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Tecnologia

A Agricultura Brasileira Mudou, Mas os Latifúndios Permanecem

Trocamos uma ideia com o autor de um estudo que comprova que o sistema agrário brasileiro é tão moderno quanto antiquado
​Milho e soja. Crédito: ​​​Vinícius Serafim/Flickr

A recém-empossada ministra Kátia Abreu mal tinha chegado à cadeira principal da sua pasta quando causou choque em muita gente ao afirmar,​ durante uma entrevista, que não há latifúndio no Brasil. Responsável pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a senadora do Tocantis deveria dar umas bandas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação porque ao menos dezesseis pesquisadores brasileiros assinam um artigo em que atestam a existência de grandes propriedades no país.

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Publicado pela Nature Climate Change, o artigo foi liderado por David Lapola, professor de política ambiental e mudanças climáticas da Unesp de Rio Claro — região do estado de São Paulo tomada pelo plantio da cana utilizada pela indústria sucroalcooleira. "Se você tomar apenas as fazendas com mais de mil hectares, os latifúndios, elas representam 1% do número de propriedades no país, mas ocupam 45% da área total", explicou o especialista durante uma conversa por telefone.

Sua análise considerou pesquisas e dados que vão dos anos 1990 a meados dos anos 2000. Além de constatar que tem pouca gente com muita terra, o trabalho observou que a agricultura brasileira passa por um processo de comoditização em que produtos que interessam ao mercado externo ganham mais espaço e produtividade em detrimento de arroz e feijão, por exemplo. "Dos anos 1990 até agora, os únicos cultivos que se expandiam em área são as commodities: cana de açúcar, soja, o milho um pouco", disse David.

Uma das vantagens trazidas por essa mudança na produção agrícola é a redução dos índices de desmatamento. A Amazônia, bioma que a gente cansou de ouvir como ameaçado, apresenta uma média de cinco mil quilômetros quadrados de terra desmatada ao ano. Essa taxa, bem abaixo dos 27 mil quilômetros quadrados ceifados em 2004, transferiu a maior parte das emissões de gás carbônico para o setor agropecuário — fruto do metano produzido pelas cabeças de gado. "[O setor] corresponde a 87% das emissões do país", disse David.

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Para o professor, tecnologias simples e políticas públicas contribuiriam para melhorar o uso da terra no país, tais como sistemas integrados, técnica em que plantações e gado convivem num mesmo espaço, ou mesmo o uso de cercas que evitariam a pastagem livre do boi. Ainda assim, David acredita que o sistema agrário brasileiro deve mudar pouco nos próximos anos. "Não acho que uma reforma agrária a contento será feita. Serão tomadas ações isoladas que não resolvem o problema e continuará a comoditização da agricultura."

MOTHERBOARD: O trabalho liderado por você reúne uma série de outros estudos, certo?

David Lapola: Foi uma revisão de outros estudos, congregando vários estudos feitos. Ao fazer a junção de vários estudos, revisando eles, surgem conclusões novas. É um pouco denso, mas as principais questões que ele levanta são as seguintes. Possivelmente está havendo uma desacoplamento entre produção agrícola e desmatamento nos últimos tempos no Brasil. Aumentou bastante a área plantada, mas do início dos anos 2000 o desmatamento em todos os biomas do Brasil reduziu. Principalmente na Amazônia e na Mata Atlântica. A gente vê notícias dizendo que nesses biomas subiu um pouco o desmatamento, mas é muito pouco comparado ao início dos anos 80 e 90. Está bem mais baixo. Nossos dados vão até 2010, não sabemos se de lá pra cá aumentou. Há uma corrente que acha que aumentou.

Por que isso aconteceu?

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A razão é diferente. Na Amazônia é a presença do estado, a governança. Corte de crédito, criação de mais unidades de conservação, mais presença da polícia, ações do IBAMA. Nas outras regiões, ao que tudo indica, parece ter havido uma adesão a legislação ambiental voluntária do agronegócio. Aqui na região de São Paulo, por exemplo, as grandes usinas do setor sucroalcooleiro querem evitar problemas. Protegem áreas de APP, áreas de reserva legal, eles vão aderindo a normas ambientais. Eles não fazem isso por amor ao meio ambiente, fazem isso para ter acesso ao mercado. Anexar a imagem da sua empresa à degradação não é legal, especialmente se você quiser exportar. Isso é discutido no artigo.

O setor de soja na Amazônia se impôs uma moratória de desmatamento desde 2006. Desde então, a indústria oleífera afirmou que não mais compraria óleo de soja que viesse de áreas desmatadas da Amazônia. Isso fez cair em 98% o desmatamento na Amazônia por conta de soja. E ela correspondia a uma fração pequena da Amazônia, a maior parte é da frente pecuária. Houve esse desacoplamento e está havendo uma intensificação da pecuária. Ela ocupa, de longe, a maior área do país, mas existem mais cabeças de gado por hectare. Isso libera mais área para o cultivo. Isso também reduz o desmatamento.

E durante esse período houve uma profissionalização da agricultura para isso acontecer?

Se o desmatamento está diminuindo, a área de cultivo está estável, a área de pastagem, segundo o IBGE, está diminuindo e as cabeças de gado estão aumentando, qual a conclusão? Estão colocando mais gado por área de pastagem. A área de pastagem liberada passa a ser área de cultivo.

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Qual efeito que essas mudanças trazem pro clima?

A implicação é boa. A matriz de emissões do Brasil, até 2004, era dominada por gás carbônico de desmatamento. Algo como 78%. De lá pra cá, diminuiu muito o indíce de desmatamento no país. Agora é o setor agrícola o maior emissor do país. Corresponde a 87% das emissões do país.

No seu estudo foram verificadas outras mudanças do clima causadas pela expansão agrícola, não? Tais como a redução da temperatura em algumas regiões.

Uma coisa é implicação para mudança climática global, como a emissão de gases do efeito estufa, e outra coisa é implicação para mudança climática local. Se é uma floresta ou um canavial você tem temperaturas diferentes. O estudo mostra que quando a cana substitui o pasto há uma diminuição da temperatura local na ordem de um grau Celsius. Como esse, outras partes do Brasil também se vê isso. Na Amazônia a soja substituindo pastagem pode resultar em resfriamentos locais da mesma ordem, mas isso precisamos ver no frigir dos ovos se também vai afetar globalmente.

O que é a comoditização da agricultura, termo abordado no seu estudo diversas vezes?

No trabalho existem alguns gráficos que mostram a evolução da agricultura no Brasil. Dos anos 1990 até agora, os únicos cultivos que se expandiam em área são as commodities: cana de açúcar. soja, o milho um pouco. Arroz e feijão diminuiu em área, mas aumentou a produção porque aumentou a produtividade. É algo complexo.

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Isso se deve a uma melhoria da produção, seja por uso de agrotóxico ou melhor manejo da terra, mas também uma tentativa de vender para o mercado exterior.

Claro. É como uma empresa que quer abocanhar cada vez mais o mercado. No final dos anos 90, a área usada por essas culturas representava 53% das áreas cultivadas. Em 21 anos, essa proporção aumentou para 70%. A área de maior cultivo no país é de monocultura. Embora os outros cultivos representem 30% da área, eles são responsáveis pela maior parte da comida que vai para a mesa dos brasileiros. Não teve expansão da área, mas teve ganho de produção por avanço tecnológico como maior uso de fertilizante.

A recém-empossada ministra Kátia Abreu afirmou em uma entrevista que o Brasil não tinha mais latifúndios. Que relação existe entre a comoditização e a reforma agrária?

Fazendas menores que cem hectares representam 90% das fazendas do país. De toda área ocupável no país, essas fazendas ocupam em torno de 20%. As fazendas com mais de cem hectares ocupam 80% dessas áreas. Se você tomar apenas as fazendas com mais de mil hectares, os latifúndios, elas representam 1% do número de propriedades no país, mas ocupam 45% da área total. Em um levantamento prático, vamos simplificar que cada fazendeiro tem uma fazenda, significa que 1% dos fazendeiros do Brasil tem 45% das terras. Como não tem mais latifúndio no país?! Eu acho que a ministra quis dizer que não existe latifúndio improdutivo e até isso não é imbatível. Eu acho que ainda tem.

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Tem casos de fazendeiros que subaproveitam a terra também, não?

Isso envolve a questão da titularidade de terra, principalmente na Amazônia onde tem muita grilagem de terra. O cara tem uma fazenda, mas ele não sabe se daqui a cinco anos a justiça vai chegar e tomar a fazenda. Ele não vai investir muito, então põe cinco cabeças de gado porque ele sabe que se a justiça tomar, ele não vai perder muito. É inquestionável que ainda tem latifúndio. Acredito que ninguém tenha feito essa análise da estrutura agrária do país antes e temos dados do IBGE que talvez não sejam significativos, mas mostra que esse padrão está se reforçando com o tempo. de 1995 a 2006, por exemplo, as propriedades pequenas diminuíram e as propriedades gigantescas aumentaram. Em número e área.

Isso representa um aumento da população nas cidades? Já que os latifúndios estão aumentando…

Essa migração acontece também. A população no campo diminui e aumenta a população das cidades. A região onde estou, o cinturão da cana de açúcar, vive o absurdo de 98% da população vivendo nas cidades. Essa comoditização é um deserto. Ela é mecanizada, gera menos emprego e tem menos gente morando no campo. Podem argumentar que tem outras coisas também como segurança no campo, competição com outros países e aspectos culturais. A TV apregoa um estilo de vida citadino e por opção própria o filho do fazendeiro, do sitiante, ele não quer ficar no campo. Reverter esse padrão de êxodo é muito difícil. Isso é uma realidade que pode chegar ao extremo da mão do Estado ser necessária para garantir a produção de alimentos que, geralmente, é feita em propriedades menores.

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Seriam políticas públicas de incentivo?

Primeiro vem melhores práticas de cultivo, mais sustentáveis, e isso contaria com uso de tecnologia. Deixar de arar o solo, por exemplo, é algo que a Embrapa diz muito, mas muita gente faz isso. É uma técnica europeia, mas não é bom pra gente. Nós temos muita chuvas. Adoção de sistemas integrados com lavouras e pecuária é algo que existe desde os anos 80 e ninguém segue. Cultivar gado e plantação de eucalipto, por exemplo, aumenta a segurança do fazendeiro pro caso de algum problema. Junto com essas práticas e tecnologias é preciso estar atento pra gente não passar do ponto. Existe uma enormidade de estudos pro Brasil apontando que precisa intensificar a pecuária pra livrar a área para outros cultivos, mas isso acarreta maior uso de insumos agrícolas, poluição de cursos d'água, etc. Existem tecnologias, mas elas precisam vir acompanhadas de políticas públicas.

Qual a solução para essa equação entre profissionalização da produção agrícola, reforma agrária, manejo correto da terra nos biomas brasileiros e preservação do meio ambiente?

A reforma agrária é necessária por conta de segurança do direito de propriedade. Para não haver problemas de subutilização da terra, como falamos. Só que sugerir essas coisas é muito mais fácil que fazê-las, especialmente a reforma agrária. Isso vem sido falado muito no pós-Guerra. O João Goulart levantava essa bandeira e você sabe o que aconteceu com ele, né? [O ex-presidente João Goulart foi vítima do golpe militar de 1964.]

Baseado no que foi estudado até então, quais são suas previsões para os próximos anos no Brasil quanto a uso da terra?

Acho que será mantido o status quo. Não acho que uma reforma agrária a contento será feita. Serão tomadas ações isoladas que não resolvem o problema e continuará a comoditização da agricultura. Uma coisa que não se nota em discussões ministeriais diz respeito a cana de açúcar e sua suscetibilidade a mudanças climáticas. A cana de açúcar perdeu aproximadamente 50% em produtividade em 2014 por conta de seca. Em 2015 pode ser até pior. Gostaria que houvesse plano de adaptação a mudanças climáticas no Brasil e parte disso seria voltado à agropecuária.

O que poderia ser feito?

Pode-se aumentar a estrutura de irrigação no país e, em última instância, até mudar áreas de cultivo. Há 20 anos não existia soja que fosse adaptada pra condição amazônica, aí desenvolveram uma variedade adaptada a esse clima. Eu acho difícil que o desmatamento volte para os altos níveis dos anos 90 e 2000. Fica a pulga atrás da orelha para o que vai acontecer no Cerrado, porque a Amazônia está muito protegida. Acho que os olhos vão se voltar pro Cerrado no sentido de criação de áreas de proteção. Em 2004, o desmatamento na Amazônia foi de 27 mil quilômetros quadrados. Nos últimos anos esse desmatamento gira em torno de quatro a seis mil quilômetros quadrados. Os índices vão oscilar. Chegar a zero é que é difícil.