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O amor e outras drogas

Não é preciso ir muito longe para encontrar semelhanças entre os efeitos produzidos pela paixão e pelas substâncias psicotrópicas.
cartaz com as palavras love e and

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Não é preciso ir muito longe para encontrar pontos de encontro entre os efeitos produzidos pelo cérebro quando nos apaixonarmos, ou quando nos drogamos. Desde a década de 60, tanto o amor como as drogas têm sido "ferramentas" utilizadas para provocar revoluções sociais e transformar identidades. Mas o que é que a forma como escolhemos as nossas drogas diz sobre nós?

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Quando Lou Reed cantava sobre o amor químico, em 1985, não estava a falar dos benefícios da oxcitocina. Nas suas canções dizia que "a guerra com armas químicas" tinha uma vantagem injusta sobre o amor "físico". Trinta anos e vários estudos depois, Lou Reed encontrou quem o apoiasse nesta ideia.

Infelizmente, para os românticos desiludidos de todo o Mundo, parece que, afinal, o amor é mesmo uma droga. Em 2009, um neurocientista chamado Larry Young publicou Being Human: Love: Neuroscience reveals all, na Nature, declarando que tinha descoberto o segredo do Cupido. Para Young, o veículo intangível e imperceptível do amor poderia entender-se como uma série de eventos neuroquímicos. Na verdade, através da investigação de moléculas de sensação e interacção química (que romântico!), parece ter demonstrado que as emoções complexas poderiam explicar-se em termos racionais e científicos.


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De repente, o Mundo debatia-se com a ideia de que os sentimentos humanos não são mais que um aglomerado de químicos que causam confusão nas nossas vidas sociais. Como se isto não fosse suficientemente estranho, mais ou menos pela mesma altura, foi publicada uma história que assegurava que a infidelidade podia explicar-se como uma inevitabilidade científica e na wikiHow apareceu um guia de sete passos que prometia ajudar-nos a identificar o amor "como um processo químico".

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Embora as complexidades do amor possam ter inspirado grande parte da melhor arte do século XXI, graças à dopamina, à oxitocina e ao cortisol, a ciência do século XXI parecia bastante satisfeita em argumentar que a complexidade do espírito humano não era mais que um simples cocktail de reacções químicas. É hora de substituir os velhos clássicos, não acham? "Lágrimas sobre a minha almofada, serotonina no meu tracto gastrointestinal".

Mas este diagnóstico bastante triste não é da total responsabilidade de um par de estudantes de química sem nada que fazer. A ideia de que as drogas podem recrear, ou intensificar, sentimentos de amor não é nova. Como teria sido o "Verão de amor" sem o LSD?

O ano de 1967 viu nascer uma São Francisco ávida de activismo social, sexual e político, que criticava o consumismo, opinava sobre a Guerra do Vietname e, de forma geral, oferecia amor livre a quem o procurasse. Com a memória do fascismo ainda fresca nas suas mentes, a geração do pós-guerra rejeitou redondamente as ideias prévias progressistas, que Paul Verhaeghe descreve como "uma sociedade industrializada". Por outro lado, tal como Adam Curtis explora de forma brilhante na sua série documental "O século do individualismo", a psicoterapia e a intensa exploração da identidade convertem-se na marca do progresso.

O que é que aconteceu com o amor? Bem, estava por todas as partes e era livre. O amor foi escolhido como arma de luta contra a homogeneidade, o capitalismo consumista, a avareza e, claro, as pessoas queriam praticá-lo tanto quanto fosse possível. Com todo este amor livre chegaram outras drogas, como o ácido. Não foi à toa que os hippies (e os cientistas) decidiram experimentar o LSD.

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O ácido, com as suas capacidade de provocar alucinações e visões, representava perfeitamente a obsessão dos anos 60 pelo descobrimento pessoal e pela consciência de nós próprios. Verhaeghe escreve sobre como o interesse na identidade pessoal, em detrimento da colectiva, no último quarto do século XXI, levou à explosão da experimentação de drogas "visionárias".


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Num Mundo repleto de publicidade, metralhadoras, televisões e enxames de pessoas sobre enxames de pessoas, a procura do eu transformou-se em algo insignificante, em comparação a qualquer outra coisa. E que outra forma é melhor, para te entenderes a ti mesmo, que observar atentamente os túneis inexplorados da mente? O amor e as drogas encontram-se com a música, a arte e a política, numa cacofonia de auto-descobrimento, cada um deles complementando-se entre si, unidos na esperança de eliminar o conservadorismo sexual e social da década anterior.

Mas o amor livre dos anos 60 perdeu-se nos sonhos dos estampados de caxemira e pacholi, à medida que os sensatos 70 acabavam com os caprichos da revolução. Com a chegada dos anos 80, as criaturas fruto do baby boomestavam já suficientemente desencorajadas. Quando se chegou ao segundo Verão do amor, a cultura jovem no Reino Unido já era apolítica. Desiludidos pela violência nas greves dos mineiros, pelo desemprego do pós-guerra e por um alto índice de divórcios, os jovens chegaram à pior parte de uma divisão cada vez maior entre ricos e pobres. Enquanto o Partido Conservador predicava os benefícios da avareza e da ganância, aqueles que ficavam para trás eram cada vez mais marginalizados.

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No entanto, noutras partes do Mundo a história era outra. Nos finais dos 80, a Alemanha viveu uma agitação social massiva, quando grupos de manifestantes derrubaram o Muro de Berlim, enquanto que na China os estudantes se reuniam de forma pacífica na Praça de Tiananmén e eram alvo de uma resposta violenta. No Reino Unido viam-se imagens de jovens que lutavam contra regimes totalitários. Um sentimento de descontentamento crescente, impulsionado por notícias de revolução em todo o Mundo, chegou ao seu clímax em 1989 e, no Reino Unido, viveu-se um clima sufocante: o mês de Maio mais quente dos últimos 300 anos.

Finalmente, 22 anos mais tarde, os miúdos de Thatcher tiveram o seu próprio Verão do amor. E qual foi o catalisador? O ecstasy, claro. E a recém construída M25. As pessoas reuniram-se para defender o amor e a empatia pelo individualismo e o ecstasy intensificou este vínculo. Num momento de hooliganismo intenso e quando os homens da classe trabalhadora se encontraram lado a lado com a arrogância da polícia e do governo, a música house e o MDMA uniram a população. Foi um Verão caótico, com raves improvisadas e emissoras de rádios pirata alheias à classe, cor, ou partido político.

Infelizmente, quando o sol nasceu, os dealers começaram a vender pastilhas chungas e não se via amor livre em nenhuma parte. Exactamente 22 anos depois, temos os distúrbios de 2011, com um Verão sobrecarregado de ódio. Algo contraproducente aconteceu com o amor e talvez esteja bastante relacionado com o nosso consumo de drogas. Se a droga mais relevante para os hippies do amor e o auto-descobrimento dos anos 60 era o ácido, temo que a da nossa geração seja a ketamina. E o que é que isso diz sobre nós? Bem, para começar, é um anti-depressivo.

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Segundo Verhaeghe, a identidade individual é "preferível" no Ocidente. Ou seja, como cultura preocupa-nos o auto-melhoramento, em detrimento do auto-descobrimento. Há amor, claro, e também há drogas, muitas drogas, mas não há um sentimento que nos una. Enquanto que a banda sonora do segundo Verão do amor foi uma reacção underground do rock de Pete Waterman, para a geração do VEVO o mainstream converteu-se em algo omnipresente e, de certa forma, numa coisa cool. Por falta de uma contracultura ficámos submissos.


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É pouco surpreendente que esta geração tenha dificuldade em identificar-se com os seus companheiros: o nosso contacto com os outros mudou, de físico para psíquico. Onde outrora houve tensão, agora há uma gratificação imediata, onde houve um descobrimento sexual e experimentação, agora está a insipidez da pornografia online. O amor ainda se encontra por todo o lado, mas não é algo físico, nem sequer químico, é digital.

A profecia dos Joy Division sobre a solidão é bastante precisa. Somos constantemente assediados pela natureza hiper-social da Onternet. Estar em contacto constante com pessoas é extenuante, como também o é esperar que absorvas informação nova enquanto manténs uma identidade completamente única. Os nossos corpos são menos perfeitos, as nossas amizades estão cheias de aditivos e momentos de bajulação e o poder social e político do amor parece uma piada, que evoca o passado.

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Não é de estranhar que, todo esse ruído, todos esse bips e vibrações e e-mails e toda essa publicidade subliminar, derive numa espécie de solidão contagiosa, que te faz querer estar mais sozinho. Suponho que a ketamina proporciona esse isolamento. Não se trata de uma droga intelectual, nem de uma droga social, pois gera uma espécie de paralisia. Não faz com que as pessoas se sintam agressivas, ou carinhosas ou criativas, faz com que se sintam vazias.

Ok, não vou preocupar-me muito com o uso da ketamina, essa coisa que tomas à quinta-feira à noite e é barata. Não é propriamente um aditivo, nem é uma incumbência, mas é altamente pouco estimulante. Se o amor do século XXI é simplesmente uma reacção química, a vida é uma rotina diária e o consumismo formou a nossa própria definição de identidade. Então, não deveríamos perguntar-nos porque é que a relação que temos com as drogas, hoje em dia, é uma relação que nos proporciona uma total indiferença?

Talvez ainda não estejamos suficientemente preparados, mas se vamos liderar o terceiro Verão do Amor, acho que deveríamos deixar de confundir a nossa própria desilusão com complacência e começar a acreditar no activismo outra vez. Devemos criticar a ideia de que a nossa vida está definida pela nossa carreira e que o mérito está definido pelo êxito comercial. E entender que, só porque não há um inimigo fácil de combater, não significa que não hajam batalhas para lutar.

Em 1967, o ácido ajudou a redefinir a forma como as pessoas se entendiam a si mesmas, na sua relação com a sociedade e em 1989 o ecstasy facilitou a crítica aos estereótipos de raças e classes. Em 2014 o neo-liberalismo deitou por terra a nossa fé na importância da comunidade e na experiência compartilhada. Estamos demasiado involucrados no culto da personalidade, para que possamos entender bem o que estamos a perder. Se queremos voltar a sentir os raios de sol nos próximos tempos, temos que voltar a descobrir o amor. E com um pouco de sorte, as drogas continuarão também próximas de nós.


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