Garcia Gang reúne a geração musical de um matriarcado afrofuturista
Aisha, Abebe Bikila o BK', Akira, Ainá (embaixo), Hodari, Yaminah e Aori. Foto: Matias Maxx/VICE

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Garcia Gang reúne a geração musical de um matriarcado afrofuturista

Aori, Ainá, Hodari, Aisha, Yaminah e a matriarca da família Lydia Garcia se reuniram pela primeira vez em um palco no Rio para celebrar a história de empoderamento negro da família Garcia.

Um mar de turbantes, tranças, e cabelos black power desfilaram na frente de um enfumaçado palco da Lapa na sexta-feira (10). Ali no meio, a professora de música e militante negra Lydia Garcia de Mello não escondia o sorriso, subia ao palco para dançar e fez até um “quadradinho”. Em determinado momento pegou o microfone e disse algo como, "vocês acham estranho uma senhora de 80 anos aqui? Nós estamos onde nós queremos estar. Mulheres, homens, gays e lésbicas!”. Três gerações de descendentes da estilista negra Isabel Garcia (mãe de Lydia), compareceram para celebrar a estreia do Garcia Gang, festa que reuniu pela primeira vez no palco os primos Aori, Ainá, Hodari, Aisha e Yaminah. Os nomes de origem africana não são mera coincidência.

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Militante histórica do movimento negro da década de 70, Lydia iniciou a tradição de nomes africanos batizando de Kenya, Mali, Ialê, Kwame e Luena os cinco filhos que teve com Willy Mello, artista plástico e desenhista de arquitetura conhecido como OluMello. Eles deixaram o Rio em 1958 quando Willy foi aprovado num concurso da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, onde trabalhou com Oscar Niemeyer acompanhando todo o planejamento arquitetônico da cidade. Formada em música, Lydia tornou-se a primeira professora de música de Brasília e ajudou a fundar o Centro de Estudos Afro Brasileiros e o Conselho de Defesa dos Direitos do Negro do Distrito Federal. Embora a arte esteja tão presente no sangue da família quanto a militância e o orgulho afro, a música enquanto profissão pulou uma geração, voltando a aparecer quando o primeiro neto da Lydia subiu num palco no final dos anos 90 sob alcunha de Aori, abreviação do seu nome real Anworianaga, um nome tribal trazido pelo seu pai que era do Gabão e significa algo como “todos são iguais” ou “as outras pessoas também são gente."

Lydia Garcia de Mello: "Vocês acham estranho uma senhora de 80 anos aqui? Nós estamos onde nós queremos estar". Foto: Matias Maxx/VICE

A ideia de formar o Garcia Gang surgiu no ano passado na festa de 80 anos da Vó Lydia, que reuniu toda a família em Brasília. A pilha veio do Aori e o nome de sua irmã Ainá. “A visão é ser uma família musical mesmo, que celebre a excelência, os valores que a gente tem na nossa historia, nossa cultura e unidos a gente multiplica os resultados” explica o Aori. “Eu como o membro que tem mais experiência no mercado musical, o Hodari com esse trabalho que ele tá fazendo agora super legal, a Ainá também com um projeto super consistente de rap, a Aisha e Yaminah que são DJs e personalidades”. A família musical também conta com o rapper BK', apelido de infância de Abebe Bikilia, batizado em homenagem ao lendário maratonista Etíope que foi o primeiro homem a ganhar duas maratonas olímpicas, sendo a primeira descalço.

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Nerd e amante dos quadrinhos e videogames numa época em que isso não era lá muito popular Aori era um moleque tímido que nunca imaginou ser músico até conhecer o hip hop na adolescência. “Foi a plataforma pra romper essa barreira, ter uma voz ativa e tal, acho que pra todo mundo da família foi uma surpresa me ver no palco cheio e atitude, falando alto pra caralho. Nunca imaginei que esse trabalho, essa profissão de MC, fosse inspirar uma galera a criar um novo ramo na família."

Aori, Yaminah e Aisha. Foto: Matias Maxx/VICE

Não foi por demagogia que horas antes do inicio da festa, no programa de rádio Hip Hop Mix, questionado pela apresentadora Diana Bouth sobre um rap que o influenciou na adolescência, Hodari não hesitou em responder o “Melô da Zoeira”. “É uma musica importante pra nossa família. É uma musica que mina avó canta, é a musica que as bisnetas da minha avó cantam. Então eu citei essa influencia no rap nacional por que foi uma musica que, além de contar sobre o contexto da Lapa, ela conta da história da nossa família pelas entrelinhas. Porque minha família foi toda criada por ali, na Rua do Riachuelo, então tem histórias desde a época da minha bisavó, a Madame Garcia. Tem cinco gerações da nossa família lá.”

Criados pela bisa

Foi lendo o livro Casa D’Água que a jovem Kenya escolheu o nome Ainá para sua filha, um nome em Banto que significa “a que traz prosperidade”. “Eu gosto muito do meu nome, e estou num momento que ele traz prosperidade pra mim. Continuo essa tradição, botei o nome da filha que tive com meu marido, o Akira Presidente, de Nandi, que é a mãe do Shaka Zulu, o rei da África do Sul, dos Zulus, e significa 'mulher de auto estima'". Como Kenya teve seus filhos muito nova, para conseguir concluir a faculdade e trabalhar contou muito com a ajuda da bisavó deles. Segundo Ainá, “a gente ficava bastante tempo com minha bisavó, e ela era uma pessoa muito elegante, muito chique, muito inteligente, muito informada. Ela fazia roupas de alta costura para mulheres chiques e elegantes da sociedade carioca nos anos 50 a 80. Ela criou a gente e deu toda essa base de empoderamento, de elegância, de inteligência e de consciência negra. Todo esse sentido de Africa Is Future ela já tinha naquela época."

Aisha e Yaminah. Foto: Matias Maxx/VICE

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Aori, que apresentou no show seu próximo single “Date”, com uma base meio dancehall, meio reggaeton produzida pelo Alexandre Basa, também guarda muito carinho dessa época. “Eu cresci envolvido com alfinete, agulha, pano, tesoura e tecido, então nada disso pra mim é novidade. Tanto que tempos depois eu até fui trabalhar na indústria da moda esportiva. Ela sempre teve uma postura, uma elegância, uma naturalidade para lidar com diferentes tipos de pessoas, isso me inspira até hoje. Lidar com gente simples, com socialites, é uma coisa que me guia”. Vó Lydia também foi importante para Aori. “Ela é essa força cultural tremenda, sempre primou pela excelência, pela exigência assim das coisas que a gente fizesse na vida, inclusive minha avó bancou meu curso de Inglês por sete anos, e isso foi uma coisa determinante na minha vida para abrir meus horizontes. Foi um diferencial ela ter acreditado nesse potencial até mesmo quando eu não acreditava. Tive muita sorte de ser abençoado de nascer numa família que privilegia tanto a arte e a cultura assim. Sempre tive entendido que educação a gente faz em casa, que os valores de verdade não são esses que a gente vê na televisão, então isso me ajudou muito a suportar a pressão de crescer numa cidade tão preconceituosa quanto o Rio.”

A geração de Brasília

Yaminah, cujo nome tem origem muçulmana e significa “a escolhida”, nasceu em Brasília em 1997 na casa que desde a construção da cidade foi referenciada como a primeira embaixada africana de Brasília. Ela explica: “minha avó Lydia Garcia e meu avô Willy Mello recebiam e traziam negros brasileiros e estrangeiros em casa. Meu irmão mais velho Hodari sempre foi muito ligado comigo em nossa criação, me direcionou para a música". Com 15 anos, Yaminah focou nos instrumentos de sopro, com 16 começou a monitorar aulas de musicalização infantil e com 17 discotecou pela primeira vez em Brasília na festa #Tombadas Infecciosas. “Em 2016 fui morar no RJ e comecei a discotecar com a minha prima Aisha e até hoje fazemos esse trabalho. Em fevereiro de 2017 fui a Moçambique e conheci um DJ que me apresentou outras formas de discotecagem, ritmos, diferentes sequências e gêneros musicais africanos”. Hoje ela estuda sonoplastia em São Paulo e está começando a produzir. “Comecei a fazer faixas de introdução com textos que sempre falamos no microfone, referências afro-brasileiras e africanas que também introduzimos e misturamos em nosso set.”

Ainá. Foto: Matias Maxx/VICE

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Enérgica e explosiva, Aisha traz um nome que significa “vida” na língua Swahili. Sua mãe havia perdido dois bebês antes dela e seu pai que era angolano trouxe a sugestão de nome para esse bebê que nasceu com vida. Há três anos ela se mudou para São Paulo para estudar atuação, teatro e dança. Além de discotecar com a prima Yaminah, ela trabalha com moda, videoclipes e direção corporal. “Sou aluna mas já venho trabalhando com performance e dança. Escolhi essa linguagem para seguir os passos da minha avó e narrar um pouco da minha história, do meu encontro com a minha ancestralidade, que tem a ver com as minhas pesquisas. Quando eu busco uma música nova, trago a geração atual dos países africanos como Angola, Congo e Nigéria, mudando um pouco esse estereótipo imposto no Brasil que a África tem uma vibe de musica orgânica e tribal, mas vai muito além disso. Então eu busco nas minhas pesquisas formas mais atuais como trap, rap, kuduru, azonto, afrohouse, afrobeats (que não é o afrobeat do Fela Kuti), e aí sempre resgatando essa identidade, essa ancestralidade.”

Estilo, despretensão e uma simpatia ímpar marcam a personalidade de Hodari, nome de origem Zulu que significa “dignidade”. Modelo e tatuador, Hodari explodiu com a música “Teu Popô”, recentemente remixada pela série Poesia Acústica. “Ser criado nos Garcia de Mello é muito importante por que nossa representatividade, toda essa parte cultural de estética negra, sempre foi muito fortalecida. A gente é muito forte de quem a gente é, da nossa essência, dos nossos nomes africanos e nosso cabelo crespo — desde sempre. Uma família majoritariamente de artistas, que sempre me instigou a mostrar quem eu sou, a exaltar a minha parte artística”, lembra Hodari, que acredita que o Brasil todo tem que conhecer Lydia Garcia. “Ela é a matriarca da família — a gente sai junto, vai pro samba. Ela é uma pessoa muito especial, mais do que uma avó. Ela é uma entidade e a gente trata ela como santa mesmo. Eu não sei explicar muito bem com palavras, mas ela é uma pessoa muito especial e que tem que ser estudada. Minha avó é fora de normal, uma pessoa de 80 anos que ainda frequenta festas e volta de madrugada pra casa, é super ativa na noite, viaja o mundo, é uma das frentes na militância negra no Brasil, é uma representatividade muito forte, o Brasil todo tem que saber quem é Lydia Garcia.”

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Hodari. Foto: Matias Maxx/VICE

"Eles tem medo das netas da Lydia"

Um dos pontos altos da noite do Garcia Gang na Lapa foi a exibição do clipe “Perigo” de Ainá, que conta com as coreografias enérgicas de Aisha e Yaminah. A rapper explica que a musica é um conselho. “A gente tá vivendo um momento de empoderamento feminino, e as mulheres estão cada vez mais poderosas, inteligentes e donas de si e de tudo, cada vez mais avançadas. Essa música é pra falar para os homens jovens que eles também tem que correr atrás, avançar, acompanhar o ritmo das mulheres né? Tem que conseguir conquistar seu espaço junto, de igual pra igual. Não é uma competição, é uma companhia”. O clipe foi dirigido pela atriz Polly Marinho, que é amiga de Ainá desde os seis anos de idade. “A gente estudava numa escola tradicional da Lapa e lá devia ter umas duas mil crianças eu acho, mas só umas quatro crianças negras, e uma dessas quatro crianças negras eram eu e a Polly. A gente era amiga, a gente se uniu e se fortaleceu. Ela era de um horário e eu de outro, mas a gente se encontrava sempre no meio do período. Um dia ela saiu da escola e eu fiquei uns vinte anos sem encontrá-la, até que nos reencontrarmos numa festa e nos reconhecermos na hora. Foi lindo, foi mágico e a partir daí a gente nunca mais se separou. Agora estamos produzindo as nossas coisas e realizando os nossos sonhos."

Africa Is the Future

Para Aori, o potencial da família é ilimitado. “Deu pra ver bem isso: a presença da Ainá, a postura, a capacidade de comunicação e o carisma do Hodari, a energia da Aisha e a Yaminah, musicalidade surpreendente. Eu fico muito feliz de participar de algo assim, e espero que a gente possa se reunir logo para fazer musica juntos e tal. Estamos conversando com investidores, apoiadores, alguns selos, e em breve vai ter novidade boa pra galera aí". A festa deve rolar em breve em Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, mas há planos para levar o projeto para Angola, Nova York e Paris. “Tão pintando umas propostas. Esse primeiro show foi uma cápsula, um protótipo que a gente criou para mandar essa mensagem para o mundo."

Vó Lydia. Foto: Matias Maxx/VICE

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Aisha. Foto: Matias Maxx/VICE

Yaminah. Foto: Matias Maxx/VICE

Hodari. Foto: Matias Maxx/VICE

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