Como Estão os Meus Amigos dos Tempos de Escola Hoje em Dia

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Como Estão os Meus Amigos dos Tempos de Escola Hoje em Dia

Mais gordos, mais carecas, mais velhos, casados, gostam de gatos, mas muito mais interessantes.

Escrever em primeira pessoa é sempre um troço complicado. Você começa achando que é o Tom Wolfe e acaba sendo o Alex Forastinatti falando sobre o próprio umbigo. Então, desculpa aí se você esbarrar num clichê ou outro. Sabe como é. Recebi, há algumas semanas, a tarefa de reencontrar uma parte da turminha do Ensino Fundamental da Escola Municipal Comandante Gastão Moutinho, localizada no meio do Conjunto dos Bancários, na Zona Norte de São Paulo. A primeira coisa que saquei foi que eu esqueci muita coisa. Não lembrava da maioria dos nomes, não lembrava de muitas situações e não lembrava de muita gente. Nem imaginava como seria o rosto da maioria das pessoas com quem convivi nesse período e não tenho a menor pelota de lembrança das coisas que "aprendi" em sala de aula.. Não, essa não é uma matéria sobre Alzheimer. É sobre passado. Quem são? Onde vivem? Do que se alimentam os meus coleguinhas de outrora? Foram seis encontros, porque não dá pra chamar aqueles papos de entrevistas, e na real, a única certeza que ficou é que temos pequenos remendos de memória, pedaços maltrapilhos de uma lembrança aqui e outra acolá. Na real acho que só registrei os figuras, as grandes tragédias e algumas histórias engraçadas. Lembro do cara que tinha 11 anos e mais pelos do que eu tenho hoje, meio lobisomem mesmo. Lembro da mina que eventualmente fazia um xixizinho nas calças e era bem deprê. Lembro do mano que cortou as costeletas para se livrar do apelido de Elvis e virou um cara esquisitão, andando de touca no calor, sem costeletas e com o apelido de Elvis. Esse mesmo cara foi tirado no amigo secreto por uma garota negra e protagonizou uma das cenas mais racistas que vi até hoje. Com a porra da touca preta na cabeça, ele correu pelo corredor gritando para não ter de dar um abraço e um beijo na menina. Lembro quando pintaram todo o colégio com um amarelo bem clarinho e feinho e ele amanheceu todo pixado. Lembro quando assaltaram a tia que vendia Muppy (suquinho à base de leite de soja). Lembro de alguns apelidos também. Caralho, como éramos escrotos. Tinha o cara negro chamado de Marrom, a mina com o cabelo crespo chamada de Bombril e outra com as mesmas características chamada de Quiosque. Tinha o gordo chamado de Shepa, outro chamado Fofolete e um terceiro apelidado de Tetão. Tinha o cara muito branco e careca que era chamado de Cocoon. Tinha um Spock, acho que toda escola naquela época teve o seu. Tinha o Teletubbie. Eu era o Bisteca. Por muitos anos fui chamado assim. Depois virei Pirulito e cá estou tentando não ter mais nenhum apelido. "Todo mundo tinha um apelido escroto. Eu era a Edileuza na 2ª série", conta a designer de interiores e arquiteta Luli Cordeiro. "Eu tinha o cabelo curtinho, mas eu aceitei bem. Foi o Marrom que me deu esse apelido". A Luli é minha melhor amiga até hoje. A gente ficou brother no final do Ensino Fundamental, e foi ela que me inseriu em muitas coisas que gosto até hoje. A primeira vez que ouvi Dead Fish, No Fun At All, Bad Religion e mais uma pá de banda foi com - e por causa - (d)ela. Ela tinha um cachorro cego chamado Sid em homenagem ao baixista do Sex Pistols. Nós nunca mais paramos de trocar ideia e de nos preocupar um com o outro. Parceria forte mesmo. Hoje, ela casou com um cara muito legal, tem duas gatas, está feliz e ainda me inspira demais.

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Luli Cordeiro.Foto: Guilherme Santana/VICE

Na época do Gastão, a Luli tava pouco se fodendo pra muita coisa. Acho que foi a primeira pessoa que eu vi questionar as regras. Ela me deu aulas diárias de pulga atrás da orelha e soube como poucos passar pela escola sem grandes traumas. "Aprendi como não apanhar, como fugir de uma guerra de ovo cozido também. Mas aprendi a lidar com vários tipos de pessoas, porque o Gastão tinha dessas. Tinha gente muito pobre e tinha boy. Tinha gente que ia lá pra comer e tinha gente que viajava nas férias, que, pra mim, era mó coisa de boy." Na merenda, nós recebíamos repetidas doses de achocolatado, sucrilhos sem leite, bolacha de maizena, salsicha com molho, maçã (que também gerava guerras e lesões) e o ovo cozido, que, além de deixar no ar o aroma do holocausto, era arma branca da pesada. As tiazinhas da cozinha ficavam em choque com a quantidade de desperdício. Pensando bem, hoje eu também ficaria incomodado. Essa comida voando gerava atrito entre os grupos e muitas vezes dava treta. Se bem que qualquer coisa era motivo pra porrada. Nem sempre era fácil fugir do combate. Acho que eram os hormônios. No meu nome lembro de duas brigas que deixaram marcas, algumas físicas. Na primeira, eu apanhei por tomar um rolinho (caneta, sainha…) no futebol de latinha. Na outra, inventaram que eu xinguei uns manos que eu não tinha xingado. Doeu, ficou roxo, mas, pior do que ir para o dia seguinte com uma marca estampada na cara era saber que você é vulnerável. Que você ganha, mas muitas vezes perde. Ricardo Gonzaga, o Cadu, era um dos mais treteiros. Não era meu brother. Era um mano marrento, folgado mesmo, que eu não topava muito. Tava nas mesmas rodas, às vezes no mesmo rolê, mas ele lá e eu aqui. Sabia que ele tava sempre correndo. Entregava pizza, dava um trampo de motoboy, ficava na saída do sacolão levando as compras até o carrinho, tava sempre desenrolando um faz-me rir. "Era foda levar as compras das mães das minas que estudavam com a gente", ele conta. Ele era zica mesmo. Pegava as minas que eu inutilmente tentava xavecar, era moleque doido do pixo e tinha a coragem que eu não tinha de escalar os prédios e mandar ver e ainda fez fama de bom de soco. Tudo isso tendo um pouco mais de um metro e meio e calçando 36.

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Ricardo Gonzaga. Foto: Guilherme Santana/VICE

Ele casou com uma mina que conheceu na escola, a Fabiana. Eles começaram a namorar ainda naquela época, foram morar juntos, tiveram um filho e formaram uma família linda. Ele anda de moto agora só por lazer e se tornou vendedor em uma grande marca de bebidas. Numa dessas peças estupidamente sem graça da vida, ela se foi: um enfarto aos 30 anos a levou no dia 9 de setembro de 2015. Me dói pensar que a vida pode ser muito mais agressiva do que umas porradas na saída do colégio. É tão triste não poder se despedir. E ele falou infinitas vezes o nome dela. "A Fabi salvou a minha vida." E completa: "Eu preciso seguir em frente, porque o meu filho precisa de mim". Dói saber que o tempo tá passando. Dói saber que outras perdas virão. Dói saber que a morte é irremediável. Dói pra caralho. Eu me mudei para a Zona Norte de São Paulo pouco depois de completar 11 anos. Era tudo muito diferente do Ipiranga, na Zona Sul. Lá, eu frequentava uma escola enorme, dessas que você faz fila e canta o hino nacional antes da primeira aula. No novo bairro, as ruas eram estreitas, o colégio era pequeno e a falta de grana, mais evidente. Cheguei à classe nova desconfiado, tentei sentar rapidamente sem ser notado. Vi uma mesa vazia bem no meio da sala e, de cabeça baixa, rumei pra lá. Antes de botar a bunda na cadeira uma mina falou bem alto: "Esse aí é o lugar do Quég". Olhei pra um lado, olhei pro outro e só vi um lugar do lado do armário bem no fundo da sala. Lá foi meu endereço na 5ª D em todo o semestre. O Quég era o Felipe Ettiene, o popular da sala. Odiei ele de cara. O moleque era loirinho, a professora amava, as meninas pagavam pau e ele era o representante da sala. No meu segundo ou terceiro dia de aula, passei meio mal e nem sequer sabia onde era o banheiro. Ele foi meio a contragosto me acompanhar. No meio do caminho, mandei um vomitão de responsa. Ficamos amigos alí no gorfo. Ele segurou minha testa e me ajudou. Foi nojento, mas assim fiz meu maior chegado até o final do ensino fundamental.

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Felipe Ettiene. Foto: Guilherme Santana/VICE

Ele morava numa casa grande no Lauzane. Passei muitas tardes lá, e sempre tinha lanche. A gente era unha e carne. Começamos a andar de skate juntos. Ele parou logo, eu segui um pouco mais. Éramos bafos, mas pixávamos juntos. Escrevíamos EGG's pela Zona Norte. Num trabalho da aula de inglês, escolhemos, em meio a Hanson e Britney Spears, "Master Of Puppets", do Metallica, para traduzir. A professora não gostou, nossa nota foi baixa, mas por oito minutos e 22 segundos, toda a sala de aula foi obrigada a ouvir o discurso fofo antidrogas com uns riffs pesadões. A gente se amarrou. O Felipe casou, é funcionário público e tem um gato bem peludo. Ele me lembrou de várias coisas milianistas. Me lembrou de como eu e minha mãe salvamos ele e mais uns brothers de uma treta embaçada. "Sua mãe parou o carro, e vocês botaram eu e o Diego (outro amigo nosso) pra dentro e levaram a gente até em casa. Era aquele carro amarelo, lembra?" Como eu ia esquecer esse carro? Eu odiava quando meus pais apareciam na escola. Eles paravam lá em cima na rua, e os moleques cantavam a versão abrasileirada de "Here Comes The Sun" para o Uno 1.6R, aquele modelo esportivo amarelo-ovo. Outra casa que frequentei muito foi a do Roberto Marques, o Betinho. Ele tinha uma batera preta enorme montada no quarto e era o baterista da minha primeira banda. Ele era meio boy. Sempre tinha as coisas que ninguém mais tinha. Tinha um computador que copiava CD pra geral, tinha videogame, filme pornô, e passávamos muitas tarde fazendo quase nada na goma dele.

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Roberto Marques. Foto: Guilherme Santana/VICE

Há alguns anos, foi diagnosticado com a síndrome de burnout (distúrbio psíquico causado pelo estresse no trabalho) depois de alguns anos trampando como vendedor numa multinacional de tecnologia. Ele viu a cor do dinheiro e se empolgou. O trampo era cansativo, mas valia a pena financeiramente e ele entrou na pilha. Juntou a correria do trampo com cocaína e não abaixava mais o ritmo. Ficou difícil sair com ele no rolê. "Eu comecei a cheirar no final de semana pra manter a adrenalina do trabalho." Pegou uma licença médica, foi demitido do trampo num trâmite bem esquisito e deu uma estacionada na vida. Ficou mal, mal saía de casa e, agora, está dando os primeiros passos em sua recuperação. "Se você me chamar pra sair, provavelmente eu vou arrumar uma desculpa pra não ir. Eu posso estar pronto, mas vai chegando na hora, eu começo a ficar ansioso, aflito, e não consigo pôr o pé fora de casa", conta. Ele está melhorando a passos lentos, e a qualquer hora tá no rolê de novo.

Gabriela Barreto. Foto: Guilherme Santana/VICE

Revi nesses amigos muitas histórias bonitas e algumas mais tristes de vida e superação, mas nenhuma delas bateu a da Gabriela Barreto, a Gabi. Ela tava no grupo das minas descoladas, embora sofresse bullying com sua magreza. Olivia Palito era pouco pra "Magriela". Sabe aquele papo do mundão dar voltas? Pois é, ele dá mesmo. Ela hoje está linda e faz um dos trampos mais amorosos que já vi. Ela é doula e acompanha gestantes em busca de partos humanizados na região do ABC. Ela casou, tem duas gatas e divide seu tempo entre quatro grávidas. A autoestima da mina tá batendo lá no teto, e aquela aporrinhação da molecada ficou lá atrás. Segura, ela afirma: "Esse negócio de estereotipar as pessoas é bem desagradável. Uma grande bobagem, mas quase uma sina do ser humano. Cada um é o que é, e aceitar isso pode ser bem difícil quando você é tachado de algo, porém é libertador quando percebe-se que não são esses estereótipos passageiros que determinam quem ou como você deve ser. Eu não tive problemas quanto à aceitação do meu corpo, aliás, nunca me achei tão fora dos padrões assim". Nesse mesmo grupo das minas populares, estava a Giselle Helena. Fui apaixonado por ela na 7ª série, mas fui apaixonado por muita gente naquele ano de 1999. Nos encontramos num bar e batemos um papo, enquanto o seu irmão mais velho tocava uma seleta roquista que ia de Detonautas Roque Clube a U2. Ela continua com a mesma cara, do mesmo jeito, e vive uma vida sem muitas aventuras aparentes. Fez faculdade de hotelaria, trabalha num banco, profissão da qual não é muito fã, está solteira e fuma um cigarro lícito de vez em quando enquanto toma uma cerveja de leve. "Eu sou feliz hoje. Eu só não tô satisfeita, mas eu sou feliz." Ela faz planos de casar e de ter filhos, como a maioria de nós. Como nossos pais fizeram um dia. "Eu preciso construir alguma coisa da minha vida", ela diz.

Giselle Helena. Foto: Guilherme Santana/VICE

A real é que todos estamos construindo. De modos bem distintos. Como diria o Brown, "Uns juntando inimigo, outros juntando dinheiro", mas todo mundo juntando histórias. A gente mudou muito. Alguns desses meus amigos parecem habitar planetas diferentes do meu. Alguns, eu até gostaria de mandar pra Marte para nunca mais ter de ouvir suas opiniões. Faz parte. Esquecemos uns dos outros em muitos momentos, mas rever essa galera da escola serviu para eu me reencontrar com o passado, buscar neles um pouco de mim e da minha pré-adolescência e adolescência. Consegui buscar na memória o professor de História, que era um misto de Gérard Depardieu com Jack Black. O Gerson me falou sobre a Revolução Francesa e a Revolução Russa apaixonadamente, e isso ficou gravado. Consegui lembrar da Adail Eliza, professora de Português, que me disse que eu seria um péssimo ator, mas me ensinou muitas coisas que eu uso até hoje. Me fez lembrar da professora de Educação Física, que era uma daquelas gostosas figurantes de A Praça É Nossa. Ah, como aquelas aulas na piscina eram agradáveis! Rever esses colegas me fez ter saudades do passado, mas também me fez olhar para o presente com carinho. Estamos tentando pagar as contas, ganhando, perdendo e começando a ter umas dores esquisitas nas costas. Estamos infinitamente mais interessantes hoje em dia. Eles se tornaram pessoas maneiras, uns mais do que os outros, e os corredores do Gastão Moutinho continuarão a funcionar como um túnel do tempo a cada vez que entrar lá para votar. Um recorte saudosista da minha vida e da vida de mais um monte de gente. Esse lugar, apesar do ensino público muitas vezes precário, me ensinou muita coisa. Me ensinou a saber chegar num lugar novo, me ensinou a apanhar e a bater, me ensinou a hora de sair de uma briga e a hora de entrar nela. Me ensinou a amar, a não ser correspondido, me ensinou muito sobre a rua, me ensinou a ler as paredes, a me enturmar e a tomar decisões. O Gastão Moutinho tinha um lema: "Gastão, Gastão. Entra burro e sai ladrão". É claro que tem gente que seguiu o mantra, mas há também quem saiu pro mundão curioso e achou seu mundo aqui fora. O Gastão foi uma puta escola.