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Entretenimento

Confissões Televisionadas São o Novo Reality Show Favorito dos Chineses

O prazer em contemplar a desgraça alheia é torrencial: os chineses estão viciados em assistir confissões na prisão.

Imagem via CCTV pelo YouTube.

Seja por causa dos dramas com sérias restrições orçamentárias, dos documentários editados e censurados ou dos talk shows combinados, a televisão chinesa tem a manha de ser péssima. Depois da milésima reprise de O Rei Macaco e A Batalha dos Três Reinos, não é de se admirar que os produtores da CCTV, a emissora de televisão estatal chinesa, estejam procurando outras fontes de inspiração. Seguindo o exemplo dos colegas do resto do mundo, reality shows se tornaram um sucesso também na China. Uma variação em particular da TV sobre a realidade é extremamente popular aqui: confissões na prisão.

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Naw Kham era um rebelde birmanês que se tornou um barão das drogas. Ele era tão bom em invadir terras e tão querido pela população do Triângulo Dourado, onde ópio e heroína são o meio de vida dos moradores, que as autoridades chinesas consideraram usar um drone para jogar uma bomba nele. O chefão do tráfico acabou enraivecendo a opinião pública da China quando matou uma tripulação de marinheiros chineses (provavelmente mulas de algum de seus rivais). Quando Kham finalmente foi preso, seu julgamento foi televisionado. A câmera não tirou o foco dele nem por um instante até que ele fosse levado para ser executado por injeção letal.

Os espectadores chineses adoraram o show, não pararam de falar sobre isso, de blogar sobre isso, de postar comentários como este – que pode ser traduzido assim – no China.com: “Naw Kham precisa morrer. Treze marinheiros chineses [mortos no Massacre do Rio Mekong] não conseguem descansar em paz”. O julgamento de Naw Kham fez tanto sucesso que abriu caminho para toda uma nova tendência televisiva.

Ontem, a VICE falou sobre o Raio do Oriente, um culto quase cristão que prega ensinamentos violentos e a derrota do “Grande Dragão Vermelho” (leia-se: o Partido Comunista da China). No final de maio, Zhang Lidong, membro do Raio do Oriente, espancou uma mulher até a morte num McDonald's no leste da China, provocando indignação nacional quando um vídeo de celular do incidente se espalhou pela internet. Alguns dias depois, Zhang, juntamente com quatro outros membros do culto presentes no momento do espancamento, foram capturados pela polícia chinesa. O membro do Raio do Oriente foi colocado em frente às câmeras para confessar seus crimes, mesmo tendo delirado violentamente dizendo que a vítima era um “demônio e um espírito ruim”. Seu julgamento, no entanto, só começou no dia 21 de agosto.

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E não são só criminosos violentos que estão sendo colocados na TV usando o colete laranja dos presidiários. Guo Meimei, apelidada de Paris Hilton chinesa, chamou a atenção do país há três anos ao postar online fotos de sua Maserati e de seu Lamborghini, mesmo dizendo ser gerente da Sociedade Chinesa da Cruz Vermelha (SCCV). Mais tarde foi revelado que ela não era realmente empregada da SCCV, mas a amante de um homem parceiro da organização. Rumores de desvio de verbas se espalharam, e as doações para a Cruz Vermelha despencaram, afetando severamente o trabalho humanitário realizado na província de Sichuan, propensa a terremotos, além da ajuda que a organização fornecia em outras áreas afetadas por secas e inundações. Sem se perturbar por sua vaidade ter prejudicado famílias necessitadas que perderam tudo, Guo continuou a postar fotos de camas cobertas de dinheiro e milhares de dólares em fichas de cassino usadas em suas altas apostas em Macau.

Mês passado, Guo Meimei foi presa por fazer apostas ilegais durante a Copa do Mundo da FIFA. Ela também apareceu em rede nacional confessando, novamente sem julgamento. Na TV, ela falou sobre suas apostas e disse que ganhava dinheiro passando a noite com homens ricos, nunca aceitando menos de US$17.000 por encontro.

E indivíduos que pisam nos calos políticos do governo chinês vêm recebendo o mesmo tratamento. Gao Yu é uma jornalista defensora da liberdade de imprensa e analista política. Alguns dias antes de 4 de junho deste ano, o aniversário de 25 anos do Massacre na Praça da Paz Celestial, ela desapareceu. Por já ter passado sete anos na cadeia por suas ideias – acusada de “publicar segredos de estado” –, amigos da jornalista de 70 anos sabiam que ela estava sob custódia da polícia. Logo depois de seu desaparecimento, Gao Yu apareceu na CCTV com o rosto borrado mas a identidade revelada. Ela “confessou” que seus atos “prejudicaram interesses nacionais” e que suas ações foram muito erradas, apesar de não ter ficado claro quais foram essas ações. No ar, ela se declarou culpada e disse que “aceitava sua lição”. Nenhuma dessas declarações refletem as décadas dedicadas à defesa da democracia e da liberdade de imprensa ou as crenças da jornalista que recebeu o Prêmio Mundial de Liberdade de Imprensa da UNESCO.

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A internet logo foi inundada por respostas como o comentário abaixo postado no Baidu: “Sugiro que essa vadia traidora seja executada depois dessa confissão. Se ela não morrer, as consequências podem ser desastrosas. A chave é que ela mande um exemplo para as mulheres vãs”.

Muitos outros detentos de alto escalão estão sendo jogados diante das câmeras antes de seus julgamentos, todos admitindo crimes e se arrependendo de seus pecados. Alguns mostram marcas pelo corpo, levantando suspeitas de coerção e tortura.

Esse tipo de confissão pública está enraizado num período tumultuado da China moderna. Quando Mao guiava o país para a ruína econômica, sessões de luta eram comuns. Nelas, rivais políticos e adeptos do capitalismo eram publicamente humilhados, repreendidos e abusados diante de mais de 100.000 pessoas até que denunciassem os males do capitalismo, o que, às vezes, levava a execuções. Essas sessões de luta estão entre as coisas mais repulsivas que aconteceram na China na era Mao e plantaram as sementes da reverência inquestionável que aflige a população chinesa até hoje.

Em 2013, quando Xi Jinping assumiu a presidência chinesa, ele ganhou impulso com sua luta contra a corrupção, iniciando uma campanha de “crítica e autocrítica” que visava oficiais do governo que aceitavam propinas, caçando “tigres e moscas” dentro do Partido Comunista Chinês. Derrubar grandes criminosos e rivais, fazendo-os confessar seus crimes publicamente, também se encaixa no perfil dessa campanha. Ao mesmo tempo, a mídia estatal vem promovendo a imagem de Xi, mais agressivamente que a de qualquer outro líder desde Mao. O culto à personalidade está na moda novamente, e um líder forte precisa de distrações para os problemas reais, como comida insegura, valores impossíveis para os imóveis urbanos e o rápido crescimento da desigualdade social.

Ano passado, o Supremo Tribunal Chinês proibiu extrair confissões através de tortura, mas essas transmissões contam uma história diferente. Usar bodes expiatórios é uma tática comum dos regimes autoritários, mas a mistura de confissões e amostras de arrependimento de criminosos famosos é potente. Há muito poder contido na imagem de pessoas conhecidas, notórias e odiadas algemadas, atrás das grades, denunciando suas antigas crenças e admitindo seus erros, humilhando-se numa nuvem de prostração. As sessões de luta de Mao tinham milhares de espectadores, mas as confissões televisionadas de hoje alcançam mais de um bilhão de pessoas.

Expresso nos comentários online, o prazer em contemplar a desgraça alheia é torrencial, mas se os julgamentos televisionados perderem a popularidade, os chineses já têm um substituto: o Estado Islâmico tem fornecido material de sobra. O vídeo quase impossível de se assistir da execução de James Foley passou numa tela enorme numa praça pública em Pequim, o que se encaixa perfeitamente no desejo do governo chinês de projetar uma imagem harmoniosa para seus cidadãos, enquanto mostra o caos no resto do mundo.

O mau gosto evoluiu para o surreal, e a audiência só faz subir.

Tradução: Marina Schnoor