FYI.

This story is over 5 years old.

comportamento

Um cobra que não fuma

O maior colecionador de cartelas de cigarros do nosso continente (quase) nunca fumou
Célio Alberto Eisenhut. Acervo pessoal. 

O Célio Alberto Eisenhut coleciona maços de cigarro. Na verdade ele é o maior colecionador das Américas disso aí. Tem certificado do Guinness de vários anos e tal. São 60.058 caixinhas entupindo seus armários juntadas desde o dia em que ouviu dizer, lá na Joinville de 1969, que a Souza Cruz iria doar uma cadeira de rodas pra quem reunisse 500 cartelas -- ele acreditou. Demorou 268 boxes pra sacar que era mentira, mas aí o craque do garimpo de maços já tinha dado as caras. Disso até começar a revirar lixão, chegar junto de nego de tudo quanto é canto, desenrolar e desembolsar, foi um-dois. O Célio viu que era bom no riscado; mais que um fera, um cobra. Agora, além de não conseguir mais largar, quer passar a nóia pra frente: o plano é construir a versão beta de um museu, na laje da sua casa, pra comportar tudo e influenciar novas gerações. Mas fumar, fumou só uma vez.

Publicidade

Foi por isso, pra conversar sobre essa fascinação por cigarros, que liguei pra ele dia desses. Só que acabei descobrindo que ele também tem uma coleção de cobras -- os ofídeos mesmo --, o que parece curtir bastante. Avistou serpente é só chamar que ele vai com o pau macetar pra depois empalhar. É o "divertimento" do cara, tanto que uma vez meteu a jararaca no copo de uns "colonos" da aldeia só pela farra. Mas aí ele acabou saído na base da bicuda. Enfim, a conversa que tivemos foi assim, cheia de histórias, História e amizades -- todas envolvendo objetos cilíndricos e viris. Mas aí, segundo ele, as gatas curtem.

VICE: Quantos maços você chegou a ter nessa época do boato?
Célio: Eu só peguei 268. Morava em Joinville e ia muito nos lixões. Lá, inclusive, cortei o pé. Cortei o tendão e tudo, porque estava lá e veio o caminhão de lixo. Quando ele chegava a gente tinha que subir rapidamente senão o lixo todo ia nas nossas cabeças, então uma vez fui correr e cortei o pé. Arrebentei todo o tendão, andei um ano e meio de muleta. Na época eu ganhei duas vezes ataque de tétano.

Lixões?
Ah, eu ia direto. Saia do colégio e em vez de ir pra casa estudar ia primeiro no lixão, pra pegar maços de cigarro. E lá eu realmente conseguia. Hoje me dá saudades, às vezes eu penso, “ah, vou um dia lá na Copa do Mundo, vou atrás do lixão [daquele país] porque deve aparecer maço de cigarro de tudo quanto é lado do mundo”. Então acho que em breve vou ter que fazer isso. Quando vou pra Europa, nas feiras, eu vou para os lugares onde colhem o lixo.

Publicidade

Você chegou a ir pro lixão depois de velho?
Não, hoje é o seguinte: como tem coleta de lixo, tenho amigos que fazem coleta de lixo, então eles já juntam o que conseguem. Nunca mais fui diretamente no lixão. Cada lixão hoje é mais seletivo e tal, e a máquina que pega o lixo amassa tudo. Naquela época se jogava tudo em cima do caminhão e depois jogava no lixão. Hoje em dia tem aquela máquina atrás que empurra tudo e faz blocos. Só falo pros caras guardarem quando eles pegam lixo em hotéis. É isso que vai acontecendo.

E onde você guarda todos os maços?
Tudo lá em casa. Queria até trocar tudo, camas e sofás, por maços de cigarro, mas… Guardo em gavetas, estantes, armário, álbuns… Ano que vem estou vendo de um convênio com a prefeitura para eles me doarem um espaço pra eu montar um museu e deixar como patrimônio da cidade. Ou, se não, vou construir em cima da minha casa, que tem uma parte grande de laje pra deixar pro futuro.

Fora os lixões, como você faz pra aumentar sua coleção?
Correspondências, conhecidos que viajam e trazem maços… E eu também já comprei alguns. Comprei a maior coleção do Paraguai, com 2.300 maços só de lá. Devo ter hoje a maior coleção do mundo de marcas do Japão. O Japão hoje faz 300 e tantas marcas. Eu estou com quase três mil, da época que o Japão fazia maços comemorativos. Então tenho maços da época em que ainda era permitido fazer marketing da cidade, das exposições… Hoje não se faz mais isso. O Brasil também teve uma época com fotos de crianças desaparecidas, que era um negócio muito bom. Hoje não se pode fazer mais nada, nem propaganda na televisão, nem nada.

Publicidade

Vocês se correspondem bastante entre colecionadores?
Eu estou com correspondentes em 32 países. Então a cada três meses, entre idas e voltas, recebo cartas dos caras. Agora eu estou juntando reportagens e tudo para as pessoas acreditarem na minha coleção, porque como tem muitos colecionadores às vezes eles acabam não respondendo -- ainda prefiro me corresponder com colecionadores do que com fábricas. Tenho até um colega da Áustria que viaja o mundo atrás de cigarros, e todo lugar que ele vai ele deixa um bilhete falando “deixe seu maço de cigarro aqui”. Esses dias ele mandou umas fotos com caixas e caixas de papelão cheias de maços de cigarros, tanto que ele nem sabe como levar isso pra casa. Tenho outros na Alemanha que fazem isso também.

É sempre na base da troca ou você comercializa?
Não, não. Eu não vendo. Não tive o hábito de vender, mas no Brasil existem, inclusive, clubes de colecionadores que estão vendendo direto. Estou guardando as marcas. Talvez, sei lá, daqui a dois ou três anos eu comece a vender algumas marcas.

E já recebeu propostas de compra da coleção?
Já tive muitas oportunidades de venda, mas não consigo me desfazer disso pelos contatos que eu tenho no mundo. Eu fiz muitas amizades, visitei colecionadores e museus, conheci nomes de capitais, aprendi História… Eu já fui pra ilha de Córdoba pra pegar um maço, Luxemburgo… Aí pela cultura você pensa, “ah, onde fica Luxemburgo”, aí vai lá e pesquisa. Eu sou registrado em três clubes, um de São Paulo, um dos Estados Unidos e um da Inglaterra. E por isso vejo direto anúncios de venda e compra. Já me ofereceram aí R$ 150 mil alguns anos atrás, mas eu jamais quis vender. Estou guardando aí pra passar. Sei lá o que meus filhos vão fazer com isso, mas eu ainda quero me divertir. Ainda não cheguei no auge que eu quero. Estou no Guinness, no Rank Brasil, mas eu quero… Não sei se vou ter coragem de vender. É uma coisa que eu tenho e vou deixar pros filhos, amigos… Não sei.

Publicidade

Tem aquelas histórias de que cada cigarro diminui sua vida em sei lá quantos minutos. Mesmo sem fumar, o tabaco consome tempo da sua existência?
Todo dia eu mexo com cigarro. Como está eu demoro muito tempo pra selecionar marcas e mandar pra fora. Como eu estou com 32 países que tenho correspondentes, às vezes mando 50 e o cara manda 50, às vezes 100… O espaço não está sendo mais suficiente.

Como você faz pra manter a coleção? Como é a manutenção?
As marcas cheias, por exemplo, ficam em armários com vidro e não pegam umidade. O cigarro vai pro pau em meio ano, a nicotina transmite para o papel a umidade. Então tem que deixar em algum lugar que não passe umidade nem nada. Tenho muitos álbuns, tenho quadros, marcas em lata – tenho 460 latas, tudo de mais de 100 anos atrás, desde 1852. Então as latas eu tenho tudo exposto. Depois tenho gavetórios com vidros, onde ficam as marcas mais raras. Aí tem as marcas mais simples. Por exemplo: tenho 560 maços de Derby, então tenho exposto alguns Derbys daquela série, mas não todos. Mas quando eu mexer nisso aí tudo eu vou realmente melhorar o aspecto. O custo é alto, primeiro pelas correspondências. Se mando uma lata pra Europa eu vou pagar R$60, R$80, porque tem que mandar registrado, comprovado. Ou pra China, que manda umas cem, aí pesa três quilos, e pode sair uns R$ 100… Às vezes eu não mando num mês por causa do custo. Na verdade eu não consigo hoje, em termos de tempo, mexer com isso, de tanta correspondência que eu recebo. Porque você tem que devolver, mandar alguma coisa em troca… Se não ele não manda mais.

Publicidade

Tem alguma história engraçada de como você conseguiu algum maço? Não sei, algo do tipo trocar uma bicicleta por um maço… Trocar com hippies, não sei…
Não. Nesse sentido aí não. O que eu faço muito é o cara me dar um maço de cigarro e eu dar um litro de uísque. Eu sempre tenho que mandar alguma coisa, principalmente para fábricas, que o funcionário não pode mandar porque é bem restrito. Mas como já visitei muitas, conheço pessoas lá dentro que às vezes acabam mandando. Aí eu mando licor, uísque bom… Já mandei um conjunto de facas que comprei aqui na BR-101. Toalhas de animais, daquelas mais decorativas… Recompensa porque é a única maneira e você acaba atualizando a tua coleção daquela fábrica. Tem muita marca que não aparece no comércio.

Qual a embalagem mais difícil que você conseguiu?
Teve uma marca da República Tcheca. Fui a uma loja que vendia coisas de guerra e achei lá um maço de cigarros. Foi da divisão entre a República Tcheca e a Eslováquia. Então lá tinha uma cidadezinha que tinha o rei lá e essa marca era exclusiva pra ele. Comprei esse maço, que até tava com cigarro lá dentro. E eu recebi agora há dois anos um cigarro da época da Palestina, de antes da decretação do Estado de Israel. Essa marca o nome está em hebraico. O cara botou um bilhete lá dentro, escrito, “raro, raro, muito raro. Está escrito ‘liberdade’ em hebraico’.” Fui também uma vez pra Dinamarca. Consegui um maço do aniversário do filho do príncipe. Ele mandou fazer uns 500 maços de cigarro. Tem a coroa do príncipe em cima da marca.

Publicidade

E a mais cara que você já comprou?
Eu paguei, na época, faz uns cinco anos, R$ 500 em um maço de uma marca de Joinville, a mais antiga do Brasil, de 1892.

E qual a mais antiga da coleção toda?
É uma marca do Império Austro-Húngaro, de 1852. Fora isso tenho 4650 Marlboros diferentes, 1840 Camels. São marcas de 218 países.

Sua família gosta disso?
Eu, na verdade, também sou piloto de aventura. E também tenho coleção de cobras.

Cobras?!
Sim, cobra empalhada. Cobras… Eu empalho. Tudo o que eu acho eu empalho: tem lagarto, tem escorpião… Aí eu empalho o que é maior e o resto coloco tudo no vidro. Aí tem couro lá de porco-do-mato, tatu… Essas coisas tudo. Então eu tenho na garagem o meu carro e uma parede só de… É até bonito de ver porque tem tudo lá, né? Coisas raras. E todo mundo sabe. Às vezes amigo meu diz que pegou uma cobra e eu vou lá e empalho. Abro a boca, ponho ela conforme eu quero – esticada, reta, curvada… E como eu também faço parte de um grupo de motoqueiros, em breve estou indo para o encontro nacional de motos. Só moto grande. Então tem todos esses lados. A família… concorda com tudo. Eu falo, “estou indo pra tal lugar de moto”, e eles, “tá bom.” Eu tenho essa liberdade de trazer uma cobra pra casa e deixar numa pia lá a semana toda. Só digo pra mulher, “ó, tem uma jararaca lá na cozinha”. Teve um tempo ela foi tirar uma carne do freezer no sábado e tinha uma jararaca. Deixei de um dia pro outro pra congelar, e quando ela foi tirar a carne, tomou um susto. Falei, “porra, não tive tempo de empalhar ela, o que eu vou fazer?” Um cara tinha matado lá e me dado.

Publicidade

Ela já pediu pra você se desfazer de alguma coleção?
Não, não. Ela só fica meio assim quando eu passo sábado e domingo – aqui chove muito – direto no cigarro, às vezes tomando uma pinga junto. Às vezes eu levo um dia pra arrumar umas coisas. Aí ela fala, “porra, tu podia ter saído hoje. Não sei como que tu fica nessa coisa”. Ela não se mete.

Ela e seu filho colecionam alguma coisa também?
Colecionam nada. Meu filho agora tem 25 anos e não colecionada nada. Quando ele era menor eu comecei a colocar na cabeça dele. Comecei a ensinar, dava a marca pra ele aprender de que país era, mas ele misturava tudo. Coréia com China, China com Japão… Talvez mais tarde, sei lá, a hora que eu estiver morrendo…

E por que você gosta de colecionar?
Ai, ai… Eu também coleciono mulher.

[Risos]
É o seguinte: eu gosto de ficar jogando dominó, ficar jogando baralho a tarde toda, como a turma faz; ficar lá quatro horas num lugar só. Foi uma evoluída, digo assim, o cara me dá um maço, eu vou lá no mapa, vejo de onde é, ganho cultura… Agora estou indo pra Manaus porque tem uma marca de cigarro de lá da época que era Manaos, e descobri que era da época de 1825. Quero ir lá na prefeitura pra descobrir quando foi mudado de Manaos pra Manaus.

Mas por que você gosta de colecionar?
Eu já fazia de postal, já fazia de selos – ainda tenho muitos selos –, já fazia de chaveiros… Fazia de flâmulas – hoje ninguém acha mais flâmulas. De caixas de fósforo. Ah, também fazia de latas de cerveja cheias, mas aí vendi porque ocupava muito espaço. Faço coleção de cobras porque é uma coisa interessante. Eu pego qualquer cobra. Me chamam, eu vou lá, pego ela, brinco… Outro dia fui num boteco aí, tinha uma jararaca e o cara segurando um pau com tudo os colonos andando na frente. Peguei a cobra, enfiei a cabeça dentro dos copos de cerveja deles… Ganhei dois chutes de ponta-pé na bunda. É divertimento, né? Minha mãe não gostava muito da de cobras porque eu saia pra procurar os bichos no mato. Aí uma vez em casa ela quebrou a bacia em casa e disse que era por causa do feitiço das cobras. Aí tive que enterrar elas. Mas pensei, “o dia que eu casar vou voltar de novo a fazer coleção de cobras.” Aí casei, fui pra Jaraguá e continuei a coleção.

Publicidade

E atualmente, então, é cigarro e cobras?
E também como eu estou nesse negócio de motos, e sou presidente, daí é…

E essa de mulheres?
Ah, mulher a gente tem que ter, né? Se não a cabeça fica doida.

É a mais vasta que você tem?
Ah… A gente vai nos encontros e tem as gatinhas, né? Mulher faz parte do cigarro. É bom.

E você nunca fumou mesmo?
Fumei um maço de cigarros.

Por que você não fuma?
Não fumo porque parece que aquele gosto fica na língua até o outro dia. Eu nem estou pensando lá dentro do corpo, mas é aquele gosto que fica na boca. Aquele cara que tá viciado já acostumou com aquilo no paladar. Agora, se o cara estiver fumando do meu lado, não dou bola nenhuma. Até pego o cigarro, cheiro, vejo as diferenças. Mas é pelo paladar que fica; tu escova o dente e parece que fica. É que nem o alho. Eu também não gosto de alho. Nem de cebola. Tem gente que come cebola crua.

Depois que os maços de cigarro começaram a ter esses anúncios de bebês mortos, como ficou? Os estrangeiros gostam disso?
Acontece que o europeu fuma mais que o brasileiro. Aqui no Brasil, em 90 e pouco começaram os desenhos e a juventude deu uma parada. Atualmente voltou tudo ao normal. A gente vê que mais mulher tá fumando que homem, nos salões e tal… O que tá inibindo um pouco o brasileiro a não fumar é o custo, porque pra pagar o negócio lá o Lula entrou com mais imposto, então o maço hoje tá R$4, R$4,50. Lógico, na Europa tá cinco euros, mas começou a pesar mais no bolso. Mas a gente vê assim que tá normal. Aí eles dizem assim, “ah, esse maço aqui eu não quero porque dá impotência, quero o outro que tá com o coração partido.” Virou gozação, sabe?

Mas isso é só no Brasil?
Não, não. Tá começando no Canadá, no Chile, na Nova Zelândia, Austrália… A Europa em si só tem a advertência pequena, só que devagar tá começando em outros países. Agora, as fotos que aparecem no Brasil todo mundo já diz “isso não existe”. Por exemplo a do pé todo deteriorado escrito gangrena. Eu pergunto: “por que morreu de gangrena?” O outro lá tá com um olho cego. Tem fotos, assim, que parece que não têm nada a ver com o cigarro. Pode ser que existiu um caso. Tem outras fotos lá, de que se fumar vai perder a criança que é legal e tal, mas as fotos que estão aparecendo, eles estão exagerando, e muita gente diz “nunca que vai acontecer isso”. Como a do pulmão todo cortado, que enfiaram um monte de cigarro dentro do pulmão. Tirou a veracidade. Se eles mostrassem o pulmão amarelo, não sei o quê… Se o cara mostrasse exatamente o que é a realidade acho que pegaria mais.

A última pergunta, sobre as mulheres de novo. Já teve mulheres de todos os maços?
Muitos dos maços que eu tenho tem só mulheres na estampa. São muito bonitos, se quiser eu mando pra você também.

O Célio trincou tanto na ideia da entrevista que mandou pra gente um monte de fotos pelo correio. Algumas delas ilustram essa conversa. Junto veio uma carta assim: "Célio solicita: quem tiver alguma marca de quaisquer países e qualquer época, ou alguma coleção para doar ou vender, que entre em contato. Obrigado". O endereço é Caixa Postal 420, Rua Exp. Antônio Carlos Ferreira, 1495, Jaraguá do Sul (SC), CEP: 89252-101. Fumantes do mundo, uni-vos. Transformemos o Célio no maior colecionador do mundo.

Fotos: Acervo pessoal.