Uma Meia Maratona Todo Dia

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Uma Meia Maratona Todo Dia

Fernando Bezerra da Silva e Zelito Tavares Barbosa usam o serviço como coletores de lixo para melhorar o desempenho nas corridas profissionais.

Fernando (à esq.) e Zelito, os coletores-maratonistas. Foto: Guilherme Santana/VICE

A rotina começa cedo. Às seis da manhã, Fernando Bezerra da Silva acerta os últimos detalhes do equipamento. No vestiário, coloca o uniforme laranja com detalhes verde fluorescente, amarra o calçado emborrachado e se prepara para percorrer os habituais 25 quilômetros diários de pesos e obstáculos. Sobre um armário de escritório, na salinha de entrada, repousam quinze troféus, menos de um terço de suas conquistas como atleta.

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Aos 33 anos, Fernando corre para viver. Ele é um dos 3.000 coletores de lixo da cidade de São Paulo e, também, um corredor profissional. Parecem carreiras opostas, impossíveis de conciliar, mas são, na verdade, complementares. Durante o expediente de oito horas, o paulistano se exercita para melhorar o desempenho nas provas que gosta de realizar. É, ao mesmo tempo, seu ganha-pão e o seu treino.

Com 28 maratonas e 60 provas curtas na bagagem, o coletor no momento se prepara para os 18 quilômetros da Pampulha, em Minas Gerais, e para a tradicional Corrida de São Silvestre, na capital paulista. Sua estreia foi em 2006, na Santos Dumont, na Praça Campos de Bagatelle, uma prova de 10 quilômetros. Ele se inscreveu por curiosidade e notou que se dava bem ao percorrer longas distâncias. Fez o trajeto em menos de 40 minutos.

Fernando Bezerra da Silva antes do expediente. Foto: Guilherme Santana/VICE

Nos dois anos seguintes, Fernando correu aqui e ali por diversão. Já em 2008, quando sentiu segurança nas corridas como coletor de lixo, decidiu se dedicar fora do expediente. "Percebi que tinha talento no meu dia-a-dia de trabalho. Eu corria esporadicamente algumas provinhas, mas foi aqui na empresa que comecei a correr e participar de muitas provas", afirma. "Achei um pouco difícil, mas fui me adaptando e peguei gosto."

Enquanto corre pelas ruas de Guaianases, no extremo leste de São Paulo, ou na cidade vizinha Ferraz de Vasconcelos, Fernando curte reparar nas áreas urbanas, nas pessoas que caminham e nos seus pares que correm. "O prazer que me dá é o de saber que ainda me sobra energia pra poder fazer o que eu gosto", diz. "Fico muito feliz por ter essa energia sobrando."

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Seus tempos vêm melhorando. Hoje ele faz provas de 10 quilômetros em 31 minutos e as maratonas, de 42 quilômetros, completa em em 2 horas e 34 minutos. "Meu melhor tempo foi em 2013 na Maratona de São Paulo, eu fiquei em 13º na classificação geral", conta.

A dupla antes de subir a bordo do caminhão do lixo. Foto: Guilherme Santana/VICE

Fernando não está só na carreira de coletor-velocista. Ao seu lado está Zelito Tavares Barbosa, de 40 anos, também funcionário da Loga, uma das empresas que fazem a remoção de detritos na cidade de São Paulo.

Os dois saem juntos a bordo do caminhão ao lado do coletor José Cícero de Lima Silva, de 40 anos. Pelas ruas residenciais da Penha, Fernando, Zelito e José serpenteiam à caça de sacos de lixo. As vias estreitas armazenam lixos leves, mas com grande risco de cortes e perfurações devido aos vidros e objetos cortantes. Os acidentes acontecem, dizem. Muitos moradores ainda não se conscientizaram da importância de embalar seu lixo.

Fernando e Zelito usam o serviço da coleta não só para o preparo físico, mas também para beneficiar a saúde. "Costumo tirar proveito do meu trabalho. Ele me ajuda a ter resistência, é como se fosse uma academia", diz Fernando. "Temos em torno de oito horas executando vários movimentos. Você se agacha com uma média de peso de dois quilos, por exemplo. Esses movimentos ajudam e fazem com que você ganhe, querendo ou não, uma resistência."

Os coletores e o treino atrás do caminhão. Foto: Guilherme Santana/VICE

Zelito, mais velho que o colega, sabe bem das vantagens de ser um corredor em tempo integral. "Pra você correr nesse nível com 40 anos e ter esse tempo que eu tenho é preciso treinar dois períodos", diz. "A coleta me ajuda porque esse trabalho, para nós que somos atletas, é um treinamento."

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Baiano de Barreiras, cidade no extremo oeste do estado, Zelito veio para São Paulo aos 17 anos. Anos atrás o único esporte que praticava era o futebol – chegou até a ser federado no Corinthians. Ele costuma dizer que o sonho de corredor estava adormecido nele. Atleta há cinco anos, ele começou a praticar o esporte com a idade que muitos pensam em aposentadoria. Seus números impressionam. Os 10 quilômetros são percorridos em uma média de 33 minutos e as maratonas são completadas em duas horas e 35 minutos. Sua melhor colocação foi um terceiro lugar em Goiás e sétimo geral em Assunción, no Paraguai. "Só queniano tinham 15. Fui o segundo melhor brasileiro. Só perdi pro Marcos Elias, que é da seleção brasileira. Ele vive só pra correr e eu trabalhando na coleta."

Zelito também é um estudioso do esporte. Aluno do segundo semestre da faculdade de Educação Física, ele sabe muito bem onde pretende chegar com tudo isso. "Eu pretendo, cada vez mais, melhorar como atleta. Quero ajudar na empresa que eu trabalho."

Extremamente organizado, ele exibia suas planilhas de treinos para as semanas que antecedem a prova da Pampulha. Enquanto mostrava os números, relembrou nomes importantes do esporte como Solonei Silva, ouro nos jogos Pan-Americanos de 2011, e João Marcos Fonseca, o João Gari, recordista da Maratona de Foz do Iguaçu, em 2013, com a marca de duas horas, 18 minutos e 57 segundos. "Eles são grandes exemplos para nós", afirma.

Zelito dando aquele trote. Foto: Guilherme Santana/VICE

Com sua equipe particular formada pela esposa e pelo casal de filhos, mantém uma rotina disciplinada de treinos, estudos e trabalho. "A minha filha lembra o meu treino, lembra o que eu tenho que comer. A minha esposa já faz a comida certa. O meu filho, quando eu chego em casa, já aparece com o banquinho pra me ajudar a tirar o tênis, que é puxado. Todo mundo me organiza. Quando eu vou trabalhar minha mochila já tá arrumada,"conta. Seu objetivo é um só: ganhar uma maratona, "a prova mais difícil que tem".

Ele sabe muito bem das dificuldades que os 40 anos trazem. A principal, diz, é a descrença de quem o vê correr. "Quando falo que vou ganhar uma maratona, as pessoas acham que é impossível, mas sei que não é. Desde pequeno fui adaptado para superar meus limites. Tenho 40 anos e nenhuma lesão. Tanto que recebi um convite da USP pra fazer uns exames, mas não deu pra ir", afirma. Mas, segundo Zelito, mais importante do que as medalhas é o prazer que tem ao correr pelas ruas do Jardim Santa Emília, em Guarulhos. "Correr pra mim é liberdade", diz, com sorriso aberto no rosto.

Rolê pela Penha. Foto: Guilherme Santana/VICE