Pode dar carrinho, sim: o que aprendi jogando bola num time misto

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VICE Sports

Pode dar carrinho, sim: o que aprendi jogando bola num time misto

No futebol tem sempre aquele fenômeno dos caras que nunca tentam me dar carrinho porque, por algum motivo arcaico, é errado desafiar uma donzela indefesa.

Foto: Acervo Pessoal

Assim como na Arábia Saudita, meu colégio não oferecia esportes "masculinos" às garotas. Isso significa que passei cinco anos fingindo cólicas menstruais para fugir do badminton e jogos de netball tão tediosos que, às vezes, levar uma bola de lacrosse no olho era o que esquentava as coisas. Só fui receber uma oportunidade de jogar futebol pela primeira vez aos 21 anos quando um grupo de garotos do jornal da faculdade me convidou para suas partidas semanais. Desde então, me tornei uma jogadora dedicada. Eu e minha companheira Rachel, a única mulher além de mim em nosso time misto. Sei que sou muito mais rápida, saudável e entusiasmada do que a maioria dos caras com quem joguei, no mesmo time ou contra. Apesar disso, o consenso geral no time é de que sou inadequada e um estorvo total quando jogamos de forma competitiva. É difícil comparar anos de prática com entusiasmo. Mas isso tem a ver com muito mais do que experiência. Antes de pisar no gramado, você se depara com a suposição de que as mulheres não jogam o jogo de verdade. Veja, por exemplo, a compra do uniforme, uma tarefa diga de Sísifo, levando em consideração que os uniformes de futebol para as mulheres não existem. Percorri todas as lojas Sports Direct em um raio de 16 quilômetros da universidade de Edimburgo, na Escócia, e fui recebida por atendentes antipáticos que me perguntavam se as caneleiras que eu queria eram para meu namorado. Passei a procurar pelo uniforme na internet, um lugar onde você pode comprar tudo, desde pau de selfie a rícino, menos, claro, equipamento de futebol para mulheres. Ao refinar os resultados da minha pesquisa por gênero nas lojas on-line, muitas delas ofereciam opções para "homens" ou para "crianças", o que significa que, na verdade, tenho de jogar com um par de botas infantil com bermudas masculinas puxadas até acima do meu peito. Talvez isso não signifique nada, mas é difícil se levar a sério no gramado quando a impressão que dá é que você andou pegando umas roupas na lixeira perto do campo de treinamento dos dentinhos-de-leite.

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Foto: Acervo Pessoal

Apesar de minhas inadequações, gosto muito de jogar futebol. Ser uma de duas mulheres em um time misto de 11 pessoas é excepcional quando você joga de modo competitivo contra outros times. Embora haja piadinhas amigáveis, os caras com quem jogo são, em geral, bastante respeitosos. O mesmo não pode ser dito a respeito dos times (do mesmo sexo) com os quais já disputamos partidas. Já fiquei a alguns metros de distância de um cara que marcava um dos nossos jogadores e disse que ia "grudar nele como um estuprador", um comentário que ninguém no time pareceu ter percebido até que o mencionei depois do jogo. Já me explicaram essas coisas de forma condescendente ("mansplaining") e já ouvi muitos outros comentários sobre ter mulheres no time com os prognósticos de que somos tão úteis quanto os joelhos do Daniel Sturridge.

Tem também aquele fenômeno esquisito dos caras que nunca tentam me dar carrinho porque, por algum motivo arcaico, é errado desafiar uma donzela naturalmente indefesa. Rachel, a outra mulher no time, é diferente. Ela cresceu na Bélgica e jogou em times mistos até os 15 anos (até que, ela me contou, isso se tornou ilegal pelas leis belgas). Ela é uma jogadora extremamente talentosa, mas sua superioridade não é atribuída a alguma diferença de gênero – até onde sei, nós duas temos vaginas debaixo de nosso uniforme. O motivo porque sou pior do que ela no futebol é que não tive a chance de jogar antes da universidade, o que é uma realidade bastante frustrante quando você tem vinte e poucos anos. Apesar do abismo entre nossas habilidades técnicas, Rachel enfrentou as mesmas ideias pré-concebidas sobre as mulheres – de que não somos capazes de jogar. Ela também foi desmerecida pelo adversário e julgada como "a garota" em vez do número escrito nas costas da camiseta. A única diferença é que a Rachel consegue, assim como um time de bobslead jamaicano, destruir esses preconceitos. Já eu acabo confirmando os julgamentos e me pergunto se deveria deixar o campo para mulheres como ela em vez de perpetuar os estereótipos que nos diminuem. E isso é o mais frustrante. Aprender a jogar futebol quando você é mulher em seus vinte e poucos anos significa que você está sendo julgada de forma patética e desesperada pelas mesmas atitudes patriarcais que proibiram você de aprender a jogar mais cedo. É vicioso e irritante de uma forma que ferra com as mulheres – primeiro, ao desencorajá-las a jogar um esporte "masculino" na infância e, em seguida, acusando-as de estar fora do padrão por causa de seu gênero quando elas tentam se envolver com o esporte.

Foto: Acervo Pessoal

Tenho a impressão de que os times adversários presumem que serei uma bosta como jogadora, então é bastante doloroso mostrar continuamente que eles estão certos. É como perder uma oportunidade de desfazer preconceitos sobre as mulheres no esporte. Não há dúvidas de que eu me sobressaio como a pior jogadora do time e a pior entre duas mulheres. Mas existe uma falta de reconhecimento de que minha incapacidade se origina porque fui desencorajada a escolher atividades e esportes "masculinos", e não por uma merda de condição dada por Deus por causa de meu útero. Devo enfatizar que não existe nenhuma qualidade inata ou essencial que deixa as mulheres piores do que os homens no futebol. Isso não existe. O código engendrado de certas atividades, porém, serve para prevenir que um grupo marginalizado se sobressaia, forçando-o a incorporar os estereótipos investidos sobre ele por meio da negação da oportunidade. É praticamente impossível apresentar uma destreza instantânea em um campo do qual você foi historicamente afastada, a menos que você seja Rosie, a Rebitadeira. Embora minhas experiências possam ter sido diferentes da norma, elas ecoam o problema maior da percepção das mulheres nos esportes tradicionalmente masculinos. As inadequações das mulheres no gramado são com frequência atribuídas a algum tipo de fraqueza causada pela feminilidade. Ignora-se o contexto histórico e social e os espaços dos quais elas têm sido fortemente desencorajadas ou banidas de participarem.

Ao esperar que um grupo marginalizado entre em uma instituição na qual foi sistematicamente desencorajado e então apontá-lo como menos capazes de praticar o esporte em questão sob a premissa do gênero é muito inadequado. É como querer sustentar o argumento de que os afro-americanos não conseguem nadar por causa de alguma diferença racial inerente, em vez de perceber o fato de que as comunidades foram historicamente barradas de atividades e espaços de lazer públicos. Ainda que seja pior do que eles porque estou começando do zero, vou continuar dando mais duro que os caras do meu time. O mesmo se aplica, creio eu, às mulheres do futebol profissional feminino que precisam tentar duas vezes mais arduamente se quiserem ser tratadas com a metade da seriedade do que um bando de caras que herdou um sistema de privilégios na forma de uma liga de futebol bem estabelecida, sem falar na aceitação total de sua presença em determinado espaço. As mulheres estão começando a romper com esses espaços e, independentemente do lugar, uma verdade universal permanece: não é possível manter um time no banco pelos primeiros 45 minutos, deixá-lo entrar no segundo tempo e querer chamar isso de jogo justo. Tradução: Amanda Guizzo Zampieri