Dez anos depois, o 'Cross' do Justice ficou melhor ainda

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Música

Dez anos depois, o 'Cross' do Justice ficou melhor ainda

Um dos discos mais hypados de 2007, contra todas as expectativas, só melhorou com o tempo.

Artigo originalmente publicado no Noisey França.

Em 2007, eu estava me recuperando de anos e anos de audição e envolvimento com a nova música eletrônica parisiense. Na teoria, este tipo de som tem como objetivo deixar a pista fervendo, rejeitando (conscientemente ou não) as regras do house e techno da década anterior. Achava essas regras uma maravilha, até que comecei a considerar a coisa pomposa e anal-retentiva demais por volta da chagada do milênio e do euro. O estilo "French Touch 2.0" — comprimido, perturbado, glitchy — me encantava há tempos, mas finalmente havia ficado de saco cheio de tudo aquilo. Sua saturação sistemática e estrutura hiperativa não funcionavam mais pra mim: tudo parecia coisa de uns caras cheirados com um copo de vodca com energético na mão, os mesmos que te dão um gancho e engatam um monólogo sacal na área de fumantes de onde quer que estejam — tudo isso enquanto não tira os olhos da garota que está afim com medo de que ela fuja e ainda tope dar um tiro com ele no banheiro.

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Durante a noite de Natal de 2006, voltei pra casa ainda sóbrio o bastante para não cair no sono logo de cara. Eu passei a noite inteira procurando por algo bom pra ouvir, sem muito sucesso. Então, por acaso, experimentei uma edição de "Gladys Knight" de Walter Gibbons, perdida em meio aos meus arquivos. Com meus sentidos amplificados pela maconha, percebi que aquela intensa e benevolente manipulação de elementos — uma narrativa momentânea, cheia de dúvidas — dialogava comigo mais do que tudo que tinha ouvido no ano anterior. Pouco depois, esbarrei em "Who's Afraid of Detroit" de Claude VonStroke. Para minha surpresa, o seu suposto "minimalismo" agora me afetava muito mais do que antes. Sendo assim, quando o Justice lançou Cross em junho de 2007, na esteira de um hype brutal — ainda mais intenso do que o que acompanhou Human After All do Daft Punk dois anos antes, pelo que me lembro, não perdendo em nada para o sucesso absurdo de Random Access Memory de 2013 — o negócio cravou em mim mais do que sanguessuga. Não dava pra ignorar.

Antes disso, "D.A.N.C.E" , do mesmo grupo, meio que nos passou a perna com uma sonoridade disco-funk beirando o infantil, que inclusive eu gostava muito — até a 60ª audição, quando tudo começou a ficar simplesmente horrendo e fiquei com nojo daquilo. Quase me senti traído por seu "roquismo" ou melhor, seu neo-roquismo, cheio de referências ao metal e ao rock californiano — dois gêneros que eu nunca consegui dar lá muita bola. Me sentia traído por seu objetivo óbvio e revisionista de fazer rock eletrônico "pra homem", o que, na minha cabeça, atribuía à visão de um mundo pós-gênero ou ao menos pós-masculino. Naturalmente, não tinha a menor vontade de dar uma nova chance ao disco — mas acabei ouvindo-o por diversas vezes ao longo dos meses e anos seguintes: tudo isso por conta de um dos meus colegas de trabalho, um designer carismático chamado François Chaperon. Quando ele ouvia Cross no som que havia colocado no escritório, aquilo parecia lhe colocar num transe incrível ao recortar rostos de celebridades.

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Ao discutir o disco com ele, notei algo simples que até então não havia notado na música do Justice: Gaspard Augé e Xavier de Rosnay também eram designers, então é claro que sua música não tinha como não ter grande apelo visual. Ela era cheia de imagens, compostas da mesma maneira que alguém compõe uma animação. Quase havia algo de marionetes ali no meio na forma como viam seu trabalho, mas o que me incomodava — além das referências roqueiras — era isso. A música da dupla parecia projetada de forma a contemplar ou sofrer por si mesma, em vez de algo a ser sentido. Eu não entendia a algazarra nos shows deles; para mim, era como uma sessão de BDSM chefiada por um autômato que não queria muito fazer aquilo. Me lembrava da cena com a "máquina de aprender" em The Under-Gifted. Não entendia o que os "jovens" ganhavam com essa interação. Ao meu ver, não havia substância ali.

Quando o terceiro disco do Justice, Woman, saiu no final do ano passado, Mehdi Maizi me convidou para falar sobre ele em seu podcast NoFun. Foi ali que pude ouvir Cross mais uma vez. Desta vez, a energia habilmente mensurada do disco e sua arquitetura tresloucada me atingiram em cheio. Lembro de ter lido em algum lugar que, em estúdio, a dupla evitava qualquer traço de espontaneidade. Em vez disso, eles se debruçavam sobre cada som, cada detalhe estrutural por dias e até semanas — como Fagen e Becker do Steely Dan fizeram com Aja e Gaucho . A música era, por definição, coisa de poser — tanto no sentido de "fazer pose" quanto no de 'posar' nossos elementos acústicos favoritos uns aos lados dos outros e então combiná-los da forma mais empolgante possível. Augé e Rosnay passaram muito tempo trabalhando em cima disso, criando sua atmosfera acústica, o que exigia grande paciência até chegarem a algum resultado — este que acabou sendo devorado rapidamente por seus fãs.

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Agora, passados dez anos, esta perfeição calculada se revelou pra mim, especialmente com a distância do caos midiático de 2007. O material se desdobrou belamente, com contrastes e tensões em consonância com pulsos energéticos e auditivos dentro de mim. O lado luminoso e infantil do álbum — que me passou despercebido em 2007 por conta do exagero na pegada macho motoqueiro cheirado de mentirinha da época — agora me parecia óbvio. Penso nos teclados suaves ao final de "Let There Be Light"; do clima romântico esquema Supertramp de "Valentine"; dos vocais compartilhados de "Newjack" e a alegria histérica à la MMM (passando por Oizo) presente em grande parte do disco. No geral, acho um bom disco, funcional no sentido mais nobre do termo, quase tudo lá é aproveitado, apesar da insistência em ressuscitar um rock setentista imaginário.

Por fim — assim como Aja e Gaucho conseguiram reunir os elementos mais interessantes do jazz e crooners de forma a evocar uma Califórnia esterilizada pela negatividade da Costa Leste dos EUA — Cross construiu, obsessivamente, sua visão do rock americano. Um rock meio gorduroso e esculhambado, recriado pela tecnologia e otimizado para ser sempre empolgante.

Então, uma década depois, percebo que Cross deixou claro para muita gente (vendeu dois milhões de cópias, afinal) que boa música é — entre muitas outras coisas — uma série de microeventos, que conduzidos corretamente, podem levar a um prazer exponencial. O disco marcou o fim do refrão em par de versos no mainstream. E como mencionado anteriormente, a linguagem do EDM/brostep (movimento que garantiu a vitória da virilidade sobre meu ideal de música eletrônica de gênero fluido) — e a linguagem do pop das paradas — devem muito às estruturas do Justice. Algo tem que acontecer a cada sete segundos ou o ouvinte deixa de prestar atenção, mas para um trabalho de "posers", Cross até que se provou bastante aberto e generoso, inspirando muitos a criarem música em que uma afinidade com detalhes e diversas referências são elementos cruciais e empolgantes. Pode mesmo ser coisa de poser, mas ainda assim ganha contornos interessantes através do dom da criatividade — música feita explicitamente para outras pessoas, motivada sobretudo pelo desejo de compartilhar.

Enquanto isso, o house e techno que amava na juventude e retomei a audição por volta de 2007, voltou com tudo na França no começo dos anos 10. Isto provavelmente aconteceu como uma resposta ao French Touch 2.0, suas boates, seus praticantes. Talvez essa nova onda deveria ter me empolgado. Mas, infelizmente, ela não conseguiu reativar o meu passado, por motivos que não gostaria de enumerar aqui, porém faço questão de deixar claro que são positivos e até reconfortantes. É ótimo não ter voltado a morrer de amores por Robert Hood, Moodymann e Romanthony. E de qualquer forma, diria que comparados às novas caras do deep house de Lyon, os caras do Justice ao menos tiveram a decência de fazer algo novo livremente, com base nos seus modelos, por mais que os tenha odiado por isso em algum momento.

Etienne Menu é um dos editores-chefe da revista Audimat. Ele está no Twitter .