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Como reconhecer um artista na Capital da Cultura

É só artistas em Guimarães.

No outro dia fui com um amigo a um café. Ele é giro e tem uma pinta do caraças. O senhor do café foi mega simpático e perguntou-lhe: “Pelo seu aspeto, deve ser artista. Está a expor onde?” O meu amigo sorriu e disse-lhe que era electricista. Daqueles que tratam de interruptores e tomadas e assim. À moda antiga. Não posso dizer que o empregado de mesa tenha sido antipático ao saber da verdadeira ocupação do meu amigo, mas o tratamento já não foi o mesmo daí em diante.

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Estamos em plena Capital da Cultura, a coisa já vai a meio, e o melhor que se pode ser neste momento, em Guimarães, é artista. Mas não te deixes enganar. Um verdadeiro artista reconhece-se por determinadas características. Ver mal é requisito para ser artista. A vestimenta é uma segunda pele
Longe vão os tempos em que um artista era aquele gajo com ar badalhoco, com rastas que não vêem água há anos. Hoje o artista é um gajo que se trata, usa cremes caros e escolhe meticulosamente o que veste. Ainda que tenha um ar desmazelado, cheira muito bem e tudo é escolhido até ao mais pequeno detalhe: da roupa interior aos acessórios que usa. Mesmo que tenha a visão de uma águia, usa óculos de massa (ainda que as lentes sejam de vidro). Quando a armação era do tio-avô, refere-o sempre que pode, em conversa. Isso demonstra que é um gajo criativo. Lembras-te daquelas pochetes que o teu pai usava debaixo do sovaco, nos anos 80, que lhe davam um ar muito amaricado? Uma mochila às costas é a pochete do século XXI. Serve para carregar um pouco de tudo (como tecnologia, garrafas de água e agendas), mas acima de tudo dão um look mais jovem a quem as usa, porque o artista cultiva a criança que tem dentro. Até pode usar roupas de lojas prêt-à-porter, como Zara, H&M, Primark, mas tem sempre algumas peças vintage – compradas numa capital europeia qualquer – e algumas peças de design muito caras, com a marca pouco evidente, mas que refere sempre que pode (não vás a correr buscar a tua t-shirt comprada na feira, com o estampado garrafal a dizer YSL, para conseguires um fino de borla num café da Oliveira). Um artista não come, alimenta-se
O artista já não é aquele borrachola, que bebe uma Macieira de manhã, ao pequeno-almoço. É um tipo com um grande autocontrolo. Bebe de forma moderada e droga-se com substâncias “limpas”. Coca, se for da boa, e erva vão sempre bem. Ou nada disso, porque é um gajo que vive em sintonia com a natureza e tem plantas aromáticas em casa e assim. É vegetariano, vegan, macrobiótico, come sol, é frugívoro ou é proteínico… Quanto mais estranho o nome melhor. Suscita mais interesse na sua pessoa. Feijoada, rojões à minhota ou bife ensanguentado só em casa da família, quando ninguém está a ver. Se não beber álcool, convém ser especialista em águas e pertencer à Confraria de Provadores de Águas. Ou beber muito chá: de rooibos ou marroquino. Ou outro nome estranho. Quanto menos conhecido melhor. Torna-o mais especial e criativo. Só são úteis nas descidas. A locomoção
Não é grave não ter carro, já não é sinal de estatuto. A não ser que tenha um Bentley ou um Ferrari e aí pode ser o que quiser. Mas dificilmente terá um Mercedes, a não ser que tenha um pai ligado à Construção Civil e justifica-se dizendo que o usa de forma irónica e numa referência aos anos 80. Como as ombreias. Cultivar a aura de artista não é fácil e a linha entre ser cool e ser parolo é muito ténue. Mais vale não arriscar. Uma aposta segura é ter uma bicicleta: vintage ou a imitar. Mas atenção, não serve para fazer exercício físico. Por isso nunca o verás a dar a volta à pista, de fato de treino. Até porque faz Yoga, Taichi, Pilates, ou Método de Alexander (seja lá o que isso for). Andar muito de avião também é importante. O artista vai a Londres ou a Nova Iorque, como quem vai a Santo Tirso. Não importa se nunca ouviu falar de Dole ou de Memmingen, é para isso que serve o Google. De certeza que há por lá algum museu ou galeria e se não for mais nada, falará disso quando mencionar as suas viagens (a propósito de uma coisa que não tem nada a ver). O artista é, acima de tudo, um bicho social
Há palavras obrigatórias no vocabulário de um artista. A saber: sinergias, cluster, projecto, alavancar, conceito, multidisciplinar, performance. Usa-as sempre que falar de uma exposição, do seu trabalho ou de qualquer coisa relacionado com as artes. Mesmo que não faça muito sentido, não faz mal. São palavras que servem para tudo e ficam bem em todo lado. São como uns sapatos pretos. O artista de hoje comunica muito e tem contactos em todo o lado. Quem é que pediu uma Kalashnikov de 47, para uma instalação que está integrada numa colaboração multidisciplinar alavancada por um cluster qualquer? O artista pode ajudar, porque conheceu um gajo, uma vez, numa festa – durante uma viagem que fez a Bremen – num espaço reinterpretado por uns artistas locais. Acabaram por ser amigos no Facebook, porque a meio de uma performance perceberam que ambos tinham uma t-shirt de edição limitada do mesmo estilista nórdico. Por falar em comunicar, atenção, o artista tem iPod, iMac, iPhone, iPad. Tudo o que comece com i. E saca-os publicamente, sempre que pode. E sempre que envia um mail de uma dessas maquinetas, deixa sempre “Enviado do meu…”. O artista tem que ter o dom de se saber autopromover no Facebook. Mesmo quando tem uma vida mais entediante que os próprios avós, parece que anda sempre numa algazarra social. Mais importante que ser, é parecer. Tem sempre isto em mente se quiseres ser artista." "Já viste o meu sketchbook?" Um artista está sempre a trabalhar
Um artista já não é só pintor, bailarino, actor, escritor ou fotógrafo. Idealmente o artista de hoje faz várias coisas. Quantas mais, melhor. Como os desportos que pratica, convém ser artisticamente holístico. Nunca se percebe muito bem do que vive o artista. Está sempre muito ocupado e em trânsito. Nunca tem tempo para nada, ainda que nunca o vejas a trabalhar e ande sempre por aí em tudo o que é festa e inauguração. Nunca sabes muito bem como é a sua situação económica, mas algo te diz (nem que seja pelas cinco ou seis geringonças com que anda e viagens que faz), que o gajo tem que ganhar bem. Não és artista, mas gostavas de ser?
Se és médico, advogado, contabilista ou electricista e nunca tiveste mais do que 3 a Educação Visual, mas ainda assim queres ser (ou parecer) artista, nem tudo está perdido: compra uma máquina fotográfica ou anda sempre com um caderninho debaixo do braço e diz que “escreves umas cenas” e “fotografas momentos”. Não precisas nunca de mostrar o que fazes, só tens que dizer que ainda andas a trabalhar no conceito da coisa e ainda não podes revelar o teu projecto.