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Música

"Eu Praticamente Cresci na Casa do Sun Ra": Uma Entrevista com Fhloston Paradigm

Como o último lançamento da Hyperdub pega o afro-futurismo e cenas do 'O Quinto Elemento' para criar arte do outro mundo.

Enquanto o selo britânico Hyperdub comemora seu 10º aniversário, mesmo uma simples passada de olho pela trajetória do selo mostra que ele foi a casa de alguns dos atos eletrônicos mais inovadores dos últimos anos. É sério. Só em 2014, para citar uns exemplos, a Hyperdub lançou a provocateur do techno Laurel Halo, a agora falecida lenda do footwork DJ Rashad, a novata do R&B canadense Jessy Lanza e a conceitual Fatima Al Qadiri. O pedigree de experimentação da Hyperdub tem a ferocidade de um Rottweiler. Ou seja, tá pouco de pressão pra cima do homem responsável pelo próximo LP a ser lançado pelo selo, o Fhloston Paradigm.

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Apesar de seu primeiro lançamento com o selo ter sido seu EP de estreia em 2012, Fhloston Paradigm é apenas um dos nomes pelos quais King Britt atende, e você precisaria muito mais do que uma rápida olhada para compreendê-lo. Desde sua atuação como DJ na Filadélfia nos anos 90, King Britt juntou-se ao lendário conjunto de hip-hop Digable Planets, passando os próximos 20 anos lançando ambiciosas pedradas de funk e jazz – até encontrar seu novo lar na Hyperdub com The Phoenix. Inspirado pela ficção científica e pelo afro-futurismo, trata-se de uma fascinante jornada, e em muitos momentos desorientada, através da mente de um homem que, como seu herói, Sun Ra, pode muito bem ser de outro espaço e tempo.

Leia nossa entrevista abaixo e dê essa espiada exclusiva dentro do The Phoenix na forma de uma mini-mix visual.

THUMP: Gostaria de começar pelo conceito de afro-futurismo, que permeia toda a sua obra. Acho que novos ouvintes podem não estar familiarizados com o termo e seus conceitos. O afro-futurismo engloba tantos tópicos – capitalismo global, identidade racial, tecnocultura, a experiência negra, sua relação com a ficção científica – que seu escopo e linguagem podem ser bastante intimidantes. Além disso tudo ele ainda é algo relativamente novo, em termos acadêmicos. Como você descreveria o afro-futurismo?
Fhloston Paradigm: Bem, recentemente ajudei na curadoria de um dia inteiro voltado ao contexto atual do afro-futurismo no museu MoMA PS1, em Nova York. Natasha Womack, Dra. Alondra Nelson, Hank Shocklee e Ursula Rucker participaram de um painel discussão, e também tivemos performances de Ras G, High Priest do Anti-Pop Consortium e Shabazz Palaces.

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O propósito era responder a essa pergunta. Todo mundo vive me perguntando o que é afro-futurismo, e porque ele está aparecendo agora, mas a ideia em si já existe há muito mais tempo que seu estudo acadêmico. Digo, eu praticamente cresci frequentando a casa de Sun Ra.

Você conheceu o Sun Ra? Tá brincando.
Sim, é sério. Morávamos na Filadéfia e mamãe era amiga dele.

Isso é demais. Para fins de traçarmos uma linha do tempo aqui, quantos anos você tinha?
Mais ou menos uns cinco. Agora tenho 45. Costumávamos ir aos ensaios dele e eu via esses caras fantasiados, ouvia sons esquisitos – eu achava que eles eram super-heróis.

Isso deve ter deixado uma tremenda impressão em você.
Exatamente. Eu não entendia direito quando era criança, mas quando fui envelhecendo – passei a curtir Funkadelic, mergulhei no techno de Detroit, krautrock alemão – isso realmente abriu minha mente pra música. A primeira vez que vi e ouvi um sintetizador Moog foi na casa de Sun Ra. A primeira vez que encostei em um também. Owen Brown, que tocava com ele, tinha um Memory Moog. Encostei nele e pensei: "Uau, dá pra fazer qualquer som com isso?". Sempre fui atraído por música que exemplificasse esse tipo de som.

O que você guardou para si do Sun Ra e do afro-futurismo até hoje?
Sun Ra dizia ser do espaço e eu acredito de verdade nisso. Ele foi um dos primeiros a pegar o contexto da ficção científica e aplicar aos negros nos Estados Unidos. Ele falava de alienação em nosso próprio país e sobre tentar fugir do funk hipnótico que nos programava para agir de certa forma. "Você é negro e tem que ser assim". O afro-futurismo é uma esperança, uma esperança de uma alternativa para a vida como ela é aqui na Terra. Ainda se pode aplicar isso ao agora – só temos que mudar a sua trajetória.

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Como você acha que estas ideias podem se comunicar e se comunicam com os jovens negros de hoje e as vidas que eles levam?
Bem, vamos usar a Janelle Monae e a Beyoncé como exemplo. De um lado você tem a Beyoncé, que eu amo e é ótima, mas ela tem uma estética mainstream que a maioria das jovens negras usam como exemplo. Ela é uma máquina de negócios, tomada pelos ideais capitalistas de conquista e estrelato.

Janelle Monae, por outro lado, está sim no mainstream, mas seu histórico é bem diferente. Sua mentalidade é o exemplo perfeito de alguém que foi tocado pelo afro-futurismo – talvez mesmo sem sabê-lo. Ela afirma que crescer em Atlanta – ao lado do Funkadelic e do Outkast, lendo Octavia Butler, tomando Basquiat pra si – influenciou a forma como ela se porta. Esta é uma pessoa afetada pelo que acontecia no universo negro alternativo, trazendo isto para os dias de hoje e então ao mainstream.

Janelle junta ideias do afro-futurismo e as reembala em formato pop – o que, ao seu modo, consolida a ideia de que uma estrela pop começa com um conceito ao invés de personalidade. Um possível ponto diferencial aqui seria que uma artista como Beyoncé, enquanto marca pop, trata de personalidade, e Janelle de conceito. Não querendo afirmar que uma identidade é inerentemente mais inteligente que a outra ou que valha mais, mas a Janelle (pra você) conta com esse senso de convicção?
É exatamente isso. Quando falamos de Funkadelic, Parliament e Sun Ra, o conceito de ser alienígena – não quero nem usar a palavra "embalagem" – era simplesmente a forma como eles viam o mundo. Obviamente isso foi transformado em um produto desde então, é claro, mas há linhas de pensamento ali que transcendem isso. É algo que penetra a mente dos jovens, especialmente em termos visuais.

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Muitos foram abduzidos pelo sensacionalismo de ser um superstar. Não só os jovens negros, diga-se. Jovens foram abduzidos por falsas ideias. É uma coisa mais de classe do que de raça pra mim agora; vender drogas, seguir a fórmula de agir feito um imbecil no YouTube pra chegar à TV, ficar famoso por um minuto. Isso é simbólico da abdução da mente. Alguns dizem que as redes sociais fecharam as mentes das pessoas, mas acho que as usando do jeito certo, você pode encontrar novos mundos. Alternativas.

Onde estão esses modelos alternativos para nós agora?
Kanye é o cara. Não acho que ele seja tão bom como rapper – ele certamente é um ótimo produtor – mas Kanye trabalha com conceitos remodelados a partir do underground de tal forma que acaba mudando de verdade a forma como os jovens pensam.

Assisti à projeção de 'New Slaves' em Glasgow ano passado. Foi fascinante ver aquele rosto monolítico jorrando palavras que escuto quase todos os dias em discos de rap, mas nunca em um contexto tão forte. Foi realmente confrontador.
Veja bem, Saul Williams certamente é a influência direta nessa música. Seu trabalho com Trent Reznor abriu a cabeça de muita gente pra música. Kanye pegou essa estética e levou ao grande público. Gravar um disco como Yeezus sendo alguém do mainstream assim é um ato de muita força.

Ok, mas preciso desviar do assunto agora e te perguntar sobre uma faixa em especial: "Tension Remains". Quando a ouvi pela primeira vez, pensei de cara naquela cena de O Quinto Elemento, quando a cantora de ópera faz seu show e morre. Então, pesquisando, descobri que seu nome é uma brincadeira com o nome da nave no filme. Qual seu interesse nele? Há diversos exemplos de cinema de ficção científica influenciando a música eletrônica, mas O Quinto Elemento  é bem kitsch.
Adoro ficção científica, especialmente Blade Runner e Duna, mas O Quinto Elemento – é, é kitsch, mas bastante inteligente. A cena em que Leeloo faz o download de imagens que mostram o quão corrupto e horrível é nosso mundo… É um filme incrível. Poderoso, mas facilmente digerível.

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Musicalmente, porém, era aquela cena. Tão forte. Eu tinha este desejo de trabalhar com uma cantora de ópera após vê-la, e aconteceu que uma amiga minha, que mora na mesma rua que eu, canta ópera. Mas nunca fui atrás disso. Ela frequentou a Julliard mas abandonou o curso. Ela odiava as restrições da música clássica e então se tornou uma DJ. Nunca soubemos que ela cantava até que um amigo, pouco antes de falecer, contou. Ela disse que queria cantar aqueles vocais operáticos sobre batidas eletrônicas por anos, nunca tinha encontrado ninguém que quisesse trabalhar com ela. Foi tudo perfeito mesmo.

Tenho tentado entender o disco e, talvez ironicamente, entendi que não faz sentido querer entendê-lo. A sensação é a de lidar com um paralelo de incertezas, estando seguro desta incerteza. Os ritmos, as melodias, a forma como discurso e linguagem são usados – é tipo "eu não sei o que o som está fazendo, mas sei que tenho que confiar que você sabe o que está fazendo".
Exatamente! Exatamente. Acertou na mosca. Ao gravar este disco, voltei no tempo. O processo de usar sintetizadores antigos não é nada parecido com os MIDIs de hoje. Fiz tudo como nos anos 80, sequenciando ao vivo tipo Depeche Mode e depois usando softwares atuais.

A tecnologia antiga nunca foi perfeita, os ritmos e tempo não dão muito certo. Tudo agora é tão "perfeito" que as listas de Top 10 são só algoritmos. Valer-se de um processo "primitivo" é comparativamente futurista. Eu voltei para o futuro. Então há confiança aqui, porque sei que o faço é feito com incertezas. Te entendo. É difícil não ficar analisando a música.

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É tipo admitir a derrota, certo?
Não consigo ouvir música sem desmembrá-la. Estou começando a controlar isso, mas como DJ, é difícil não fazê-lo. Fico feliz que você tenha deixado isso pra lá. Esse disco é sobre isso, deixar pra lá.

OK, voltando à ficção científica. Qual o apelo musical do cinema sci-fi pra você?
É o que há pra mim. É comunicar a atmosfera. A possibilidade do impossível.

A música é um personagem também.
Quando estava compondo o disco eu pegava monte das minhas cenas favoritas e refazia a trilha. A base de The Phoenix é a releitura de minhas cenas favoritas da ficção científica. A cena da chuva em Blade Runner? Ela inspirou "Tension Remains", bem como O Quinto Elemento. Foi todo aquele drone, o ritmo do sintetizador… É como um relógio, pois o tempo estava acabando. Eu precisava de algo visual, então foi o que usei para dar continuidade ao processo.

Então a ópera em O Quinto Elemento influenciou a mesma faixa, certo? Você fez uma releitura dela também…?
Não, não, essa cena mais serviu de ideia pros vocais.

Então estas releituras se tratam mais de encontrar influências através de um exercício?
Isso. Essa é a beleza dos sintetizadores analógicos, porém. Não demora nada pra fazer seu próprio som.

Por último: seu último lançamento como Fhloston Paradigm foi em 2012, também pela Hyperdub. Por que você voltou a trabalhar com o selo para o lançamento do LP?
A Hyperdub é o selo certo pra mim. Eles arriscam, não tem medo e a música que lançam tem uma visão muito à frente. A forma com que a cabeça do Kode9 funciona é incrível. É um selo cult, assim como o Warp do início. Eles te dão a liberdade pra fazer o que quiser, porque Steve confia na sua capacidade de levar a música a outros lugares.

Tradução por: Thiago "Índio" Silva