O Melhor Lugar do Mundo para Morrer
Crédito: Paul Koudounaris

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O Melhor Lugar do Mundo para Morrer

Na terra dos Tana Toraja, na Indonésia, as pessoas guardam os mortos dentro de casa por anos.

Estamos na temporada de funerais nas terras da tribo Tana Toraja, na ilha de Celebes, na Indonésia, onde telhados em forma de ¨U¨ decoram as casas de tongkonan. As construções apontam aos céus, como proas de navios, para os espíritos ancestrais.

"Não se deve temer os mortos", diz Agustinus Galugu, meu guia. "A alma ascende. O corpo é só uma vestimenta."

Levo minha bagagem para dentro da casa de Indo Lai, a nobre que viajei 16.000 quilômetros para conhecer.

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Ah, um detalhe: ela está morta.

O cadáver de três anos de idade de minha anfitriã está deitado, inteiramente vestido, em uma cama de madeira, com uma tigela de arroz ao lado de sua mão embalsamada. Escapa-me um grito involuntário, daqueles de gelar os ossos, que ouvimos em filmes de terror.

O corpo não está branco nem azul, muito menos decomposto. Ela não fede. Está brilhante e verde, embalsamada com chá e formalina. Ao seu redor estão dispostos seus objetos favoritos: uma bolsa de contas (referência ao seu hábito de costurar), um pedaço de madeira entalhado com girinos (representando seus nove filhos), uma adaga tipo kris (de sua coleção) e baunilha seca (lembrança do tempo em que brincava nos campos da região). Ela tinha apenas 73 anos quando morreu, mas agora aparenta ter pelo menos mil.

"Agradeça Indo Lai por ser uma anfitriã tão graciosa", me diz o Sr. Galugu.

"Obrigado", digo, encarando o cadáver.

"Tabek motok komi kumande", diz Galugu ao corpo sem vida, na língua nativa, oferecendo-lhe copo de água. "Por favor levante para o jantar."

Para meu alívio, ela não levanta.

***

A morte não é novidade pra mim. Meus pais morreram quando eu era jovem e fiz rituais próprios que me previnem de deixá-los partirem de vez; até hoje levo comigo uma caixa com as cinzas de meu pai. Nunca viajo sem levar uma caixa com as fotos de ambos.

Tenho medo imenso da morte. Filmes de terror me assustam. Estava com medo até mesmo de vir aqui. Mas estou escrevendo um livro sobre minha família e decidi que precisaria confrontar de frente meu pavor da morte.

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Em Toraja, é comum alimentar todos os dias um parente falecido e manter seu cadáver embalsamado confortavelmente no seu quarto – por vezes até dez anos após a morte. Os cadáveres são tratados como se estivessem "doentes" ou "dormindo" até que a família possa bancar um funeral apropriado.

Para um ocidental, este grau de intimidade com os mortos pode parecer perverso ou tabu, mas o historiador Paul Koudounaris, que estudou as práticas funerárias de Toraja em seu livro Momento Mori, me revelou que há diversos exemplos de práticas similares ou relacionadas ao cruzarmos culturas e história. "A forma como lidamos com os falecidos no ocidente atual, colocando-os em guetos ou tratando como um grupo abjeto, acaba por ser muito mais excêntrico, em termos históricos, do que a forma como os mortos são tratados em Tana Toraja", falou.

Espero que esta viagem me mostre como algumas culturas interagem, celebram e vivem com os mortos; que me traga uma maneira que desafia o temor associado à presença de um cadáver.

***

Os parentes de Indo Lai chegam em casa e a cumprimentam. Tem bastante gente. O Sr. Galugu parte. Lagartixas sobem pelas paredes. O ventilador rodopia. Deito; o corpo de Indo Lai está no quarto ao lado. Fecho os olhos e me convenço a passar ao menos a noite.

Imagino como meus amigos e familiares reagiriam caso decidisse manter o corpo de meu pai em nosso apartamento em Manhattan, Nova York, nos Estados Unidos, embalsamado e confortável debaixo do edredom. Eu o alimentaria, conversaria e daria banhos diários. No ocidente, me trancariam em um manicômio. E ao contrário do povo de Toraja, nós nova-iorquinos parecemos não ter tempo nem para cuidar de nossos parentes vivos. Quanto mais os mortos.

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***

No primeiro dia do funeral de Indo Lai, um monte de enlutados se reúne em um enorme campo cerimonial para uma procissão liderada por mulheres da família sorridentes e cobertas por brilhantes. Elas balançam uma faixa vermelha sobre suas cabeças.

Homens inebriados, alegrados pelo balok, o vinho de palma semelhante ao absinto, se acotovelam em meio à multidão. Carregam o caixão de Indo Lai enquanto dançam. Ouvem-se flautas. Tambores reverberam. Homens descalços formam um círculo e conduzem a valsa funerária. Aos poucos, o monótono entoar desacelera.

Noventa e sete búfalos e sessenta e um porcos serão sacrificados à honra de Indo Lai no banquete da morte, conhecido como Rambu Solo, que dura seis dias.

Quanto mais rico e de maior status social o nativo, mais elaborado seu funeral. O número de animais sacrificados é usado para determinar a velocidade com que a alma viajará do vilarejo rumo ao pós-vida. Um mínimo de vinte e quatro búfalos é sacrificado quando um nobre falece.

As cerimônias mortuárias custam uma fortuna. Chegam a 500.000 dólares, dependendo da casta envolvida. Toraja pode não ser um dos lugares mais caros para se viver, mas certamente é um dos mais custosos para se morrer.

"Já comprei meus trajes funerários", diz o neto de Indo Lai, Rizal, do alto de seus vinte e poucos anos. "Nós de Toraja vivemos para morrer. Temos que economizar muito. Não para a aposentadoria. Para a morte."

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Vou atrás da filha de Indo Lai, Ibu Berta, para lhe dar sementes de palmeira de betel, uma carteira de cigarros e um punhado de dinheiro – presentes costumeiros. Pergunto se ela está bem, se está triste.

Ibu Berta nega. "Estou ocupada demais para ficar triste. Amanhã chorarei pela primeira vez quando os búfalos forem mortos. Chorarei quando mamãe morrer de verdade."

As lágrimas acumuladas em seus olhos me revelam que ela sabe que sua mãe já morreu, mas entendo. Levei dois anos para chorar depois que minha mãe e meu pai faleceram. A negação é fácil de engolir, porém tem efeitos colaterais cruéis. Ibu Berta e eu somos dois completos estranhos, íntimos como diários fechados, ambos descendentes da nobreza indonésia unidos pelo pesar.

A morte aqui, entre seus habitantes, não é nada macabra. É vibrante: não se vê imagens de gente enlutada de preto sob guarda-chuvas e óculos escuros. Pela noite, muitos visitantes prestam suas homenagens. Carteiras de cigarros de cravo kretek e animais selvagens inquietos cercam o caixão.

***

Na tarde seguinte, centenas de enlutados se reúnem em torno de um homem cuja unha do mindinho tem uns cinco centímetros. Ele leva um facão à garganta do primeiro búfalo pronto para o sacrifício e marca a morte oficial de Indo Lai. Este ritual, essencial na crença de Toraja no Aluk To Dolo, "O Caminho dos Ancestrais," garante aos mortos um pós-vida realizado.

O cristianismo é a principal religião de Toraja, mas tendo em vista a "Intricada Colcha de Fés" da Indonésia, diversas religiões e pontos de vista sobre os mortos coexistem com uma tradição anciã de animismo. O búfalo – símbolo de sucesso, status e fertilidade – bufa e se contorce. Logo se torna alimento, assado e glaceado diante de nós por especiarias exóticas.

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Meninos aparam o sangue que espirra aos borbotões em pedaços de bambu e o bebem. O público celebra. Meu estômago revira. O banquete da morte é permeado por uma alegre carnificina. O sacrifício cerimonial traz consigo risadas e festividade. Sangue de búfalo espirra em meus lábios; tem gosto metálico. Sete búfalos já foram. Restam quatro dias de festa e mais 90 búfalos até que a família de Indo Lai tenha satisfazido a sociedade e Deus, e até que seu espírito ascenda à Puya, terra das almas.

***

No último dia do funeral de Indo Lai, desfilamos pela vila com seu caixão, preenchido com bens queridos para a vida após a morte. Uma mulher desmaia. Meia dúzia de parentes choram de pesar, como se a morte de Indo Lai só os afetasse agora, apesar de seu falecimento há três anos.

Nós ocidentais tendemos a ver a morte como algo súbito e abrupto, mas aqui, pondero: seria mais saudável, aceitar, interagir e amar o cadáver? Minha mente salta para o leito de morte do meu pai no Hospital Mount Sinai. Minha tia Mary havia lhe homenageado ao criar uma máscara mortuária após o falecimento, filmando o processo. Poderia ter passado um tempo com o cadáver de meu pai, estudado seus contornos. Na época, porém, a ideia de ter seu corpo ali me aterrorizava.

Crédito: Paul Koudounaris

"Não poderei mais falar com ela", disse Ibu Berta, às lágrimas. "Ela está indo embora."Observamos o caixão de Indo Lai ser levantado a uma sepultura em um penhasco alguns metros acima.

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Cada cidade tem seu próprio cemitério, onde os corpos são levados meio que aleatoriamente a sepulturas ou caixões pendurados. Alguns caixões são tão velhos que se abriram; é possível ver pilhas de crânios, pedaços de madeira, pedras e ossos quebrados espalhados por cavernas úmidas. Esqueletos são enterrados nas montanhas e penhascos ao redor. Já os bebês são sepultados em árvores.

Restam quatro dias de festa e mais 90 búfalos até que a família de Indo Lai tenha satisfazido a sociedade e Deus

Uma escultura tau tau – réplica realista do corpo e rosto de Indo Lai usando uma versão em miniatura do seu vestido ikat favorito – é colocada na caverna de forma a observar o vilarejo.

"Não será a última vez que a verão", explica o Sr. Galugu. "Em sinal de respeito, a família exumará o corpo de Indo Lai de tempos em tempos e lhe dará banho no rio. Isso se chama Ma'Nane." Todo mês de agosto, os mortos são vistos vagando as vilas autônomas de Toraja. Aqui eles não descansam em paz.

Por mais que a prática não seja obrigatória, familiares que desejam ver seus parentes falecidos tomam parte nesta purificação ritualística. A família de Indo Lai o fará ao vestí-la com uma nova roupa. Ela será levada ao local onde morreu e seu corpo será levado pela cidade, caminhando, como um zumbi. Corpos que não foram bem preservados, com a pele enegrecida soltando do corpo serão embalados e alimentados pela família; o amor é cego quando se trata da feiúra da morte em Toraja.

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Em vilarejos animistas isolados como Mamasa, curandeiros supostamente conseguem fazer com que o cadáver reviva temporariamente por meio de magia negra, fazendo-os andar sem auxílio. Os cadáveres ambulantes não reagem a estímulos ou possuem qualquer expressão; apenas caminham roboticamente para suas cidades natais.

"Você acredita que eles conseguem andar sozinhos?", perguntei ao Sr. Galugu.

"Não acredito que cadáveres possam andar sozinhos – não sem magia."

***

Crédito: Paul Koudounaris

Se eu desenterraria minha mãe só para passar mais um tempo com ela? Tive o estranho privilégio catártico de assistir à morte de meu pai. Mas com ela foi diferente. Não sei bem como mamãe morreu, quais foram suas últimas palavras, ou como era seu rosto. Só ouvi seus gritos. Nunca me despedi. Não fui nem ao funeral. Ninguém me disse que ela havia morrido. (Parentes temiam que se meu pai, recém-saído de um coma, soubesse, os aparelhos não seriam o bastante e ele morreria.). Fico pensando: será que ver mamãe pela última vez me daria algum conforto? Deveria eu ir até sua sepultura em Yogjakarta para abraçar seus ossos mais uma vez?

Penso então como quero que as últimas imagens que tenho de minha mãe continuem intactas e sagradas. A orquídea roxa está presa atrás de sua orelha esquerda. Ela me embala. O dia mal começou e ela está de batom e vestido de seda vermelho. Seu sorriso escancarado – quase uma gargalhada – alarga seu nariz. A chuva fraquinha que caía no capô do carro vira uma tempestade e embranquece a paisagem tropical. A neblina se espalha pelo vidro. Mamãe usa seus dedos para traçar três formas – nossa família, em bonecos de palitinho. No final, a morte nunca é o fim mesmo.

Tradução: Thiago "Índio"