Politică

Um instituto britânico quer tornar comida, abrigo e transporte público grátis para todo mundo

'Serviços Universais Básicos' é uma ideia radical do UCL Institute for Global Prosperity. Mas como isso poderia funcionar?
The Case for Making Food, Shelter and Public Transport Free for Everyone
Um convidado no evento do Food Cycle em Finsbury Park, norte de Londres. Foto cortesia do Food Cycle.  

Às 10 da manhã de uma quarta-feira, uma van de entregas chega a um centro comunitário de igreja em Islington, norte de Londres. O veículo carrega alimentos doados por supermercados próximos, vegetais, frutas frescas, pão e leite. Uma equipe de voluntários traz a comida para dentro e analisa os produtos disponíveis. Eles são bem treinados. Leva só alguns minutos de discussão antes de o cardápio ser decidido. Todo mundo se move rapidamente para preparar o banquete, antecipando a hora do almoço, quando uma multidão chega e enche o salão de barulho.

Publicidade

Tudo isso acontece graças ao Food Cycle, uma organização de caridade que fornece refeições comunitárias gratuitas em cidades de todo o Reino Unido. Eles trabalham com outras organizações de redistribuição de alimentos como The Felix Project, tudo num esforço para impedir que produtos comestíveis apodreçam nos corredores de mercado enquanto oito milhões de pessoas no Reino Unido passam fome.

“Como organização de caridade, tendemos a focar em reduzir a fome e a solidão”, explica Camilla James, gerente de comunicação do Food Cycle. “Procuramos pessoas experimentando pobreza de alimentos por renda baixa ou pessoas isoladas de outras maneiras, vivendo sozinhas ou sem ter onde morar.”

Esse número impressionante – e o serviço que o Food Cycle e The Felix Project são obrigados a fornecer pela falta de um sistema de bem-estar social adequadamente financiado – contrariam a visão que a Inglaterra tem de si mesma como uma nação civilizada. Não é só comida que muitos são obrigados a passar sem. Um relatório de 2018 do Lloyds Bank descobriu que 12% de pessoas de 11 a 18 anos não tem conexão de internet em casa no país, e a Joseph Rowntree Foundation recentemente revelou que quatro milhões de britânicos vivem na pobreza apesar de ter emprego. Acrescente a isso a crise de habitação e pessoas sem-teto, e você fica com algumas perguntas desconfortáveis. Num país tão rico como a Inglaterra, por que tantas pessoas estão vivendo sem necessidades básicas como abrigo, comida e acesso à internet?

Publicidade
food-cycle-universal-basic-services

Voluntárias do Food Cycle em Peterborough. Foto cortesia do Food Cycle.

Perguntas como essa são bem-vindas entre acadêmicos do Institute for Global Prosperity (IGP), da University College London. Em 2017, eles divulgaram um relatório que pedia uma grande revisão de como pensamos sobre fornecimento de bem-estar social no Reino Unido. O relatório apresentava os “Serviços Básicos Universais” (UBS em inglês), a ideia de que as exigências básicas de todo mundo – comida, abrigo, transporte público e acesso à internet – deveriam ser totalmente gratuitas.

Isso significaria que cada lar no Reino Unido receberia £20 [cerca de R$ 100] por mês para cobrir o custo de um pacote básico de internet banda larga. Autoridades locais teriam orçamento extra para estender programas de alimentação como o “Meals on Wheels”, fornecendo comida grátis em massa exigida pelas necessidades de suas comunidades locais. O fornecimento atual de moradia social seria dobrado, oferecendo casas para quem precisa sem aluguel, com água e luz inclusos. O “Freedom Pass”, o passe de ônibus grátis dado para pessoas acima de 60 anos, seria estendido para todas as idades.

Andrew Percy é codiretor da Social Prosperity Network do IGP, que produziu o relatório. Ele entende que a ideia de comida e moradia grátis pode parecer fantasiosa para alguns. “A grande barreira que encaramos é tentar combater uma mentalidade que, nas últimas duas décadas do século 20, se tornou muito individualista”, ele me diz. “A ideia, falando no geral, é que a economia nos ajudou a atingir uma vantagem competitiva num mundo com recursos limitados. No século 21, na verdade é uma questão de sobrevivência mútua num contexto de recursos limitados.”

Publicidade

De todas as suas propostas, Percy diz que as pessoas acham a ideia de refeições gratuitas a mais estranha. “A reação imediata da maioria das pessoas é pensar em algo tinha um banco de alimentos, com bandejas de comida em lata, ou tipo uma cozinha de sopa da era vitoriana. Temos que dizer sempre 'Não, abra sua mente um pouco mais, use sua imaginação'.”

food-cycle-universal-basic-services

Alimentos doados para o Food Cycle num evento em Peterborough. Foto cortesia do Food Cycle.

No almoço do Food Cycle em Islington, a cena não poderia estar mais distante de uma cozinha de sopa vitoriana. Em menos de duas horas, os voluntários criam um gazpacho com croutons frescos, chilli vegetariano com tortilhas e duas saladas, além de uma sobremesa de pudim de arroz e salada de frutas. Cerca de 20 pessoas aparecem pra comer; alguns são aposentados que gostam do aspecto social do almoço além da refeição, enquanto outros estão em situação de rua. Os voluntários garantem que todo mundo seja bem recebido, e muitas pessoas vêm porque a comida é realmente boa. “Quem fez o gazpacho?”, pergunta um dos convidados, abordando a cozinha para fazer seu agradecimento, “ele me fez sorrir, fez mesmo”.

Refeições comunitárias gratuitas não são uma ideia nova. Templos hindus oferecem esse serviço há séculos, a Finlândia começou seu programa Mesa Compartilhada em 2014, ajudando comunidades a transformar doações de alimentos em refeições grátis semanais. O próprio Food Cycle agora tem 12 cozinhas em Londres e várias outras pelo país.

“É uma equipe pequena e rápida”, diz a líder Anna Hargreaves sobre os voluntários trabalhando na cozinha hoje. “O Food Cycle sabe escolher as pessoas certas, eles te empoderam para fazer as coisas que você quer e te dão muito apoio. Eles te encorajam a descobrir como você quer fazer as refeições.” E sim, o Food Cycle parece ser um mapa para como o UBS pode funcionar. Equipes pequenas e locais empoderadas para servir sua própria comunidade.

Publicidade

O grande ponto de interrogação sobre o UBS é financiamento. A Social Prosperity Network estima que as refeições e viagens de ônibus grátis custariam, respectivamente, £4 bilhões e £5,2 bilhões anualmente, o que é cerca de 2% dos gastos do governo num ano normal. Mas as propostas mais ambiciosas deles – internet grátis e mais moradias sociais – são mais caras. Para financiar tudo isso, a Social Prosperity Network recomenda uma redução significativa no subsídio de impostos pessoais, cortando o limite atual de £12.500 para apenas £4.300 por ano.

Claro, seria preciso uma grande mudança de visão dos contribuintes, o que Percy reconhece ser um desafio. “A pergunta original por trás do UBS é: como orientamos a sociedade para um século 21 sustentável?”, ele diz. “É preciso olhar para os gastos e recursos através das lentes do bem público, não da satisfação de um impulso consumista. Quando as pessoas criticam a ideia, geralmente é argumentando que estamos tirando as escolhas pessoais delas, mas colocar um ônibus gratuito na rua não significa obrigar as pessoas a andar nele.”

Em 2017, o relatório do IGP sugeria um período de cinco a dez anos para implementar o UBS. “Governos locais teriam que fazer consultas e desenvolver esses serviços, mas não estarão criando nada novo”, diz Percy. “Temos a experiência e capacidade de fazer essas coisas, só precisamos implementar tudo gradualmente.”

Enquanto a insegurança alimentar aumenta na Inglaterra e buscamos soluções lideradas pela comunidade para a crise climática, talvez agora seja a hora certa para ideias radicais como UBS.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.