No Brasil, o Futuro da Repressão Já Chegou

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No Brasil, o Futuro da Repressão Já Chegou

Segundo relatório da ONG Artigo 19, o Estado redesenhou sua estratégia de repressão aos protestos no sentido não mais atuar de uma forma violenta generalizada, mas de forma mais planejada e estratégica.

Tomando como base 740 protestos ocorridos em São Paulo e Rio de Janeiro entre janeiro de 2014 e junho de 2015, a organização internacional de direitos humanos Artigo 19 lança hoje o relatório "As ruas sob ataque: protestos 2014 e 2015". A organização, fundada em 1987 na Inglaterra, atua no Brasil desde 2005: assim, alguns casos pontuais de violações em protestos já haviam sido acompanhados, mas a partir das Jornadas de Junho, a entidade passou a atuar de uma forma mais focada e profunda no tema protestos e manifestações sociais.

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A dimensão das manifestações de 2013 e a truculenta e violenta reação do Estado surpreenderam a população geral, embora em 2014 os protestos já fizessem parte do cotidiano de capitais brasileiras. O que a ONG viu é que não só as violações vistas em 2013 se repetiram como se aprimoraram. A falta de investigações e responsabilização de agentes envolvidos em abusos durante aquele ano gera um sentimento de impunidade que só reforça a continuidade dessas violações.

O estudo será lançado hoje no evento "Da Copa às Olimpíadas: a criminalização dos protestos no Rio de Janeiro"", no Instituto dos Arquitetos do Brasil, no Rio de Janeiro. Além de debates, o encontro conta com uma exposição coletiva reunindo fotos de protestos na qual tenho a honra de participar com alguns dos cliques que ilustram esta matéria. O relatório está disponível no site 2015brasil.protestos.org, que contém entrevistas em vídeo com especialistas e ativistas como Pablo Ortellado, Rafael Lessa, João Damasceno e Igor Mendes.

O que a Artigo 19 teve como suas principais conclusões ao comparar o relatório de 2013 com o atual foi que, na verdade, o Estado não mudou sua prática no sentido de proteger e garantir o direito à liberdade de expressão, e sim redesenhou sua estratégia de repressão aos protestos num sentido de não mais atuar de uma forma violenta generalizada – mas de maneira mais planejada e estratégica. Conversei com a advogada Camila Marques, coordenadora do centro de referência legal da ONG, que me apontou os três principais eixos que nortearam o relatório "As ruas sob ataque: protestos 2014 e 2015".

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O primeiro é que muitas das violações se mantêm, como falta de identificação dos policiais, detenções arbitrárias, proibições prévias de participação por decisão judicial, uso desproporcional de armas menos letais, uso irresponsável de armamento letal, desproporcionalidade de ações e efetivos policiais. Também houve aprimoramento e implementação de novas táticas e técnicas. O vigilantismo, antes mais limitado à intimidadora e inibidora filmagem dos manifestantes, passa a acontecer também na internet, com o monitoramento de páginas e indivíduos nas redes sociais. Em alguns casos, pessoas que simplesmente comentavam em páginas consideradas apologéticas à violência em redes sociais passaram a ser monitoradas e viraram imediatamente suspeitos em potencial. O Estado de São Paulo adotou a técnica do Caldeirão de Hamburgo ou Kettling, criando a tropa de braço e adquirindo equipamentos como o traje "Robocop" e os veículos blindados (dois clássicos cariocas agora também na terra da garoa). É importante dizer que os investimentos nesse aparelho repressor foram muito contundentes: expressivos montantes de recursos públicos foram gastos em uma infinidade de aparelhos e instrumentos de repressão.

Tropa de Choque "envelopa" manifestação contra o aumento da tarifa no RJ. Foto por Matias Maxx.

Um segundo ponto levantado pelo relatório é a questão da criminalização dos manifestantes. Em 2013, já havia decisões judiciais os criminalizando; no entanto, em 2014, isso foi feito de forma muito mais massiva, sobretudo no Rio de Janeiro. Segundo o relatório, o sistema de justiça como um todo estava envolvido nessa criminalização, desde o Ministério Público, atuando em inquéritos irregulares que não tinham objetivos claros, até as decisões judiciais que partiam de um víeis e um conceito ideológico, em vez de uma perspectiva que garantisse os direitos e entendesse a realidade social que o Brasil estava passando.

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O terceiro ponto relevante a partir de 2013 foi essa carta branca que o cenário de impunidade promove e propicia para as autoridades. De 2013 para cá, houve no país raríssimos casos de responsabilização administrativa e somente um caso de responsabilização criminal, que foi o do major Pinto e do tenente Bruno (pegos pelacâmera plantando um rojão num manifestante num protesto no Rio de Janeiro). Além disso, há também uma chancela dos agentes do Estado, seja a nível estadual, municipal ou federal, seja pelas pessoas do governo envolvidas nessas ações e políticas publicas que deviam incentivar a apuração e investigação dessas violações; mesmo assim, em pronunciamentos oficiais, defenderam-se esses abusos e ilegalidades perpetradas pelos agentes policiais.

O estudo também analisa um punhadinho de cases de avanços legais, decisões jurídicas favoráveis e um par de boas práticas policiais. Também são relatadas as sete mortes em contextos de protestos no ano de 2014, sendo as mais notórias as do cinegrafista Santiago Andrade e do ambulante Tasnan Accioly, mortos no mesmo dia num protesto contra o aumento das tarifas, e a do deficiente Edilson da Silva, que faleceu num protesto contra o assassinato do dançarino DG.

Outro assunto relatado é a violência policial contra comunicadores, muito comum e constante quando o foco é a cobertura da própria atuação policial, especialmente no contexto de protestos. Alguns dos casos citados são o envelopamento e a agressão a jornalistas na final da Copa do Mundo, além da controversa decisão judicial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que suspendeu o pagamento que havia sido designado para fins de reparação de danos morais e materiais a Alex Silveira, fotógrafo que perdeu a visão ao ser atingido por uma bala de borracha na cobertura de uma manifestação dos professores em 2001. A decisão afirma que Alex optou por permanecer em um contexto de conflito entre policiais e manifestantes, assumindo, por isso, a responsabilidade por conscientemente correr o risco de ser atingido. Essa decisão é especialmente preocupante porque, além do mérito do caso em si, abre um precedente para que outras decisões sigam o mesmo raciocínio e o Estado seja isentado das violações que cometeu ao longo dos últimos três anos, quando os protestos se intensificaram no país.

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Manifestante é conduzido a delegacia após levar cinco pontos na cabeça. Ele foi espancado pela PM por se recusar a soltar uma faixa num protesto contra o aumento da tarifa no RJ. Foto por Matias Maxx.

Preocupado com o futuro, fiz um par de perguntinhas para a coordenadora do centro de referência legal da Artigo 19, Camila Marques:

VICE: No ano que vem, o Rio de Janeiro recebe as Olimpíadas. Remoções e especulação imobiliária são alguns dos assuntos que devem pautar protestos até lá. Como vocês analisam esse cenário?
Camila Marques: Nós entendemos que muitas violações de direitos humanos acontecem na justificativa de empreendimentos esportivos, como aconteceu na Copa e vem acontecendo nas Olimpíadas. Estamos vendo uma série de remoções sendo feitas de maneira ilegal. Remoções abusivas, sem que as pessoas tenham ao menos a informação sobre o que vai acontecer com aquela comunidade, qual vai ser a contrapartida que ela vai ganhar ou quais os seus direitos que vão ser respeitados. O que a gente vê na contramão disso é o Estado se preparando cada vez mais para ter um controle desse tipo de reivindicação, para não deixar [que reivindicações] se espalhem e ganhem algum tipo de reverberação na mídia. Vemos muitas vezes que o Estado não respeita o direito de manifestação das comunidades que estão sendo afetadas pelas obras que tem como justificativa o evento esportivo Olimpíadas.

Então, um ponto importante é que o Estado, desde a Copa, poderia ter se preparado melhor para lidar com as manifestações, absorvido isso como um direito humano, [já] que o Estado tem o dever constitucional, e também através de compromissos internacionais, de garantir o direito à manifestação e à liberdade de expressão. Passados já um ano e meio dos protestos pré-Copa, o que a gente vê é que o Estado ainda responde de maneira muito negativa e muito abusiva a manifestações que são extremamente legítimas, manifestações de comunidades e de grupos que entendem que essas obras, que têm como justificativa as Olimpíadas, estão causando transtornos sociais a elas.

Como vocês analisam o projeto de lei antiterrorismo?
Desde 2013, há um fenômeno que é as autoridades legislativas editarem leis como se fossem uma medida muito urgente para resolver os problemas e ausências de políticas publicas históricas. O resultado disso são leis criminalizadoras, que pretendem restringir o direito à liberdade de expressão. Têm pouquíssima aplicabilidade por conta de serem feitas a toque de caixa, muitas vezes são embutidas de diversas inconstitucionalidades. Vimos, de fato, uma série de iniciativas legislativas com esse intuito de restringir o direito à manifestação. A última delas e a mais falada foi o PL 2016/2015, que é um projeto de lei que pretende criar a tipificação de terrorismo no Brasil. Na verdade, [essa lei] é extremamente genérica, ampla, que não trata de trazer exatamente quais são os elementos e os critérios objetivos para designar a entender que alguém de fato cometeu um ato terrorista. A primeira versão desse texto abria espaço para que manifestantes e movimentos sociais fossem entendidos como terroristas; então, era uma lei extremamente problemática que foi aprovada na Câmara dos Deputados, sofreu algumas modificações depois de algumas emendas aglutinativas e agora segue para apreciação no Senado.

As poucas iniciativas legislativas que existiram para preservar e garantir a liberdade de expressão e o direito à manifestação não prosperaram. Por exemplo, a Assembleia Legislativa votou e aprovou um projeto de lei que visava a proibir balas de borracha em manifestações em SP. O projeto mais tarde foi vetado pelo executivo estadual na pessoa do governador Geraldo Alckmin. Tem outras iniciativas positivas, como, por exemplo, um projeto do Chico Alencar e do senador Lindenbergh, que visa a trazer alguns parâmetros para o uso da força. Essas iniciativas não tiveram um encaminhamento rápido e encontram-se paradas.

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