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A cientista da cervejaria Avery, Melissa Antone, usa um kit para examinar as propriedades químicas do líquido sagrado. Crédito: Beth Machen

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Tecnologia

Os Cientistas da Cerveja

O paladar humano virou ferramenta de laboratório.

A americana Melissa Antone trabalha na indústria da cerveja desde seus tempos de faculdade, quando fazia bicos como garçonete em uma microcervejaria. Mas, quando se formou em biologia, percebeu que servir copões de bebida não era uma boa carreira. "O único jeito de subir era indo para a parte administrativa, e não me formei para ser gerente de um bar", disse.

Ela fez suas malas e se mudou para o estado de Colorado, nos Estados Unidos, onde foi contratada por outra cervejaria. Depois de um breve período atrás do balcão, os donos da Avery Brewing a promoveram a cientista. Hoje, no laboratório da empresa, Melissa usa seu conhecimento de microbiologia para criar um sistema sofisticado de degustação que ajuda os cervejeiros a avaliar o sabor, o odor e até mesmo a cor de suas cervejas com maior precisão do que nunca.

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No ano passado, Melissa, 28, supervisionou a mudança do laboratório da Avery, transferido de um galpão em Boulder para uma cozinha profissional de última geração, equipada com equipamentos como o espectrofotômetro, que avalia o amargor da cerveja com um feixe de laser. Um celômetro, inicialmente criado para contar glóbulos vermelhos, hoje ajuda os cervejeiros e os biológos da Avery a monitorar suas populações de levedura. Embora equipamentos mais tradicionais também sejam bem-vindos — nenhuma sessão de degustação estaria completa sem algumas bolachas de água e sal para limpar o paladar — o laboratório de Melissa é apenas um entre milhares de estabelecimentos que estão unindo a arte ancestral da cervejaria à tecnologia do século 21.

Existem centenas de milhares de degustadores e analistas sensoriais espalhados pelo mundo; o trabalho deles é ter certeza de que tudo que comemos e bebemos tem o sabor correto. Para virar um degustador profissional, é preciso passar por anos de um treinamento que nunca acaba — e que pode estragar a sua capacidade de relaxar e beber uma breja gelada.

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A cerveja é uma das invenções mais antigas da humanidade; existem textos encontrados no Egito e na antiga Mesopotâmia que descrevem uma receita de cerveja que data da Idade do Bronze. A cerveja sempre foi levada muito à sério. A bebida era um elemento fundamental da dieta de muitas culturas agrícolas antigas, tanto que o Código de Hamurabi afirma que a execução por afogamento é uma pena adequada para um garçom condenado por surrupiar bebida.

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Visto que a cerveja é parte da dieta humana há eras, não é de se surpreender que as cervejarias também tenham um longo histórico de controle de qualidade. Na Inglaterra medieval, as comunidades elegiam degustadores profissionais, conhecidos como ale-conners, que tinham a responsabilidade de garantir a qualidade das cervejas locais.

"Nós utilizamos o paladar humano como uma ferramenta de laboratório"

As degustações de hoje são uma evolução das técnicas tradicionais cujo objetivo era checar se um lote de cerveja não havia sido contaminado ou estragado durante a produção. Embora as técnicas tradicionais de controle de qualidade ainda tenham seu espaço — impedir que um lote de cerveja estragada chegue ao mercado continua sendo uma prioridade — a análise sensorial, com seu caráter versátil, está expandindo as fronteiras da indústria.

"Utilizamos o paladar humano como uma ferramenta de laboratório", disse Melissa. "Estamos treinando as pessoas para identificar sabores específicos, que por sua vez são utilizados para avaliar a consistência do sabor de nossas cervejas durante um certo período de tempo."

Jess Steinitz, degustadora da Avery Beer, experimenta uma cerveja durante uma degustação. Crédito: Beth Machen

A Avery não é a única cervejaria que utiliza essa tecnologia. A empresa sócia da Avery, a inglesa Cara Technologies, treina e exporta degustadores para todo o mundo, tanto para cervejarias pequenas quanto para gigantes como a SABMiller, que emprega milhares de provadores de breja em todas as suas unidades e até organiza uma competição anual de Degustador do Ano. Bill Simpson, fundador e presidente da Cara Technologies, descreve a competição como "as Olimpíadas da degustação de cerveja".

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"Os degustadores que participam da competição têm o paladar mais sofisticado que você possa imaginar", disse Simpson. "E isso porque o teste é muito mais difícil do que poderíamos imaginar há 10 anos."

Identificar diferentes sabores pode ser difícil, uma vez que eles contêm diferentes nuances. Durante um gole de cerveja, o amargor do lúpulo ativa diferentes papilas gustativas, ao mesmo tempo em que a doçura do malte ativa outras. Mas o sabor vai muito além do gosto, de acordo com Melissa. "O sabor é uma combinação de gosto, aroma e textura", afirma. "Há uma mistura de compostos, incluindo aqueles presentes no ar que enche seu nariz e entra em contato com seus receptores olfativos. O sabor é o resultado da interação entre esses diferentes sentidos."

O uso da análise sensorial permite que os produtores testem novas receitas ou mudem receitas consagradas e, em vez de opiniões pessoais, recebam um retorno com dados exatos. Os produtores não se interessam em discutir o leve sabor amanteigado de sua cerveja; preferem saber se estão lidando com traços do composto diacetil. Caso necessário, os profissionais podem fazer pequenas mudanças na porcentagem de malte e lúpulo de suas cervejas, e assim testar se os clientes fiéis notam alguma diferença. Se isso acontece, cabe aos produtores avaliar se a mudança foi boa ou não. Essa análise pode encontrar a origem de qualquer imperfeição do produto e permite que o problema seja facilmente consertado.

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Treinar degustadores que conhecem a exata composição de uma cerveja e sabem expressar suas opiniões requer muito tempo e dedicação, o que inclui provar sabores desagradáveis. Para treinar esses paladares profissionais, a Cara Technologies criou versões refinadas desses contaminantes — cápsulas cheias de substâncias químicas com gosto de terra, vômito de bebê e coisas ainda piores. O objetivo é ter certeza de que os degustadores irão aprender a identificar esses sabores no futuro.

Os sabores criados pela Cara Technologies parecem uma lista de pegadinhas de criança. O kit de Sabores inclui uma dúzia de compostos químicos que podem estragar sua bebida, como o gosto de ovo podre do sulfeto de hidrogênio, o ácido butírico (vômito de bebê), o ácido isovalérico (meia suja) e o metanol (que tem o gosto um pouco mais agradável de purê de batata).

A cientista da Avery, Melissa Antone, usa um kit para contaminar cervejas com sabores que podem resultar de problemas na produção e no processo de embalagem, incluindo o diacetil, o DMS e etanal. Crédito: Beth Machen

Já o kit Estraga-Cerveja vai um pouco além: introduzi sabores como bicabornato de sódio, semelhante ao gosto de detergente, e o p-metano-8-tiol-30ono, um composto que cheira a xixi de gato. Identificar todos esses sabores é essencial para a análise sensorial, disse Bill Simpson.

"No passado, se você conseguisse identificar o odor de banana em uma cerveja, você já era considerado um exímio degustador", ele disse. "Mas o que isso significa é que a cerveja contêm um ou mais compostos presentes na banana. Os humanos podem identificar o odor de algumas substâncias químicas, como o acetato de isopentilo, um composto com cheiro de banana que pode ser encontrado em algumas cervejas de trigo ou lagers."

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Quando Melissa inaugurou o programa de análise sensorial da Avery, em 2013, ela contratou Simpson para ministrar uma semana de treinamentos para ela e outros 16 funcionários, que hoje encabeçam o setor de degustação da empresa. A análise sensorial exige um grupo de vários degustadores; assim, cada um pode compensar o ponto fraco do outro e discutir os sabores de um lote com maior precisão.

"Ser pago para beber cerveja parece uma ótima ideia, mas beber cerveja das 10 da manhã até o fim do turno é um trabalho muito pesado"

A equipe ajuda Mellisa a desenvolver uma terminologia específica, que permite que todos os degustadores usem os mesmos termos para descrever os sabores avaliados. O tamanho das amostras e as palavras cunhadas garantem a qualidade dos dados coletados nessas sessões de análise sensorial, que serão enviadas para os superiores da empresa. Mas isso também significa que Antone está sempre recrutando e treinando novos degustadores para seu júri. Cervejeiros, contadores, assistentes administrativos, operadores de empilhadeiras — se você trabalha na Avery Brewing e tem um paladar afiado, Melissa irá colocá-lo em seu grupo.

"Assim como qualquer outro equipamento de laboratório, o paladar dos nossos degustadores precisa ser calibrado constantemente", disse Melissa. "Treino minha equipe uma vez por semana, e os convidados dos nossos júris duas vezes ao mês."

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Em um treinamento típico da Avery, cada degustador entra em uma das cabines enfileiradas no laboratório, onde recebem um copo de água para limpar o paladar e um copinho de cerveja leve e suave — como uma pilsner. Às vezes, a cerveja é adulterada com algum dos sabores da Cara Technologies e cabe aos degustadores identificá-los. Em outros casos, os funcionários precisam classificar uma série de sabores: do mais doce ao menos doce. Se essa técnica parece tirar toda a diversão de uma boa cerveja, bem, é porque é isso que acontece.

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"Ser pago para beber cerveja parece uma ótima ideia, mas beber cerveja das 10 da manhã até o fim do turno é um trabalho muito pesado ", admitiu Antone. É por isso que ela sempre mantém uma cesta com doces e frutas no laboratório tanto para agradar os degustadores quanto para incentivá-los a voltar para as sessões de treinamento. É bom acrescentar que as amostras são pequenas, o que significa que ninguém fica bêbado no trabalho.

Todo esse treinamento serve para preparar esses funcionários para as degustações reais. O laboratório de Antone organiza, em média, três ou quatro sessões de degustação por semana. A formação do júri depende do objetivo da sessão.

"Para alguns testes precisamos de um júri muito bem treinado, capaz de usar os termos que criamos para avaliar nossas cervejas", disse Antone. "Em outros casos, usamos indivíduos mais leigos, mais próximos de nosso público-alvo. Uma degustação com leigos é uma ótima forma de evitar alguma parcialidade dos degustadores mais experientes."

Todo esse treinamento pode complicar a vida cotidiana desses degustadores e analistas sensoriais; é difícil conviver com um paladar ou olfato super-sensíveis. Ezio Messina, chefe do laboratório central da Birra Peroni e ganhador do prêmio Degustador do Ano de 2014, me disse que as técnicas avançadas e o treinamento constante podem atrapalhar os momentos de descontração com amigos.

"Percebo que, mesmo fora do trabalho, minha relação com a cerveja é muito profissional", disse Messina. "Isso destrói o prazer de beber uma cerveja com meus amigos."

No caso de Melissa, ela afirma que está sempre identificando odores e sabores associados à cerveja, como os ésteres presentes em frutas e até mesmo aromas menos sabororsos, a exemplo do trans-2-nonenal.

"O trans-2-nonenal é o produto da oxidação do malte da cerveja e tem um odor de papel, algo parecido com o cheiro de um livro antigo. Ele também pode ser encontrado ns água sanitária e em banheiros químicos: Eu já me peguei dentro de um banheiro químico, farejando o ar e pensando 'É loucura minha, ou isso é cheiro do trans-2-nonenal?'".

Tradução: Ananda Pieratti