A visita do ditador norte-coreano Kim Jong-un ao Museu Sinchon das Atrocidades de Guerra dos EUA, na terça-feira passada, forneceu um vislumbre raro de como o Reino Ermitão transforma grãos de verdade em propaganda e paranoia.Como reportado pela Agência Central de Notícias da Coreia (ACNC), a visita parece ter sido a primeira de Kim ao museu desde que assumiu o poder depois da morte de Ki Jong-il, seu pai e ex-ditador do país, três anos atrás.O evento pode ter sido uma tentativa de combater a má publicidade que Kim recebeu semana passada, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas pediu ao Conselho de Segurança para denunciar o ditador e sua corte ao Tribunal Internacional por crimes contra a humanidade. Essa decisão veio depois de a ONU apontar que a Coreia do Norte mantém 120 mil pessoas em campos de concentração, onde trabalho forçado, estupro, infanticídio e tortura são rotina."O massacre cometido pelos agressores imperialistas norte-americanos em Sinchon mostrou que eles são canibais e homicidas, que buscam prazer na matança", afirma o líder supremo, segundo a ACNC.Esses comentários ilustram bem o estilo de propaganda norte-coreana, disse Blaine Harden, jornalista americano que tem escrito extensivamente sobre a Coreia do Norte."A Guerra da Coreia ainda faz parte da vida dos norte-coreanos", Harden contou à VICE. "Eles aprendem que Kim Il-sung e sua genialidade como líder permitiram que os norte-coreanos vencessem a guerra. Mas que eles sofreram muitas atrocidades no processo."Num período de três anos, os EUA bombardearam quase toda cidade, vilarejo e aldeia da Coreia do Norte, destacou Harden. Estima-se que as bombas mataram um quinto da população do país – aproximadamente 2 milhões de pessoas.Harden aponta que essa contabilização de atrocidades é exagerada, mas que a mania de perseguição vinda da Coreia do Norte em relação ao estrangeiro – como muitas teorias da conspiração – se baseia, mesmo que de forma distorcida, num grão de realidade."Isso deu ao regime Kim – avô, pai e neto – uma narrativa baseada em fatos para dizer: 'Os norte-americanos são bastardos. Eles mataram sua avó'", atestou Harden. "Em muitos casos, isso é verdade."Kim parece estar apostando em manter essas memórias vivas. Ele acredita que o museu é um modelo de ensino de História."Intensificar a educação é ainda mais urgente hoje, quando a nova geração, que não experimentou a exploração, a opressão nem os julgamentos severos da guerra, emerge como a força motora da revolução", informou a ACNC."É muito importante para um regime totalitário ter um arqui-inimigo", teorizou Harden. "Mantendo vivas algumas coisas que aconteceram na Guerra da Coreia, o regime consegue alimentar sua legitimidade e dizer: 'Claro, aqui é escuro e frio. Não há muita comida. Mas estamos te protegendo dos norte-americanos – e você lembra as coisas terríveis que eles fizeram na guerra, não?'."Siga o John Dyer no Twitter: @johnjdyerjrFoto via Flickr.Tradução: Marina Schnoor
Publicidade
O museu relembra o massacre de Sinchon, em que soldados norte-americanos teriam matado 35 mil civis e começado a Guerra da Coreia, em 1950, além de documentar outros exemplos de imperialismo norte-americano, como a campanha para acabar com o isolacionismo coreano no século 19, visando a impulsionar o comércio dos EUA com a Ásia, e o esforço de missionários norte-americanos para converter coreanos ao Cristianismo.Não está claro se 35 mil pessoas foram realmente mortas em Sinchon em 1950. Mas não há dúvida de que os coreanos sofreram terrivelmente durante a guerra e que a política externa dos EUA na Ásia no século 19 foi, muitas vezes, exploradora e desrespeitosa. Mas Kim tira lições estranhas das exposições do museu, que apresenta um cemitério onde, segundo a ACNC, "400 mães e 102 crianças" estão enterradas.A invasão da Coreia do Sul pelo avô de Kim, Kim Il-sug, foi o que desencadeou a guerra que deixou a Coreia do Norte empobrecida e isolada. Mas seus herdeiros omitem esse pedacinho da história, preferindo focar no sofrimento e na violência causados pelos EUA durante o combate."Eles são canibais e homicidas, que buscam prazer na matança."
Publicidade
Publicidade