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Música

Não me convidem mais para festas destas

Estava obcecado em provar a mim mesmo que ainda estava apto a invadir as festas dos outros.

Sempre tive o dom de ser arrastado aleatoriamente para festas sem ter sido convidado. O Miguel dos Savanna falou-me de uma festa da

Coronado

, que eu não sabia o que era, no Porto, local que fica bem longe do Cais do Sodré, mas, e uma vez que não tinha sido convidado, senti-me na obrigação de ir. Já passaram alguns anos desde que eu deixei de assombrar festas privadas e noites Erasmus em apartamentos. Já mal me lembrava do truque para esconder garrafas de vodca dentro das calças, mas senti que valia a pena arriscar o número noutra cidade — se corresse mal, não manchava a o meu CV.

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A

Coronado

, um colectivo de artistas apaixonados e apaixonantes, deu uma festa no Porto em que apresentou o mais recente trabalho dos Eating Thunder (projecto de alguns membros de Equations). Também deu oportunidade ao DJ RAmédio de mostrar que até gosta de música animada e arrebatou toda a gente com a Jibóia que trouxe uma vaga de calor do deserto com efeitos devastadores. Eu, que fui em missão antropológica, acabei embrenhado nas práticas da tribo.

E assim me fiz à estrada, na companhia do RA e de outro penetra que eu levei para ter um

sidekick

caso acabasse perdido nas ruas do Porto. A cena é que o meu

sidekick

era um bocado gordo e não conseguimos passar dos 130 quilómetros por hora. Estávamos atrasados para a festa e, por nossa causa, os Coronado atrasaram os concertos. Esta malta já me tinha conquistado, só faltava cerveja fresca para sermos melhores amigos. Gosto de imaginar que eles ficaram sentados e caladinhos à espera que chegássemos.

Os Eating Thunder tocaram no vão de escadas do prédio do ZéZé (baixo dos Equations). Eu cheguei desvairado de sede, mas o concerto deixou-me água na boca e consegui a proeza de atrasar 30 minutos o meu primeiro balde de whisky. Os degraus tremiam com o ressoar das duas baterias e o público ficou encostado à parede enquanto levava uma sova de sintetizadores. Enquanto o Bruno alternava entre destruir baquetas e fazer a primeira maratona em vão de escadas e corrimões, cantava num microfone com cabo infinito. Foi tão bom que tive de beber dois wiskeys até voltar a sentir a espinha.

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Pelos vistos, o Bob Sinclair ia lá passar música e a Carolina Torres ia lá fazer não sei o quê, mas o Bob furou um pneu e não apareceu e à Carolina aconteceu qualquer coisa. Ficou o DJ RAmédio a “passar música”. É nestas alturas de crise que a iniciativa popular, a noção de democracia e a sociedade civil nos surpreendem: imediata e espontaneamente começou a circular um abaixo-assinado para expulsar o DJ. Como fui eu que tomei a iniciativa e nem sequer tinha sido convidado, o DJ não foi expulso — na verdade, a música até era boa, eu é que estava obcecado em provar a mim mesmo que ainda estava apto a invadir as festas dos outros. Falhei redondamente.

O Jibóia entrou sem aviso prévio e transformou a sala de estar nas catacumbas da pirâmide de Gizé. Só me apercebi que estava a dançar porque senti os pés e as pernas molhadas de whisky que vertia em movimentos oscilantes, tal e qual uma cobra hipnotizada. E não, em nada semelhante a uma bailarina de dança do ventre.E eis que o espaço é invadido por dezenas de homens em tronco nu, a dançar e fazer moche e

crowd

surfing

Assim que comecei a ouvir os pêlos dos peitos a roçar uns nos outros, sentei-me debaixo de uma mesa, a chorar de olhos fechados e ouvidos tapados (como aprendi em vídeos institucionais e pedagógicos sobre ataques nucleares). Aquele disparate nunca mais acabava, por isso resolvi chamar a polícia. Sim ,fui eu. Desculpem Coronados. Ainda me recompunha da experiência e questionava o sentido da minha existência no mundo quando um jovem, claramente influenciado pela actuação dos Eating Thunder e pela mistura de bebidas alcoólicas, tentou deslizar no corrimão das escadas. A meio metro de mim, o jovem cai.

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Passo a explicar detalhadamente o que se passou nesse preciso momento. Olhei para o jovem, olhei para a cerveja e pensei: “Porra, gastei um balúrdio em gasolina e este jovem vai falecer. E se ele falece, a festa acaba. Mas se eu sacrificar esta cerveja, salvo a vida do jovem e posso beber mais cervejas. Humm, mas esta está tão fresquinha. Está mesmo… gelada. Ainda não comi gelados este ano e já vamos a meio do Verão. Estamos em Julho ou Agosto? Ei, e o Agostinho? Nunca mais o vi, acho que vive na Suíça. Bons chocolates lá. Gosto de chocolates. E de cerveja. Ah! A cerveja… Está quente já. Bem, é melhor agarrar o jovem, se não vamos a conduzir bêbedos para Lisboa e morremos todos.”

Agarrei o jovem e ele pediu-me em casamento. Quando eu ia aceitar ele bolsou-se e foi dormir. E eu fui celebrar o a sobrevivência do jovem. Não me lembro de muito mais. Deixo-vos um vídeo-puzzle para reconstruir o resto da festa. Sei que por volta das seis da manhã vi jovens a tirar fotografias proto-eróticas com jovens que estavam inconscientes. Sentei-me num canto com uma faca na mão e esperei que o sol nascesse.

De manhã, o RA estoirou-nos a alma com guitarras e sintetizadores. Toda a gente agradeceu porque era mesmo preciso esfregar os pecados da noite anterior com

riffs

bem agrestes.

Na hora de ir embora, o ZéZé tentou esconder-se na nossa bagageira. Queria continuar a festa em Lisboa. Nós também gostávamos de ter a Coronado em Lisboa, mas tínhamos planeado encher a bagageira com francesinhas congeladas.

Cá está ele a tentar fugir para a capital.

Esperamos uma visita. E eu espero voltar a não ser convidado para festas destas.

Fotografia por Gonçalo Duarte