Identidade

Os comentários transfóbicos no Instagram de Caitlyn Jenner relembram-nos que o Mundo ainda é uma merda

"Bom dia, Bruce"; "Que homem bonito"; "És doente".
Instagram de Caitlyn Jenner
Captura de ecrã via Instagram.

Como disse uma vez a nossa querida Ana Iris Simón num artigo para a VICE Espanha, não és aquilo que comes, és o que te aparece no cabrão do modo explorar do Instagram. E eu, ao que tudo indica, sou Kardashian. Foi assim que, ao navegar pela rede social que mais tempo e saúde mental nos consome, fui parar ao Instagram da Caitlyn Jenner.

Que o Mundo é um lugar repleto de horrores, tristezas e gente má não é novidade. Que há muitas pessoas intolerantes com os outros e em campanha para os destroçar e dizimar as liberdades que temos - todos - vindo a conseguir conquistar, também não. Mas, por muito realista que se tente ser, há momentos em que semicerramos os olhos para ver apenas o lado bom das coisas. Em que nos fingimos sonhadores e optimistas.

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O Instagram é um desses sítios. É claro que o algoritmo só nos mostra aquilo que sabe que queremos ver, tornando fácil cairmos no erro de acharmos que o Mundo vai, cada vez mais, de encontro ao que gostaríamos que fosse. Mais justo, mais igualitário, em que podemos ser quem somos e ser respeitados por isso. Estando eu neste #mood cor-de-rosa, a realidade sombria com que me deparei nos comentários às fotografias da Caitlyn Jenner caiu-me em cima que nem balde de água fria.


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Passaram-se quatro anos desde a transição de Caitlyn e não há alma neste mundo virtual que não tenha dado por isso. Foi a transição mais viral de sempre, acompanhada no reality show Keeping Up With The Kardashians e, Caitlyn, chegou até a ter a sua própria série, ainda que tenha estado pouco tempo no ar. Serviu de modelo para muitas pessoas que se sentiam no corpo errado, mas não sabiam como expressá-lo, ou estavam aterrorizadas com as possíveis reacções alheias.

É verdade que, ao tornar algo tão íntimo num tema tão mediático, público e até sensacionalista, abrem-se portas para que as pessoas se sintam à vontade para comentar e acharem que, de certa forma, estão no direito de o fazer. É esse mesmo o preço da fama e da exposição pública. Portanto, que me tenha encontrado com milhares de comentários de todos os tipos não é chocante nem é nada que não aconteça em toda e qualquer caixa de comentários por essa Internet fora. O que me surpreendeu realmente foi a quantidade de comentários transfóbicos e a leveza com que as pessoas os publicam. Até em fotografias de paisagens, partilhadas por Caitlyn no seu Instagram, há uma quantidade inimaginável de idiotas a tratá-la por Bruce, com frases como "Olá, senhor", “És um homem” ou “És doente”.

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Surpreende-me que, afinal, o avanço nas mentalidades tenha sido tão pequeno e tão de nicho. Que as pessoas ainda estejam empolgadas com a ideia de retirar liberdades, direitos e respeito a quem tanto lutou para os conseguir. Que tantos se sintam na posição de decidir sobre vidas alheias que, em nenhuma forma, interferem com as suas próprias. E surpreende-me, acima de tudo, que haja tanta gente a desviar-se do seu caminho, para se deslocar até um Instagram que não gosta nem segue, simplesmente para deixar comentários maldosos, provocadores e intolerantes.

Sei que parece ingénuo da minha parte. Sei que não me devia deixar afectar tanto, até porque assim ganham eles, esses cobardes escondidos atrás de ecrãs de computadores e contas de Instagram falsas. Mas, a questão fundamental é que, por muitos seguidores, por muita fama, por muita exposição que se tenha, ao fim e ao cabo somos todos pessoas. Somos todos seres humanos com fragilidades, calcanhares de Aquiles, sentimentos e expectativas. E estamos todos no mesmo barco, todos aqui, a vivermos juntos esta penosa jornada pela Terra.

Não, a Caitlyn Jenner não é perfeita e a história do atropelamento deixou muita gente chateada, eu inclusive, mas isso não tem nada a ver com o seu género. E não, não é por eu achar que toda a gente tem direito a ser quem é que tu tens que concordar comigo. Mas, que te dediques a espalhar ódio, a deixar comentários apenas com o propósito de magoar outrem, comentários que fazem do Mundo um pior sítio para se viver, é o que torna a Internet na "Besta do Apocalipse".

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E é uma pena que assim seja, é profundamente triste que, com tanto que cada um de nós já tem com que se preocupar nas nossas próprias vidas insignificantes de trabalho e tupperwares, guardes tempo não para aqueles que amas, mas sim para tentares deitar abaixo gente que já provou ter muito mais coragem na ponta de uma unha de gel do que tu alguma vez terás em toda a tua existência de troll da Internet.


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