembleia. E acrescentam: "A única coisa que faltou foram meios de comunicação". Não estava lá ninguém para reportar, fotografar e cobrir o momento. Como se mil mulheres na rua a implorarem por igualdade não fosse digno de notícia.

[Nota do editor: Nesta ausência de comunicação social, inclui-se a VICE Portugal visto que, como tivemos oportunidade de explicar às organizadoras, não recebemos informação atempada sober a iniciativa e apenas tivemos conhecimento da mesma um dia antes, tal como avançámos aqui. Foi-nos, por isso, completamente impossível acompanhar a Marcha. Estivemos, sim, presentes na manifestação que decorreu também em Lisboa, dois dias depois, a 10 de Março, acção em que, aliás, captámos as imagens que ilustram este artigo].

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"Desde o Supremo Tribunal de Justiça, onde se evocou aquela infame sentença machista, passando pelo Banco de Portugal e a acabar no Rossio, gritou-se pela igualdade de género e de direitos, pela igualdade de respeito, de salários, de oportunidades e de tratamento", salienta a AFL à VICE. Gritou-se pelas ruas, porque o sentimos na pele, porque todas as mulheres sabem o que é passar por homens e ouvir "piropos ordinários, queixarmo-nos e levar com um "mas também com essa saia, o que é que estavas à espera”.

Sabemos que é mais difícil sermos contratadas porque podemos engravidar, sabemos o que é ter medo de andar sozinhas na rua à noite, sabemos o que é estar a sofrer de dores menstruais e o nosso patrão não nos levar a sério. Não podemos falar abertamente de sexo porque nos chamam porcas, não podemos não querer sexo sem que nos chamem púdicas. Não podemos beber muito nem dizer palavrões, porque "isso nas mulheres fica feio".

Marcha promovida a 10 de Março pelo Movimento Democrático de Mulheres, em Lisboa. Foto por Sérgio Felizardo.

Na União Europeia a desigualdade salarial entre homens e mulheres é um problema real. Lideram no ranking - dados de 2016 - a Estónia (25,3 por cento), a República Checa (21,8 por cento), a Alemanha (21,5 por cento), o Reino Unido (21 por cento) e a Austria (20,1 por cento). No caso português, segundo dados de 2017, estamos em terceiro no que toca a desigualdade dentro de quatro paredes, ou seja, “há uma maior percentagem de mulheres do que de homens a fazer tarefas domesticas, cozinhar e cuidar dos filhos diariamente” - e quando dizem percentagem maior, referem-se a uma diferença de 19 por cento dos homens em comparação com 78 por cento das mulheres.

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As coisas têm vindo a mudar, claro. Vivemos na época mais tolerante até agora - mas ainda falta aquele "bocadinho assim". Queremos sentir-nos seguras, queremos as mesmas oportunidades e direitos. Como se gritou pelas manifestações feministas pelo Mundo fora: o feminismo nunca matou ninguém, o machismo mata todos os dias. Mais precisamente, mais de metade das mulheres assassinadas a nível mundial foram mortas por homens com quem tinham relações intimas. É preciso que a imprensa debata estes temas, que as empresas entrem na equação e protejam as suas trabalhadoras - é preciso sair à rua e fazermo-nos ouvir.

Em algumas empresas, o Dia internacional da Mulher foi comemorado com cocktails, cursos de maquilhagem e outras actividades do estilo, que não só mostra a falta de conhecimento sobre a data, que é uma data completamente política, como chega a ser insultuoso - oferecemos um blush e uma caipirinha e até se esquecem que há uma greve? E ainda podemos olhar para elas a andar pelo escritório mais bem maquilhadas e meias alegres o dia todo!

Marcha promovida a 10 de Março pelo Movimento Democrático de Mulheres, em Lisboa. Foto por Sérgio Felizardo.

Falei com algumas mulheres em Portugal, que não fizeram greve, para tentar perceber como é que - e se - as suas entidades patronais lhes tinham comunicado o dia. A pergunta foi simples: No teu trabalho, o que é que te disseram - ou o que é que aconteceu - sobre a greve internacional pela igualdade de direitos das mulheres?

“Aqui não explicaram nem falaram de uma possível greve. O máximo que aconteceu foi recebermos um e-mail com 'Feliz Dia da Mulher'. Mas, este tipo de empresas, de consultoria, não está sensibilizada para este tipo de assuntos. Nem querem que as pessoas percam tempo útil de trabalho em greves. Eu gostava de ter feito! - Teresa, auditora, 24 anos

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“Nada. Ninguém falou disso aqui. Eu ainda fui perguntar, mas as pessoas com quem falei disseram-me que não sabiam nada sobre qualquer”. – Mariana, controller financeira, 24 anos

“Nem se falou sobre o assunto. Estive o dia todo em reuniões, cheguei a casa às 22h00, nem tive tempo de ver notícias. Essa foi a minha greve”. - Glória, advogada, 52 anos

“Na minha empresa nem e-mail, nem comunicação interna, nem qualquer festejo foi feito para as colaboradoras da loja. Se não fosse a campanha especial só para as clientes ninguém saberia. Como te digo, foi um dia muito normal. Normal a mais para um grupo em que 70 por cento são mulheres”. - Mariana, gestora, 25

“Na verdade não ouvi ninguém comentar nem comentei a greve com ninguém. As mulheres portuguesas demoram a aderir a este tipo de movimentos… Também não ouvi nada sobre isso nos noticiários, não sei se houve participação significativa ou não”. - Teresa, engenheira agrónoma, 50 anos

“Aqui foi um dia igual aos outros, não se falou de greve nem dos direitos das mulheres. Deram-me uma flor”. – Maria, gestora de activos, 25 anos

Esclarecedor!


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