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Música

Fomos lá e vimos: Sun Kil Moon

Vivemos a morte com Mark Kozelek.

São nove e meia de uma manhã de céu carregado quando me ponho a caminho do Porto com dois amigos. Fazia duas semanas desde que apalavrámos a viagem, reservámos hostel na Invicta e, pacientemente, aguardámos pelo dia de nos fazermos à estrada. À hora do arranque a pica entre o grupo estava no auge: uma trip para girar pela capital nortenha, diggar nos mercados velhos e fechar com um espectáculo do Mark Kozelek aka Sun Kil Moon na Casa da Música, integrado no Optimus Clubbing. No longo caminho que percorremos, rodámos Eminem, N.W.A, Bon Iver, entre tantas outras malhas de géneros disfuncionais que o pessoal gulosamente partilha. Mas o meu gira-discos mental já está com a ampulheta encravada desde a véspera e eu só consigo repetir em silêncio: “Richard Ramirez died today of natural causes / These things mark time and make us pause.” O verso é da música “Richard Ramirez Died Today of Natural Causes”, o primeiro som que alguma vez ouvi de Kozelek, e que integra o mais recente álbum de Sun Kil Moon, Benji, lançado em Março pela Caldo Verde. A reverberação da voz e o encadeamento de uma história de várias passagens verídicas por via de um folk em que as palavras são debitadas numa constância semelhante ao rap (parece paradoxal, mas oiçam e logo vão perceber) era algo como nunca tinha ouvido e, daí, prometi-me que iria assistir a um concerto do Kozelek assim que ele voltasse a Portugal, mesmo sabendo de antemão que o folk mais pausado nem é dos estilos que mais me atraem. Fui à descoberta, desta vez no Porto, por sinal uma das minhas cidades favoritas no país, o que se tornou numa win-win situation. Chegamos à Casa da Música às 23 horas e enquanto o elevador nos transporta para o andar da sala de espectáculos, oiço soar os primeiros acordes da noite. Era “Black Kite”, um acústico minimalista do álbum Among the Leaves. Quando finalmente trespassámos as largas portas de madeira de acesso à sala, o anfiteatro, às escuras, com poucos focos de luz amarelecida e azul no palco, lotado e absorto em Kozelek, aplaude vigorosamente a escolha para a abertura. “How y’all doing?”, pergunta o músico de Ohio. Estamos óptimos e prontos para ouvir o que se segue, sem esquecer o Richard Ramirez. Sento-me a cinco filas de distância do palco no exacto momento em se solta a guitarra de “Carissa”, de Benji, um riff de tons leves acompanhado por uma voz que vive e se entrega às letras, por vezes de forma mais arrastada e menos perceptível, e noutras ocasiões mais esticada no timbre, gritada como quem se solta de uma prisão. Em palco, Kozelek entra em transe e nós deixamo-nos levar pelas suas histórias sobre a morte e a paixão pelos seus próximos. Vivemo-las ali, com ele. Seguem-se “I Can’t Live Without My Mother’s Love”, e aqui já Kozelek solta as cordas vocais e carrega na mensagem; e “Truck Driver”, que vive praticamente de um único acorde, como um quadro de cor única. E eis que chega a vez de “Dogs”, ou seja, Kozelek e os seus primeiros amores e paixões, e o público a vibrar com as oscilações humorísticas da sua voz: ora é mais expansiva pela recordação das “primeiras vezes”, ora se torna mais sombria à medida que encara o fim dessas experiências e sensações. “I Watched the Film the Song Remains the Same” e “Micheline”, com Kozelek numa autêntica fusão com a guitarra que dedilha fervorosamente, e em sintonia com a plateia, antecedem a mais esperada e, por sinal, a mais aplaudida: “Richard Ramirez Died Today of Natural Causes”. E aqui não estou a ser tendencioso por ser, de longe, a melhor música que ouvi durante este ano. A versão ao vivo é mais energética e arrockalhada — mérito para Vasco Espinheira, guitarrista dos Blind Zero que acompanha a banda na sua digressão na Europa, que puxou bem dos tons eléctricos neste som — e para Chris Connely, nas teclas, que apostou num toque mais profundo e obscuro numa música que é uma sucessão de mortes e eventos entrelaçados num storytelling que é contado sem falsas melancolias, mas antes enfrentado como uma inevitabilidade. Antes de finalizar o concerto com o folk mais acelerado e palpitante de “I Love My Dad”, Kozelek ainda faz um desvio por “By the Time I Awoke” e “Ceiling Gazing”, de Perils from the Sea, álbum que produziu no ano passado com Jimmy LaValle e que é mais sintetizado, dreamy e de teclados. O espectáculo termina com um público ainda fechado na redomas das histórias de Kozelek, contadas com a mesma energia com que certamente foram vividas e partilhadas agora numa cidade que tem muito para contar sobre a vida, a morte e o que se segue. Depois de um concerto em que o difícil seria fazer melhor, deixamos a sala e abandonamos a Casa da Música através das escadas luminosas no exterior do edifício. A noite do Porto leva-nos e nós, agora em voz alta, dizemos-lhe: “Richard Ramirez died today of natural causes / These things mark time and make us pause.”