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Música

Onze Anos Depois, um Réquiem Para a Rio Parade

Era 2003 quando a primeira e única edição do evento reuniu mais de 200 mil pessoas no Rio de Janeiro. Passada mais de uma década, dois dos seus organizadores falam dos feitos e das tretas desse carnaval fora de época movido a música eletrônica.

Há mais de uma década jaz este que foi um dos maiores eventos de música eletrônica do Brasil. O resumo dessa complexa ópera é que depois do megassucesso da sua primeira e única edição, a festa colapsou em meio a uma fogueira de vaidades. Os sócios da festa eram uma mistura de jovens que produziam e consumiam música eletrônica com homens de negócios - uma sociedade que, talvez por isso mesmo, não tenha ido pra frente. Para mim, à meia-noite daquele ano, um ciclo se fechou. A história poderia ser a resenha de uma tragédia grega, com os cariocas sendo conduzidos, em 2003, aos Campos Elísios da música eletrônica somente para serem jogados no Tártaro da incompetência e esquecimento nos anos seguintes. O evento segue em seu hiato sem prazo de validade para acabar. Esse marco na história da música eletrônica carioca é a Rio Parade.

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Eu fui um dos produtores do evento. Levado por um amigo suíço, também produtor e espécie de porta-voz do evento, o Luzi, me juntei à equipe em abril de 2003, dois meses antes da festa ir para rua. Ao todo, éramos dez pessoas trabalhando em um escritório em Botafogo.

Para nós do staff, aquele oito de junho começou tenso. Pairava um enorme ponto de interrogação sobre nossas cabeças. Será que tudo sairia conforme o planejado ou corríamos o risco de rolar água no nosso chopp - novamente? Novamente porque Cesar Maia, o então prefeito do Rio na época, soltou um decreto que barrava a festa na última hora. O Rio Parade aconteceria no dia 20 de janeiro daquele ano, durante o feriado de São Sebastião, na orla de Copacabana. Depois do cancelamento da festa, muitos patrocinadores abandonaram o barco. Foi um prejuízo dos grandes, não só financeiro mas também de credibilidade.

No entanto, naquele oito de junho a prefeitura não embaçou e a Rio Parade foi um estouro, recebeu congratulações da prefeitura por "bom comportamento". Só não ganhou moral capaz de fazer da festa integrante do bendito calendário de eventos oficiais do Rio.

O DJ e produtor suíço A.J Crypt, mentor da Rio Parade. Foto: Celso Badaue.

Temos que agradecer o diretor de operações da Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (RIOTUR) na época, José Augusto Rodrigues, o tio Bigode, que captou a vibe da Rio Parade. Faço um mea-culpa na divisão das faltas. A enorme tensão entre os sócios, que tinham visões distintas sobre os rumos da Rio Parade, geraram desentendimentos irreconciliáveis entre as partes.

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O DJ e produtor suíço Adrian Halter aka A.J. Crypt, mentor e um dos organizadores da festa, conta que um dos sócios do megaevento era um banqueiro suíço - hoje já falecido. Sem revelar o nome do ex-sócio, A.J diz que o banqueiro, então diretor financeiro da Rio Parade, procurava ganhar notoriedade com a festa, uma notoriedade capaz de torna-lo influente para realizar outros negócios no Brasil. A atitude do conterrâneo suíço desagradou A.J cuja ideia de festa era mais democrática - "Feita para entreter e divertir o público", relembra o produtor.

Perdeu o público, perdeu a cidade. Em 2004, faltando nove dias para a realização da segunda edição do evento, a Rio Parade foi adiada mais uma vez pelo "entrave burocrático". Nesse mesmo ano, A.J deixa a organização do evento. E o resto, você sabe agora que virou história.

HIST?"RICO
Em 1999, foi a primeira vez de A.J. Crypt no Rio de Janeiro, quando o DJ pôde ver dois milhões de pessoas reunidas no réveillon do milênio, em Copacabana, e pensou: "Porque não uma Parade no Brasil?". Inspirado pela Love Parade de Berlim e a Street Parade de Zürich, Adrian, três anos depois, concretizou seu sonho: ver a cidade do samba e do funk movida ao ritmo da batida eletrônica.

A Rio Parade 2003 foi a primeira parada techno da cidade do Rio de Janeiro, reunindo aproximadamente 200 mil pessoas. Foram 15 lovemobiles de labels de peso da época, como: Rex Club-Paris, Planet Groove-New York, Ministry of Sound-London, Cheesebeat-Beijing, Space-Ibiza, Tresor-Berlin, que atravessaram três km, entre a Av. Presidente Vargas, passando pela Av. Rio Branco, até a Cinelândia, onde um megapalco foi montado e transformado em uma gigantesca pista de dança ao ar livre. Lá, 120 DJs, entre nomes gringos e nacionais, se revezaram.

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O que poderia ter dado errado, deu certo e fez história. Sem maiores ocorrências registradas pela Polícia Militar - quem esteve lá se lembra do clima de tranquilidade da festa. A impressão é que as boas vibrações do slogan "Amor, Paz e Tolerância" surtiram o efeito desejado. A força do slogan foi sintetizada pela presença do lovemobile Cheesebeat-Beijing. Pequim considera Taiwan uma província rebelde. No Brasil, em cima do trio Cheesebeat, foi realizado o inimaginável encontro entre dois dos precursores da cena techno, Yang Bing da China e @llen de Taiwan, que tocaram lado a lado.

Depois de pendurar as carrapetas - após a trágica Love Parade de Duisburg em 2010 - de A.J vive hoje em Zürich, sua cidade natal. Troquei uma ideia com ele, que falou sobre o que deu certo (e errado) na Rio Parade, enumerou curiosidades e diz que faria tudo outra vez.

THUMP: Criar a Rio Parade foi uma forma de homenagear a cidade e o carnaval carioca que foi inspirada na primeira Love Parade, de Berlin, em 89?
A.J. Crypt: Sim, a ideia foi exatamente essa. Dr. Motte, criador da Love Parade, se inspirou no carnaval carioca [para fazer sua festa], só que interpretou de uma forma diferente. Ao invés de samba, eles tinham DJs tocando música eletrônica em cima dos trios elétricos.

Um evento até então sem precedentes, na cidade. Como foi fazer a terra do samba e do funk dançar música eletrônica?
O gringo vem com muito dinheiro e pouca experiência para o Brasil e volta com pouco dinheiro e muitas experiências, hahaha. Sério, tem que acreditar que pode ser realizado. Esse tipo de lição, de nunca desistir, é muito válido.

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Como era a cena techno no Rio, quando você chegou à cidade?
Era um movimento "jovem" ainda. O maior evento de música eletrônica na época foi a Bunker-Rave que reuniu 10 mil pessoas, mais ou menos. Foi essa quantidade de gente que a cena teve na época no Rio, um típico mercado musical, pequeno e mais underground.

Com certeza a Rio Parade foi a maior festa da música eletrônica, do continente americano, em 2003!

Depois do evento aprovado para o dia 20 de janeiro, a prefeitura voltou atrás e baixou um decreto cancelando o Rio Parade. Como foi o remanejamento para outro local e data?
Houve uma confusão num evento na orla de Botafogo na época, aí o prefeito teve medo que acontecesse a mesma coisa com a Rio Parade e baixou um decreto proibindo todos os eventos na orla. Adiamos o evento que passaria para o Centro, na Avenida Rio Branco. Adiar um evento deste porte em cima da hora normalmente é o fim. Foi preciso o dobro de esforço para convencer as pessoas a acreditar nele. Foi uma escola de vida.

Em uma primeira fase, a Rio Parade estava associada a Dream Factory, dos Medina [Rock In Rio]. Quem pulou fora da parceria, o que houve?
Verdade. Na época, eu apresentei o projeto para o Roberto Medina, para ele produzir o evento. Aí convidamos seus filhos Roberta e Rodolfo para conhecer a Street Parade, em Zurich. Só então a Dream Factory entrou como produtor da Rio Parade. Três semanas antes do evento acontecer, eles deixaram o projeto. Creio que eles deixaram de acreditar na ideia.

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Duzentas mil pessoas. Foi esse o número de público divulgado pela organização do Rio Parade. Você confirma?
Foram pelo menos 200 mil pessoas, sem dúvida. Imagine a Cinelândia, a Rio Branco inteira e parte da Presidente Vargas, lotadas! Com certeza foi a maior festa da música eletrônica, do continente americano, em 2003!

Vídeo oficial do evento.

Não ter ocorrido nenhum tumulto naquele mar de gente, foi um milagre?
Um pouco de sorte sempre tem, afinal controlar um quarto de milhão de pessoas em espaço aberto não é tarefa fácil, mas o planejamento foi bom no final das contas, nenhum tumulto. Sei que muita coisa pode dar errado em um evento desse porte, vi de perto o que aconteceu na Love Parade de Duisburg em 2010 onde, aproximadamente, 19 pessoas morreram. Segurança é crucial!

Lembro de ter havido um zunzunzum sobre a entrada da RP no calendário de eventos oficiais da cidade, certo? Por que isso não aconteceu?
É verdade. Logo depois do sucesso do evento, em 2003, a RIOTUR comunicou que entraríamos no calendário oficial de eventos da cidade, o que nos garantiria uma data por ano. E isso nunca foi cumprido. Tem que perguntar para eles o que aconteceu.

Após o adiamento da Rio Parade de janeiro para junho de 2003, sei que houve uma treta entre você e os sócios na época. Pode falar sobre o ocorrido?
O evento que ocorreria em 19 de janeiro de 2003, foi adiado ainda em 2002. Eu precisei vender uma boa parte das minhas ações da empresa para um dos sócios que era banqueiro, para poder tocar o evento, isso porque muitos patrocinadores saíram do projeto na época. Assim eu perdi a maior parte da empresa e tive que engolir as decisões dos novos sócios.

Existe alguma chance da Rio Parade acontecer em um futuro próximo? A tão esperada segunda edição sai? Ou oito de junho de 2003 cumpriu seu papel, o sonho acabou?
Existe sempre uma chance, mas acho muito difícil esse evento acontecer novamente. Como foi, nunca será de novo. Foi numa época em que a música eletrônica ainda era "virgem" no Brasil. Para mim já deu, estou velho demais. Os tempos não são os mesmos uma década depois.

Foi uma longa jornada, riscos assumidos, pressão, incertezas, faria tudo novamente?
Eu faria tudo de novo, só para provar para mim e todo mundo que "os belivers" são mais fortes que "os haters".