FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Co-adopção por homossexuais: um passo em frente, mas ainda atrás

Para o Telmo, da ILGA, esta é só mais uma etapa.

Para espanto de muitos, no dia 17 de Maio, foi aprovada no parlamento o projecto de lei do PS que prevê a co-adopção de crianças por casais do mesmo sexo. Um avanço social significativo que vai facilitar a vida de muitas famílias portuguesas. É um passo em frente, sim, mas poderia ser ainda mais considerável se a adopção plena por casais homossexuais fosse aprovada. Quando soube da novidade, fui à sede do Porto da

Publicidade

ILGA Portugal

e estive à conversa com o Telmo Fernandes — e, pelo que ele me contou, talvez a adopção plena esteja perto.

VICE: Olá, Telmo. Começo com o copo meio vazio: por que é que o projecto da adopção plena por casais homossexuais acabou por ser recusado?

Telmo:

Sim, essa é uma questão que muitas pessoas têm colocado. O porquê de só se ter aprovado a co-adopção, um documento que, na verdade, vai ao encontro da realidade de famílias já existentes. Esta lei estipula que os acompanhantes de um dos pais ou mães que já eram reconhecidos perante a lei pudessem agora assumir esse papel. Não é a consequência de um trabalho só de agora. É um resultado de anos, do esforço de visibilidade desenvolvido por estas famílias, nomeadamente através de grupos como a famílias arco-íris. Já foram apresentadas várias propostas dentro do parlamento para se alargar os direitos da parentalidade, não só à adopção, mas também à procriação medicamente assistida, por exemplo. Mas, neste momento, era o projecto-lei que tinha maior viabilidade de ser aprovado. Claro que, para nós, é uma conquista, porque vai ao encontro das necessidades concretas de famílias que precisam desta lei. Mas também a vemos como uma etapa para se alcançar a igualdade de direitos da homoparentalidade que, obviamente, prevê outras formas de afiliação e perfilhação.

Estou a ver. Achas que isto devia ir a referendo?

Discordo totalmente que estas questões sejam referendáveis. São questões que dizem respeito à intimidade familiar das pessoas. São direitos que estão, de resto, estipulados na lei fundamental da Constituição da República, que diz explicitamente que ninguém pode ser discriminado em função da sua orientação sexual. Isso é argumento suficiente. Aliás, alguns constitucionalistas já têm vindo a apoiar esta proposta porque entendem que vai ao encontro daquilo que a própria lei portuguesa já diz. Não o fazer seria contraditório. Seria absurdo do ponto de vista legal e uma aberração propor isto como uma matéria referendável. De qualquer das formas, no contacto que temos com as comunidades — por exemplo, com os jovens em contexto escolar — sentimos que as atitudes têm melhorado bastante. Isto resulta, em parte, do debate público que se tem promovido, mas a aquisição progressiva de alguns direitos que o estado português tem vindo a reconhecer também ajuda. Um direito marcante foi a igualdade do acesso ao casamento civil, em 2010, e nós temos a nítida percepção de que o barómetro de atitudes homofóbicas tem vindo a reduzir.

Publicidade

Vocês têm chegado à comunidade escolar?

Vamos a muitas escolas, sim. Trabalhamos não só com jovens, mas também agentes educativos.

Nós trabalhamos com a comunidade escolar num todo, com todas as pessoas que lá estão. Sabemos que dentro dessa comunidade existem pessoas LGBT e já aconteceu algumas dessas pessoas fazerem o seu

coming out

no momento em que vamos às escolas. Não quer dizer que não o tenham feito antes mas, como sabes, como vivemos numa cultura heterosexista, o sair do armário é um processo constante. Numa circunstância nova, uma pessoa LGBT, para ser identificada como tal, tem de se revelar, nomear-se dessa forma. O facto de o fazerem mostra que as escolas têm feito o seu caminho. É lento, mas leva em conta a inclusão destas pessoas.

E para se chegar à adopção plena, a envolvência e a consciencialização dos professores é fundamental.

Sem dúvida, claro. É um trabalho de sensibilização de todas as pessoas envolvidas, incluindo, por exemplo, os auxiliares que muitas vezes são as figuras que presenciam a violência e o bullying no recreio. Não podemos envolver só os professores se depois as coisas cá fora continuam a acontecer. Passa também por alterar, por exemplo, os formulários que prevejam a diversidade de famílias que existam, rever os procedimentos e os currículos das próprias escolas, pensar nas actividades desenvolvidas, no sentido de incluir a orientação sexual e a identidade do género como eixos fundamentais que devem ser trabalhados. Mas temos a nítida noção que nas escolas temos muitos apoiantes, pelo menos da parte dos jovens e agentes educativos. Os políticos revelam, no entanto, alguns preconceitos, o que justifica o facto de não terem em consideração as evidências da constituição, dos estudos científicos que têm sido feitos ao longo de décadas noutros países e do consenso que apoia a parentalidade de casais de pessoas do mesmo sexo. Só o preconceito, portanto, e alguma estratégia política é que podem justificar o facto deste tipo de leis não terem sido aprovadas há mais tempo.

Publicidade

Qual é o principal mito da adopção plena, q que se instalou na sociedade e que precisa de ser esbatido rapidamente?

Bom, um dos principais mitos tem a ver com a associação recorrente entre a afiliação e a biologia. Sabemos que é um absurdo, tendo em conta que existem muitas formas de afiliação, inclusive hétero-parentais, e todas elas têm validade a partir do momento em que vemos a família como um conjunto de laços afectivos. O que importa é o investimento afectivo e não a estrutura familiar que o suporta. Pensar dessa forma é deixar de lado uma série de modelos familiares que não são propriamente novos, mas que se tornaram mais visíveis. É considerá-los inferiores. O que no nosso entender é não ir ao encontro dos interesses das crianças. As que vivem com dois pais ou duas mães, neste momento, são discriminadas em relação às outras que têm direito a receber apoios sociais por parte dos dois progenitores. O próprio tribunal europeu dos direitos humanos tem condenado o estado português, e outros estados europeus, por não cumprirem e por discriminarem este tipo de famílias.

Mas não só…

Sim, existem outros mitos. Um deles já o identificaste há pouco. Não podemos deixar que estas famílias aconteçam (como se fosse algo que se possa controlar), porque as crianças vão ser discriminadas. Vamos também retirar as famílias dos miúdos obesos, que usam óculos ou que têm uma cor de pele diferente porque, se calhar, todos eles sofrem algum tipo de discriminação nas escolas.

Publicidade

Também há quem diga que é contra-natura.

Para já, não é contra-natura. A natureza está cheia de exemplos de diversidade de expressão sexual e de identidade afectiva e de género. Há imensos exemplos no mundo animal e vegetal do que o que reina é a diversidade. Só não tem vindo à luz mais cedo porque a biologia é feita por homens, sobretudo, com um olhar sexista e hétero-normativo. É preciso reconstruir a biologia com um olhar mais aberto, mas não só, também a história. Da história não rezam, por exemplo, as mulheres. É sempre feita por homens, aparentemente. Parece que as mulheres apareceram ali, de repente, no século XX. Não é contra-natura, logicamente, e aquilo que é considerado natural é uma construção social e cultural que tem vindo a mudar. Passa por um esforço de educação, reeducação e sensibilização dos agentes educativos de que estávamos a falar há pouco. Mas não só, passa também por todas as pessoas que trabalham em contacto com a comunidade, pelos centros de saúde, pelos agentes de segurança. As crianças e os jovens reproduzem as atitudes e os preconceitos que os adultos vinculam. É muito importante que nós próprios, enquanto adultos, sejamos vínculos positivos de diversidade e de uma maior abertura.

Achas mesmo que a criança pode pensar que a norma familiar são os casais do mesmo sexo?

É possível se não tiver contacto, o que é difícil, com outro tipo de famílias. O que a experiência nos tem dito, até pelo contacto que temos com as famílias e pelos estudos que têm sido feitos, é que não existem diferenças no desenvolvimento psicológico, cognitivo, social e sexual destas crianças em relação às outras. O que indica, de facto, que essa perspectiva não passa disso: de um mito. Quando as crianças contactam com a diversidade, o quadro de referência delas é esse mesmo, o da diversidade. Repara que os nossos modelos não vêm só da nossa família, não vivemos isolados. Mesmo aquilo que as pessoas entendem ser a ausência do modelo masculino e feminino é, no fundo, fechar os olhos à realidade de que o género também é um papel que pode ser desempenhado indiscriminadamente por homens e mulheres. Se assim fosse, continuávamos a acreditar que as mulheres deveriam estar em casa a limpar o chão, a cuidar das crianças e da cozinha, enquanto os homens deveriam estar cá fora cheios de poder.

Publicidade

As famílias homoparentais ainda têm muito receio em expor-se?

Claro, e é um receio legítimo. Passam ainda pelo foro da invisibilidade. É difícil de quantificar e de identificar porque, uma vez que nossa sociedade é ainda muito homofóbica, falta dar o salto até ao ponto em que estas famílias se sintam convidadas a mostrar-se ao resto do mundo. Claro que no seu contexto local, no quotidiano, o fazem. Quando dois pais ou duas mães levam uma criança a um infantário, nesse pequeno contexto, todas as outras pessoas passam a incluir essa família como fazendo parte dessa comunidade. Já é uma ajuda para que as coisas, naquela localidade, sejam diferentes. Pela experiência que temos tido, é um processo de aprendizagem para os educadores, educadoras e para as outras famílias que também são utentes daquele infantário. Pensa, por exemplo, no que se pode fazer no dia do pai. Estes momentos para crianças que não têm pais nem pais são de particular violência, se não forem tratados de forma inclusiva. Tal como o dia dos namorados e das namoradas, como nós dizemos. São contextos em que o modelo heterossexual continua a ser reproduzido e a ser imposto como único. Podem ser, contudo, boas datas que sirvam de pretexto para se pedir às crianças para fazerem desenhos sobre os vários tipos de família. A diversidade vem, assim, ao de cima.

Depois da co-adopção, achas que a adopção plena está aí ao virar da esquina?

Publicidade

Não tenho dúvidas. Existem mais países, pelo menos no contexto europeu, em que a adopção plena por casais do mesmo sexo está legislada, do que países em que a co-adopção foi aprovada. O que me leva a entender que, de facto, tem sido um paradoxo neste sentido, porque começou-se a legislar primeiro sobre a conjugalidade e deixou-se a parentalidade para um segundo momento. Noutros países tem acontecido o contrário. Começou-se a legislar primeiro para se proteger os direitos das crianças e depois, só mais tarde, é que foi alcançado a igualdade do acesso ao casamento civil.

Ouvi pessoas a defender que as leis da adopção deveriam ser discutidas aquando do casamento. Por que é que achas que isso não aconteceu?

Foi uma questão de estratégia política, por um lado, mas também são questões diferentes. Conjugalidade e a parentalidade não estão interdependentes. O que vai contra ao que tem acontecido noutros países, como em França, por exemplo. Não sei, é possível que se corresse o risco da lei não ser aprovada, mas aquela conquista foi muito essencial do ponto de vista do estabelecimento da igualdade. É lógico que foi uma lei importante para pessoas concretas, que casaram e que de facto pretendiam utilizar a lei. Mas também o foi do ponto de vista do debate público. Para o reconhecimento dos direitos das pessoas LGBT foi fundamental e já trouxe uma mudança de atitudes que abriu caminho para que a discussão que se está ter agora em relação às famílias possa ser mais construtiva. Isto apesar de ainda haver pessoas preconceituosas com mediatismo no espaço público, possivelmente com o apoio de grupos de interesses mais ocultos.

E as crianças que vivem com dois pais ou duas mães, estão a ser bem integradas na sociedade?

Se entrares em contacto com estas famílias verás que não revelam diferença em relação às outras. Para já, na sua dinâmica interna, são compostas pelo mesmo tipo de afecto e vivem os mesmos problemas de uma família hétero-parental. Passam pela dificuldade adicional de terem de escolher os locais onde os filhos vão estar, por exemplo, e perceber se esses espaços vão respeitar a criança e a família. Temos tido experiências positivas, pelo menos no grupo das famílias arco-íris que se concentram essencialmente na região de Lisboa, o que é significativo.

Achas que há uma diferença entre o Porto e Lisboa?

Sim, claro. O projecto Porto arco-íris resulta dessa necessidade de fazer uma intervenção especializada na região Norte, que apresenta muitas especificidades. Apesar de nós dizermos que vivemos numa cultura global no que diz respeito ao acesso à informação, essa informação não é recebida da mesma forma em Bragança e em Lisboa. Há o entrave dos valores locais e um homossexual que esteja em Trás-os-Montes, por exemplo, não terá tanta facilidade em encontrar pessoas LGBT como um homossexual que viva em Lisboa ou no Porto.

Fotografia por Eduardo Santos