Don Cheadle fala sobre racismo no cinema, o medo de Trump e sobre ser Miles Davis
Don Cheadle como Miles Davis em Miles Ahead. Todas as fotos são cortesia da Sony Classics.

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Don Cheadle fala sobre racismo no cinema, o medo de Trump e sobre ser Miles Davis

Conversamos com o diretor e protagonista do novo biopic que retrata o período de exílio da lenda do jazz no fim dos anos 1970.

Há cerca de três décadas, Don Cheadle se destaca como uma presença versátil e convincente nas telas do cinema, fundindo-se em papeis variados, desde o psicótico nervoso Mouse em Devil in a Blue Dress (1992), o ator pornô cowboy e incompetente Buck Swope em Boogie Nights (1997) até o herói da vida real Paul Rusesabagina do angustiante drama Hotel Ruanda (2004).

E Cheadle rouba a cena novamente em sua estreia como diretor com o filme Miles Ahead, no qual ele interpreta a lenda do jazz Miles Davis durante seu hermético e drogado "período de exílio", no fim dos turbulentos anos 1970. Com sua carranca, seu permanente e um guarda-roupa colorido e rebuscado, o Miles Davis de Cheadle é o tipo de cara que usa "motherfucker" como pontuação.

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Sem se prender estritamente à verdade documentada, o enredo acompanha as tentativas de Davis e do jornalista chantagista — totalmente ficcional — da Rolling Stone Dave Braden (Ewan McGregor) para resgatar uma fita de seu trabalho que fora protegida pela gravadora. O pico emocional da história fica a cargo das lembranças recorrentes de Davis de sua amada Frances Taylor (personagem relativamente subutilizado e interpretada por Emayatzy Corinealdi), a qual aparece em cenas de flashbacks dos anos 1960 juntamente com Cheadle como um Davis mais distinto.

Embora tenha um ritmo rápido, Miles Ahead não é bem-sucedido em termos dramáticos o tempo todo: o tom é demasiado jocoso, e sua narrativa, por vezes, lembra uma versão mais longa de cenas do Boogie Nights nas quais Dirk Diggler e Chest Rockwell cheirados tentam recuperar suas fitas "mágicas" de um produtor musical.

Entretanto, apesar de suas falhas, Miles Ahead é um trabalho enérgico que ostenta um refinado desempenho central, e é um ponto diferente dos modelos lineares e moribundos que costumam relegar as biobics à mediocridade. O filme levou dez anos para ficar pronto, e foi parcialmente financiado por uma campanha bem-sucedida no IndieGogo (Cheadle levantou impressionantes 344.582 dólares) e é, claramente, um trabalho de amor do diretor-protagonista.

Conversei recentemente ao telefone com Cheadle para discutir seu amor por Miles Davis, a origem do filme e a revelação de que a contratação de McGregor, um ator famoso e branco, foi um "imperativo financeiro".

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VICE: O finado grande teórico britânico Stuart Hall disse uma vez, "Quando eu tinha 19 anos, Miles Davis pôs seu dedo em minha alma e nunca mais o tirou". Você poderia falar um pouco sobre o que ele significa para você e como você teve a ideia de fazer um filme sobre ele?
Don Cheadle: Era a música que tocavam em minha casae que eu ouvia ainda antes de saber o que era direito. Cheguei ao Miles por meio de Cannonball Adderley, porque eu toquei saxofone alto quando era criança. Eu gostava muito do Cannonball. Meus pais tinham seus discos, então percebi que ele tocava com o Miles, e eu me perguntava, "Quem é ele?". Isso abriu as portas da música para mim. Eu tinha dez ou onze anos. E isso que você disse, "colocou o dedo em minha alma", nunca terminou.

Nós avançamos vários anos no tempo, até o momento em que o sobrinho de Miles, Vince Wilburn, o introduziu ao Rock and Roll Hall of Fame em 2006, anunciando que eles fariam um filme sobre a vida dele, e que eu o interpretaria. Eles me deram algumas ideias sobre como queriam a história, e estavam ok com elas, mas eu queria fazer algo mais impressionista, louco, imprevisível e nada convencional, levando em consideração minha experiência com a música do Miles e todos os lugares aos quais ele a levou. Para crédito deles, eles disseram, "Achamos que Miles preferiria assim, em vez de algo que abordasse todos os aspectos de sua vida".

Você mencionou que tocou sax quando criança. Você tocou trompete enquanto interpretava o Miles no filme?
Quando eu soube que seria responsável por juntar tudo isso, peguei o trompete e comecei a tocar, comecei a aprender como tocá-lo. Para mim, é um grande aborrecimento ver as pessoas interpretando músicos e perceber que claramente elas não têm qualquer familiaridade com os instrumentos. Eu não queria interpretar esse filme sem compreender o trompete.

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Além disso, eu queria fazer o que o Miles fez. Eu queria estar no lugar dele, e estar o mais próximo dele possível. Foi importante aprender como tocar, e estar em um tipo de linha do tempo na qual ele estava. Eu provavelmente só cheguei até onde ele chegou aos onze ou doze anos, mas ainda toco alguns solos no filme. Transcrevi todas as músicas e aprendi todas as coisas.

Ainda assim, o Miles Davis de doze anos ainda é o Miles Davis, certo?
Isso mesmo! E em algum ponto, ele foi tão ruim quanto eu sou agora [risos]. Eu só queria estar em algum lugar desse contínuo. Ainda toco muito todos os dias.

Você falou no Festival de Filmes de Berlim que contratar um coadjuvante branco foi um "imperativo financeiro" — algo necessário para conseguir fazer o filme. Houve uma diferença entre saber que isso estava no horizonte, e fazer de fato?
Foi um pouco dos dois. Estou nesse negócio há 30 anos, e produzo filmes há somente alguns poucos. Entendo o que faz um filme ser feito, e por que alguns filmes simplesmente não acontecem. O elenco é grande parte disso, especialmente quando você tenta garantir um componente estrangeiro com suas peças da casa. Se fôssemos rodar o filme no Japão, eu teria contratado um ator japonês e tentado levantar o dinheiro no Japão. Eu teria contratado um ator francês se pensasse em rodar o filme na França.

"Eu provavelmente só cheguei até onde Miles Davis chegou aos onze ou doze anos, mas ainda toco alguns solos no filme. Transcrevi todas as músicas e aprendi todas as coisas"

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Você poderia ter feito como o Shaft, quando fizeram Shaft na África. Você poderia ter feito sequências e ter levado o Miles por todo o planeta.
Se você quiser arrecadar dinheiro nesses lugares diferentes, tudo depende de como você vai tentar juntar toda essa grana. Ter o Ewan McGregor assinando o contrato permitiu que as coisas acontecessem [financeiramente]. Aliás, tê-lo no elenco foi um acréscimo, e bastante caro, mas estou muito satisfeito por tê-lo a bordo e porque ele quis fazer o filme.

Como cineasta, você se identifica com o que acontece com o Miles no filme? Querer ter o tempo que ele considera necessário, e deixar a criatividade fluir, mas, por causa das forças do mercado e de sua gravadora, isso fica praticamente impossível.
Sempre existirão essas perguntas sobre o que é seu versus o que é das outras pessoas, o que é a propriedade, o que é o valor que você tem das coisas as quais produz e como você equilibra seu modo de vida com sua criação artística. Não é uma coisa que você liga e desliga, apertando um botão. Especialmente quando você é alguém como o Miles Davis, que não tenta fazer as mesmas coisas de sempre até saber que elas não funcionam. É bastante arriscado ter um público já consolidado, ter pessoas que já te apoiam e o promovem, e então dizer "Valeu, pessoal, mas agora vou fazer desse outro jeito. Se quiserem me acompanhar, legal, mas vou seguir meu próprio caminho". É raro ver artistas fazendo isso. Muitos encontram uma zona de conforto e permanecem nela, extraindo tudo o que podem até que não reste mais nada. Você não sai disso a não ser que tenha que sair. Ele saiu porque precisava internamente fazer isso.

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Na indústria cinematográfica, há pouquíssimas pessoas, incluindo Paul Thomas Anderson, que parecem ter a liberdade de fazer filmes estranhos e vanguardistas com orçamentos grandes (como The Master e Inherent Vice). Isso não acontece com muita frequência, não é mesmo?
Não. Em geral, você tem que nadar com a maré. Tem que haver uma linha tênue a ser ultrapassada, e as pessoas devem acreditar que você é um risco aceitável antes de deixarem você fazer algo criativo e inovador. Ou elas devem pensar que pode valer um Oscar, então vão arriscar.

"Lembro de sentar com algumas pessoas do estúdio quando Hotel Ruanda estava para ser lançado. Estávamos no Prêmio SAG e um dos executivos disse, 'Bom, se o filme não receber nenhuma atenção do Oscar, não vamos mais gastar com marketing'. Fiquei, tipo, 'Eu ouvi isso!'"

Você falou de valer um Oscar. Há alguns meses você tuitou uma piada sobre o apresentador do Oscar ser o Chris Rock: "Yo, Chris. Venha me ver no #TheOscars este ano. Estou estacionando os carros no piso G". Temo que a "diversidade" esteja se tornando só mais um jargão. Quais você acha que são as lições que a indústria pode aprender, e como a indústria ficará depois da mais nova controvérsia sobre o assunto?
Gostei que você disse "mais nova", porque é uma coisa cíclica, né? Vamos ver se essas coisas que a Academia tentou fazer surtirão algum tipo de efeito. Ainda acho que se trata do que acontece entre as quatro paredes onde as pessoas decidem se algo vai acontecer ou não. E isso acontece muito antes de alguém no palco entregar uma estátua a outra pessoa.

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Obviamente, também há um componente financeiro. Lembro de sentar com algumas pessoas do estúdio quando Hotel Ruanda estava para ser lançado. Estávamos no Prêmio SAG e um dos executivos disse, "Bom, se o filme não receber nenhuma atenção do Oscar, não vamos mais gastar com marketing". Fiquei, tipo, "Eu ouvi isso!". Foi a primeira vez em que compreendi que não é uma questão de vaidade, de "olhe para mim, aplauda-me no palco": esses elogios são vitais para o filme.

Não sei se, como você disse, "diversidade" vai significar algo mais assim que a poeira baixar e algo novo surgir e nos tirar a atenção desse assunto. Mas é delicado. É difícil fazer qualquer tipo de filme, o tempo todo, sempre.

Você já trabalhou com muitos grandes diretores. Isso preparou você para seu próprio trabalho?
Tudo isso vai afunilando de certa forma, e você tenta absorver as melhores partes deles. Mas uma coisa que todos os bons cineastas têm em comum é que eles compreendem que é uma tarefa colaborativa; eles são permeáveis e contratam você não para ser somente uma peça da mobília, mas porque acreditam no seu talento. Eles podem ser os árbitros finais, obviamente, mas você não está lá somente para cumprir ordens e tarefas. Especialmente quando dirijo, atuo e cumpro vários papeis diferentes, eu queria empoderar a equipe ao meu redor para sentir que eles poderiam ser meu apoio muitas vezes, tipo, "Você acha que preciso de outra tomada?". As pessoas não acreditam que você quer dizer isso, mas assim que elas acreditam, todo mundo passa a se sentir mais parte do processo.

Por fim, percebi que você se expressa bastante sobre política no Twitter, então devo perguntar: você está triste com o fim do mandato do Obama, especificamente com a ascensão de Donald Trump?
Sim. [A ascensão do] Trump é de dar nos nervos, realmente. Especialmente hoje [eu e o Cheadle conversávamos horas após o ataque em Bruxelas]. Você vê o disseminador de medo. É assustador que as pessoas não estejam prestando atenção nisso. Nunca acreditei que o incentivo para esse tipo de mentalidade tivesse desaparecido. Agora ela só ficou implícita. De certa forma, estou grato a ele [Trump], assim podemos identificar de onde vem essa mentalidade, e que as pessoas estão levantando suas bandeiras de forma clara e com orgulho. Eu quero saber onde esse caras estão, não os quero rastejando no escuro. Eu os quero sob os holofotes, e que essa mesma luz os mate um pouco, como a um câncer. Eu só tenho medo por que não é preciso de tantos malucos assim para sentir o efeito desse medo no nosso cotidiano.

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Tradução: Amanda Guizzo Zampieri

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