O Crepúsculo da Bomba
A cratera da primeira bomba nuclear hoje, em Trinity, New Mexico. Photo: Steven St. John

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Tecnologia

O Crepúsculo da Bomba

Um dos últimos cientistas vivos do Projeto Manhattan retorna à cratera da primeira bomba nuclear.

Com os olhos semicerrados sob um longo chapéu, Murray Peshkin observa a cratera feita pela primeira bomba nuclear da história no deserto do Novo México, nos Estados Unidos. A última vez em que ele esteve aqui foi em 1945, pouco depois da Gadget – o apelido dado para a primeira bomba-teste – ter explodido. Na época, Murray trabalhava no Projeto Manhattan.

"Havia menos plantas", ele diz, olhando para os poucos arbustos que misturam o local da explosão histórica ao cenário típico do sudoeste americano.

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Na última vez em que esteve no local, Murray andou pelo deserto completamente nu. Hoje o físico de 90 anos volta com peso muito maior nas costas: uma vida inteira de questionamentos sobre o ponto alto de sua carreira, que ocorreu graças à participação no que julgar ser um crime de guerra. Ele trouxe seu filho, que nunca viu o lugar. Ambos agora olham para o que a bomba ocasionou: quilômetros de areia que se transformaram em vidro radioativo.

Nesse verão, a bomba atômica faz 70 anos. O dia 16 de julho de 2015 marca o 70º aniversário da primeira detonação da arma mais letal da história.

"Funcionou", teria dito o físico Robert Oppenheimer, o diretor do projeto, após o sucesso da bomba. Reza a lenda que Oppenheimer também citou o Bhagavad Gita, um religioso texto hindu: "Agora me tornei a morte, a destruidora de mundos."

Décadas depois, a destruidora de mundos ainda assombra os Estados Unidos. A bomba domina a política – conforme a comunidade internacional se esforça para regulamentar e controlar os armamentos nucleares – e nossa cultura pop – como inspiração para ficção distópica. É impossível separar a bomba da imagem das ruínas de Hiroshima e Nagasaki, lembranças trágicas de seu poder.

Ela nos assombra, mas com urgência cada vez menor. Além disso, nós a tratamos como uma senhora de idade, decrépita e inofensiva. Assim como a cratera coberta por arbustos no Novo México, a presença da bomba em nossas vidas é inegável porém ultrapassada. Não duvidamos de seu potencial de destruição, mas parecemos duvidar de que ela será usada mais uma vez. Longe dos treinamentos de explosões dos anos 60 e 70 e da famosa propaganda política do candidato Lyndon B. Johnson, a ameaça nuclear perdeu seu poder, ofuscada por novos apocalipses como a mudança climática ou uma pandemia global. Ela é só mais um tópico na lista de possíveis armagedons criados pelos humanos, embora seja a única tecnologia criada exclusivamente para esse fim.

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Hoje nove países contêm armas nucleares; somados, eles possuem 16.300 armas. Essa rede de armas nucleares cinquentonas, algumas das quais ainda localizadas em vários pontos estratégicos ao redor do mundo, transforma a possibilidade da destruição em massa em uma ameaça bem real.

Mas, antes de tudo, a bomba atômica foi uma das experiências científicas mais bem-sucedidas de todos os tempos. Ela foi o produto de bilhões de dólares em investimentos governamentais, do esforço de centenas dos melhores cientistas do mundo que trabalharam em segredo em uma cidade construída a partir do zero no meio do deserto e de um patriotismo datado e maniqueísta: o objetivo era matar Hitler e derrotar os japoneses.

O destino quis que Murray Peshkin tivesse um papel fundamental nessa missão.

É por isso que eu o chamei para me acompanhar até Trinity, o marco zero da revolução nuclear, no 70º aniversário de seu nascimento, para recriar sua — e nossa — trajetória até a criação da bomba.

Encontrei Murray e seu filho Michael em Chicago, onde ambos vivem — coincidentemente o local da primeira reação nuclear controlada, realizada por Enrico Fermi em 1942 — antes de seguirmos para o Novo México. No avião, nossa conversa girou em torno da bomba.

Filho de um professor de matemática que virou diretor de escola, Murray era um típico garoto nerd do Brooklyn. Ele chegou a cursar física em Cornell, mas logo percebeu que não ficaria muito tempo por lá.

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"A guerra estava começando, e eu esperava ser convocado junto de vários outros rapazes", ele diz. O ano era 1943, e o exército precisava de jovens com conhecimento científico. "Aqueles que estudavam ciências tecnológicas recebiam um ano extra para terminar seus estudos. A ideia era que seríamos mais úteis para o exército."

Durante a guerra, Murray e seus colegas estudaram pesado matemática e física. No fim do ano, conforme o dia da convocação se aproximava e os recrutas do exército e da marinha ficavam mais inquietos, um dos seus professores o chamou para uma conversa.

"Ele disse, 'sabe, existe uma alternativa que você deve considerar seriamente'", conta Murray. "'Não posso te dizer muita coisa. Posso dizer que é um trabalho dentro dos Estados Unidos, uma excelente oportunidade científica e patriótica. Você não verá sua família até o fim da guerra e não poderá dizer para eles onde está ou o que está fazendo, só o fato de que você está nos Estados Unidos. Recomendo que você aceite essa oportunidade'. E foi isso que eu fiz."

Na época, Murray tinha 18 anos. Ele não fazia ideia de que seu professor de física estava falando sobre o Projeto Manhattan. Na verdade, o professor em questão também não.

"Diferente de outros programas, não havia nenhum documento oficial sobre esse projeto", explica Murray. "Ele simplesmente me disse que se eu quisesse participar, só precisava aceitar e depois me alistar no exército, que, de alguma forma, eu seria transportado para o projeto."

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Confie em nós, basicamente.

"Quando lembro dessa situação, reconheço que ela soa muito assustadora. Mas na época eu não achava era nada disso. Estávamos no meio de uma guerra. Era uma guerra popular, todo mundo queria fazer sua parte", diz Murray. Esse é um tema recorrente em nossas conversas — Murray sempre afirma que aquela era uma época diferente, marcada pelo patriotismo fervoroso e pela fé cega nas instituições americanas.

"É lógico que eu confiei nele. Nem sequer hesitei, não analisei a proposta ou disse que daria um resposta no dia seguinte. Simplesmente aceitei."

Crédito: Steven St. John

O local onde a primeira bomba explodiu, conhecido como Trinity, hoje faz parte do Campo de Teste de Mísseis de White Sands, o maior campo de testes do país. Lisa Blevins, nossa guia do exército dos EUA — o local fica aberto para visitação por apenas um ou dois dias ao ano, mas eles abriram uma exceção para nossa matéria — está segurando um punhado de vidro verde e empoeirado.

"Trinitita", ela diz, acariciando a relíquia com o dedão. O pequeno grupo — composto por jornalistas brasileiros, dois caras da emissora PBS, um memorialista, Murray, seu filho e eu — se aproxima.

Esse é o nome do vidro criado pelo calor da explosão de 1945. Acredita-se que Robert Oppenheimer, o físico polímata que comandou o Projeto Manhattan, foi quem nomeou o local de teste como Trinity, uma possível referência a um soneto de John Donne que diz "Força meu peito, Deus trino."

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O mineral só pode ser encontrado aqui, onde a bomba tocou a areia, e por isso tem esse nome. Blevins nos diz que as pedras não são mais radioativas, assim como o resto do campo de testes — segundo ela, uma visita à Trinity transmite uma radioatividade equivalente a um dia inteiro passado no sol. Mesmo assim, retirar qualquer pedacinho de vidro do campo é um crime federal, embora vendedores encham suas barraquinhas de supostas "Trinititas" na estrada que leva até Albuquerque.

"As pedras eram muito mais verdes na época, com uma cor parecida com a de uma esmeralda", diz Murray. "E elas cobriam todo esse lado do deserto". Ao longo dos anos, a oxidação desbotou a cor das pedras, mas logo depois da explosão da bomba, o deserto foi revestido por cristais sintéticos. Em 1945, muito antes das leis anti-remoção, ele levou um pedaço para casa e deixou no bolso por um ano antes de perder.

Comento que a pedra parece Kryptonita, e Murray sorri. "Ela pode muito bem ser."

"Logo entendi que as pessoas que eu conhecia casualmente e cujos nomes estampavam as portas do laboratório eram os físicos nucleares mais famosos do país"

Pouco depois de sua convocação misteriosa, Murray foi enviado para um campo de treinamento, onde ficou por algumas semanas antes de receber mais ordens sigilosas. Entre elas, havia documentos confidenciais que levaram ele e alguns compatriotas para uma série de trens e ônibus especiais que os guiaram por um "caminho sinuoso" de Oakridge, Tennessee — outro local de testes do Projeto Manhattan, onde uma planta nuclear refinava urânio — até St. Louis, Chicago, chegando no Laboratório Nacional Los Amalos.

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"Percebíamos que havia algo muito importante por trás daquelas ordens." Os trens podiam estar lotados, mas "no momento em que nós aparecíamos, os funcionários arranjavam lugares imediatamente."

Quando eles enfim chegaram ao laboratório escondido no meio do nada, o Los Alamos estava lotado. "Ele estava muito movimentado, cheio de pessoas", diz Murray. "Havia acomodações para milhares de pessoas, erguidas a partir do nada. O exército construiu tudo em alguns meses. O General Groves era incrível."

O General Leslie Groves era o comandante do exército americano que gerenciava não apenas o famoso laboratório, mas sim todo o Projeto Manhattan, que incluía usinas de enriquecimento de urânio e plutônio no Tennessee e em Washington, e laboratórios em Berkeley e Chicago. Ele é escolhido Oppenheimer para dirigir o projeto por, apesar da reputação de socialista e boêmio, manter o projeto muito bem equipado — fornecendo desde equipamentos de última geração como o ciclotron de Harvard à fios de cobre — e por oferecer uma liberdade incomum para os cientistas.

As ideias fluiam livremente no Projeto Manhattan, o que sem dúvidas acelerou o processo de criação da bomba. É claro que o fato das melhores mentes do mundo estarem reunidas em alguns prédios no meio das montanhas também ajudava.

"Logo entendi que as pessoas que eu conhecia casualmente e cujos nomes estampavam as portas dos laboratórios incluíam os físicos nucleares mais famosos do país", diz Murray. Richard Feynman. Edward Teller, Enrico Fermi, Hans Bethe, Oppenheimer – a lista continua. Mesmo aqueles que ele não reconhecia, diz Murray, eram grandes nomes da ciência. Além disso, Murray logo percebeu que ele era uma das pessoas mais novas — ou talvez a mais nova — do Projeto.

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"Eu não era apenas novo, eu era um estudante que não sabia de nada. Eles tinham coisas que podiam ser feitas por alguém sem muita experiência, e era isso que eu fazia".

Murray se juntou à Divisão Teórica, que era comandada, para sua surpresa, pela super-estrela da física Hans Bethe (que viria a ganhar o Prêmio Nobel em 1967) e incluía outros expoentes como Feynman (que também ganharia um Nobel, em 1965, por seu trabalho no campo de eletrodinâmica quântica).

Era um "quem é quem" da física contemporânea e, para um jovem aspirante à cientista, aquilo era impressionante. Murray, que começou seu trabalho no projeto como uma calculadora ambulante, gastou seus primeiros dias resolvendo diferentes equações para os cientistas mais velhos. Ainda não existiam computadores. O trabalho duro tinha que ser feito manualmente.

Após algumas semanas de trabalho secreto e monótono, Murray começou a ficar mais confiante. Ele foi até seu supervisor e disse: "Olha, se eu soubesse o que eu estou fazendo, eu faria meu trabalho melhor, e ele disse que esse era um pedido razoável e me explicou a situação."

Foi aí que Murray começou a entender que estava trabalhando nos cálculos que iriam ajudar na criação da maior bomba da história.

A bomba atômica ainda é, de certa forma, a ameaça mais perigosa à civilização humana. Mas, para os jovens de 2015, a bomba é uma coisa tão abstrata quanto para Murray em 1945.

"Tenho a sensação de que, para as pessoas abaixo dos 40 anos, a bomba atômica é vista como uma arma obsoleta, algo que não merece nenhuma preocupação", disse John Mecklin. Ele é o editor do Boletim de Cientistas Atômicos, o grupo que gerencia o famoso Relógio do Juízo Final, que mantém uma previsão de quantos "minutos" faltam para o fim da civilização. Nesse momento, seus ponteiros estão a três minutos da meia-noite, mais perto do que eles estiveram em anos, graças à silenciosa proliferação nuclear em países como o Paquistão e a China, à insidiosa modernização do arsenal nuclear em países como os Estados Unidos e a Rússia, e à constante ameaça do aquecimento global.

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Hoje, diz Mecklin, até mesmo no momento em que o acordo do Irã dominava as manchetes e a crise da Ucrânia acentuava as tensões nucleares, havia uma sensação de que as armas nucleares teriam se tornado o que ele chama de "anacronismos provocativos".

"Aquilo tudo aconteceu na Segunda Guerra Mundial, o que faz parecer que essa ameaça já foi solucionada", diz. "Mas ela não foi. As armas nucleares são uma ameaça à humanidade. Assim como a mudança climática, elas podem destruir a vida na Terra." A única diferença, diz ele, é a velocidade.

"Basta que alguém cometa um erro para que o mundo acabe em algumas horas. Essa é uma ameaça muito real."

Uma das mentes por trás desses primeiros cálculos apocalípticos foi Richard Feynman, um dos físicos mais celebrados do mundo. E ele se interessou por Murray.

"Richard Feynman, um dos maiores cientistas do século 20 e menino de ouro da Divisão Teórica, decidiu que ele precisava de alguém para fazer seus cálculos", disse Murray. "Ele poderia ter escolhido qualquer membro do grupo, e o escolhido fui eu". Murray ainda se empolga ao contar isso, sete décadas depois, mesmo depois de narrar essa história inúmeras vezes.

"Acho que nunca fui tão sortudo na minha vida. Minha vida mudou completamente."

Após a conclusão do Projeto, Murray retornaria à Cornell para estudar sob a tutela de Feynman. Sua carreira começou em um laboratório secreto, onde ele havia ajudado uma das maiores mentes da época a construir uma arma secreta. Além disso, Feynman estava sempre aberto a outras opiniões.

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"Ele era legal comigo", diz Murray, lembrando da boa ação de Feynman no Laboratório de Los Alamos. "Ele me dizia o que achava sobre o problema no qual eu estava trabalhando e sobre os dele também. E quando todos os líderes do projeto se reuniam para discutir, ele me encorajava a ficar na sala escutando. Era uma vida muito fascinante, eu me sentia como uma mosquinha espiando tudo da parede."

Na verdade, essa atitude era muito comum naquela incubadora de ideias movida à adrenalina.

"Era um espaço muito democrático", diz Murray. "O laboratório tinha mesas longas, onde todo mundo se sentava. Às vezes eu ficava sentado entre pessoas como Enrico Fermi e Edward Teller. "Murray gosta de contar uma história passada nessa sala comum, quando os dois homens estavam sentados lado a lado e alguém lançou um problema de física. Teller respondeu imediatamente e Fermi se aproximou dele.

"'Edward, eu não sei se você é um melhor físico do que eu', ele disse, 'mas você é certamente mais rápido'. Eu achei aquilo hilário."

Quando ele fala sobre a vida em Los Alamos, Murray reluz com o brilho de uma memória remota; a lembrança daquele primeiro semestre em que tudo fez sentido, daquela grande viagem para outra cidade, uma série de momentos profundamente íntimos. A física se tornaria um dos grandes amores de sua vida— após conseguir seu PhD, ele se mudou para Chicago, primeiro para lecionar na Universidade Northwestern, onde ele conheceu sua esposa, depois para o Laboratório Nacional Argonne, onde ele trabalhou oficialmente até 1996, quando se aposentou — no papel, pelo menos. Ele ainda vai ao laboratório quase todos os dias movido pelo amor à ciência.

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Freeman Dyson, outro cientista proeminente da época, descreve esse lado do projeto Manhattan no documentário The Day After Trinity com as seguintes palavras: "Quando vim para os Estados Unidos, conheci um monte de jovens que trabalharam em Los Alamos antes de finalizar seu treinamento científico", ele disse. "Para eles, aquela tinha sido a melhor época de suas vidas."

Mas nem todo mundo pensava o mesmo. Murray também tem muitas histórias sobre o outro lado do projeto — sobre sua imprudência, suas questões políticas e científicas.

Para começar, ele quase entrou em contato direto com materiais radioativos. Ele manipulava plutônio com pinças ou até mesmo com as mãos, sem nenhum equipamento de proteção — um trabalho que hoje é feito com braços robóticos. "Nós não nos preocupávamos na época, e eu ainda não me preocupo hoje. A gente estava em guerra!"

A ideia era que os cientistas estavam lutando contra os alemães, que estavam – supostamente – perto de criar uma bomba nuclear. Mesmo que Hitler estivesse morto, a pesquisa continuava como um ato patriótico. O novo alvo eram os japoneses.

Murray acredita que essa flexibilidade e essa imprudência estavam relacionadas à velocidade dos resultados. Com isso vieram os acidentes, como o que matou Louis Slothin, um físico canadense de 35 anos.

"Eles estavam fazendo algo conhecido como montagem crítica, uma experiência muito perigosa", lembra Murray. "A ideia era aprender mais sobre como os nêutrons se unem, usando uma amostra de plutônio, colocada em um pequeno suporte para manter sua estabilidade, e aproximando uma outra amostra da primeira."

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Ao mover as duas amostras, os cientistas podiam contar os nêutrons que escapavam durante a reação criada pelos materiais altamente radioativos, para em seguida medir sua intensidade.

"Todos sabiam que não se devia abaixar essas amostras porque se uma delas caísse e as duas entrassem em contato, aquilo geraria uma massa supercrítica e, por consequência, uma explosão de nêutrons. A amostra devia sempre manuseada de baixo para cima. Mas eles estavam com pressa, e um deles acabou derrubando a amostra. Louis Slotin, que estava segurando a outra amostra, soltou-a imediatamente", diz Murray. Slotin foi o segundo cientista a morrer em decorrência das experiências em Los Alamos. O primeiro foi Harry Daghlian Jr., que derrubou uma amostra de carboneto de tungstênio em um núcleo de plutônio.

"As amostras se tocaram, e eles sabiam que elas haviam liberado todos os nêutrons. Mas era tarde demais. Todos ficaram em silêncio."A radiação havia atingido Slotin com uma intensidade absurda.

"Todos saíram correndo", ele diz. "Louis morreu cerca de 10 dias depois."

Mais imprudência também significava, talvez, uma abertura maior para espiões.

Embora eles nunca tenham tido muito contato, Murray lembra de ver Klaus Fuchs, um notório físico teórico e espião soviético, andando pelos corredores. Ele o descreve como um homem quieto e distante. Murray conviveu muito mais com David Greenglass, o maquinista que também servia como espião para a URSS e eventualmente entregou sua irmã, Ethel Rosenberg, e seu marido Julius quando foi preso. Ambos foram executados por traição.

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"Eu o conhecia, mas não gostava dele", diz Murray, "eu não andava com ele."

Greenglass, cujo nome parece descrever o intricado produto daquela primeira bomba, ficou preso por 10 anos, viveu uma vida de humilhação pública e morreu usando um nome falso em um asilo no ano passado.

Quando o mês de julho de 1945 começou, a expectativa dominou o laboratório. Os cientistas e soldados que participavam do projeto estavam igualmente inquietos; eles sabiam que o dia do teste estava próximo. Fermi fez uma famosa aposta de mau gosto: segundo ele, a bomba faria todo o céu entrar em combustão, e o Novo México corria o risco de desaparecer por completo.

A bomba foi montada em uma casa abandonada a alguns quilômetros do local da explosão. Murray, Michael e eu também visitamos essa construção. As paredes são carregadas de lindas fotos de físicos conversando de forma descontraída ou tirando a primeira bomba atômica de um carro antigo para levá-la até a área de montagem.

A porta contêm várias frases pintadas em tinta branca. "Por Favor, Limpem os Pés, Por Favor, Usem a Outra Porta, Mantenham Essa Sala Limpa". Esses cuidados tomados para não acionar a bomba pareciam apropriadamente absurdas naquele momento, enquanto cutucávamos os rastros dos últimos momentos de inocência desses cientistas.

A bomba foi detonada às 5:29, depois de alguns atrasos por causa da chuva. A explosão pôde ser vista, como um pequeno ponto de fogo, a quilômetros de distância; ela causou uma comoção no Novo México. Para resolver isso, General Groves fez com que as Forças Aéreas divulgassem uma declaração, preparada com antecedência, para a mídia: "Um depósito de munições contendo uma quantidade considerável de explosivos explodiu. Não houve nenhuma baixa ou homem ferido e o dano patrimonial à região nos arredores do depósito foi irrisório", dizia o comunicado. Os cientistas ficaram embasbacados.

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Sim, ela havia funcionado.

"Quando o teste deu certo, muita gente começou a mudar de ideia", diz Murray. "Mas as pessoas com quem eu convivia nunca tiveram dúvida. Tínhamos essa arma, e nós iríamos usá-la, e quantos mais japoneses fossem mortos, melhor. Isso acabaria com a guerra. Além disso, eles eram os inimigos e é isso que o exército faz com seus inimigos."

Lembrem-se que Murray era apenas um adolescente.

"Mas acho que algumas pessoas mais velhas e mais sábias tinham algumas ressalvas. Depois do sucesso da Experiência Trinity, um grande número de pessoas, algo por volta de 70 cientistas de Los Alamos e talvez de outros laboratórios, escreveram uma carta para o Presidente Truman, suplicando para que ele avisasse os japoneses antes de lançar a bomba. Eles entregaram essa carta para um superior, e esse superior era o general Groves, que nunca a entregou."

Conforme o debate entre cientistas se inflamava, alguém percebeu que ninguém não havia recolhido nenhuma amostra de explosão. Os cientistas enterraram medidores próximos à torre que abrigava a bomba para medir a força do seu impacto.

"Alguém tinha que ir até lá para desenterrá-los", disse Murray. "Não sei como meu grupo de cinco físico teóricos foi escolhido. Sempre pensei que os outros cientistas pensavam que os teóricos não fariam muita falta. Ou talvez que nós já tivéssemos sido expostos à radiação, ao contrário deles."

"Aceitamos na hora; a gente queria ir até lá. Aquilo era empolgante. E foi o que fizemos."

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"Nós pegamos um carro do exército e fomos até Trinity", continua Murray. "Paramos na base do campo de testes e mudamos nossas roupas porque talvez elas fossem contaminadas. Depois dirigimos até a cratera, saímos do carro com nossas pás, um mapa que mostrava onde cada medidor havia sido enterrado e com alguns detectores de radiação. Se o nível de radiação ultrapassasse um certo limite, nós iríamos embora."

"Pegamos nossas pás, andamos até a cratera, descobrimos o famoso cristal conhecido como Trinitita e desenterramos os medidores."

No final, diz Murray, "Aagente se tornou uma trupe de palhaços — nós estávamos cobertos de areia possivelmente radioativa e resolvemos tirar nossas roupas. Éramos cinco caras atravessando o deserto completamente pelados."

A bomba foi lançada em Hiroshima apenas três semanas depois. Ela foi o ataque mais mortal da história.

O episódio ainda gera muita polêmica. Alguns estudiosos afirmam que ela foi uma demonstração desnecessária da força bélica americana enquanto outros argumentam que ela reduziu as mortes à longo prazo e evitaram a morte de centenas de milhares de americanos e japoneses.

Minha própria prima de segundo grau, Barb Mulkey, me diz que seu pai acreditava que a bomba havia salvado sua vida — ele estava em uma unidade de infantaria em um barco nas redondezas de Tóquio, no Japão, esperando a ordem de invasão. A taxa de baixas estimada para essa missão era de 90%.

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Mas o fato é que dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes morreram em uma explosão de fogo, e outros milhares morreram em decorrência da radiação — uma punição divina que se mantém, há décadas, como uma opção militar plausível para todas as nações com poderio nuclear.

Murray conviveu com essa devastação por quase toda sua vida. Toco no assunto enquanto andamos pelo que já foi uma cratera.

"Penso sobre isso há muitos anos. Nos primeiros 50 anos, eu me sentia muito mal. Não mal por ter construído a bomba — a gente acreditava que aquilo era uma corrida nuclear com a Alemanha. Mas sempre pensei em como seria melhor não ter usado a bomba."

Em certo momento, Murray se aproxima do monumento de obsidiana localizado no local de impacto e o toca com a mão. O ar do deserto é seco e relativamente fresco para a época. Seu filho está tirando fotos dele, olhando tudo com atenção, sorrindo de leve, unindo aquele local à história de seu pai.

"A bomba destruiu nossa liderança moral perante ao mundo", diz Murray. "Acho que as pessoas nos admiravam. E é claro que eles não nos admiram depois daquilo."

Ele cita o argumento de que mais pessoas foram mortas em ataques aéreos a Tóquio e cidades vizinhas e que a bomba pode ter evitado milhares de mortes ao dar fim à guerra— uma justificativa comumente usada pelo exército dos EUA.

Mas isso não alivia a consciência de Murray.

"Imagine se nós tivéssemos perdido, e os vitoriosos decidissem punir os criminosos de guerra. Será que eles me considerariam um deles? Talvez. Eu tentaria me defender — talvez eu não seja realmente um criminoso de guerra, mas é isso que eles diriam."

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Em frente ao local da explosão, com meus olhos fixados na cratera esmaecida, sinto pela primeira vez como se pudesse ver a bomba; sua explosão se espalhando pelo deserto cortado por montanhas. (Murray diz que o lugar era chamado de "Cânion de los Muertos", mas eu não achei nenhuma referência a esse nome nos registros.)

É fácil transportar a explosão, o cogumelo cinzento gravado em nossas mentes, para esse lugar, e eu posso imaginar a nuvem levantando areia, cinzas e fumaça. A destruição me faz pensar na minha própria família: meu avô trabalhou na criação da bomba de hidrogênio, alguns anos depois, quando ele era um jovem cadete saído de Harvard. Ele estava no atol de Bikini quando as bombas foram detonadas sobre a água, longe do solo americano. Ele conta histórias sobre ser lançado para fora das beliches à noite por causa do impacto. De tempos em tempos, alguém do governo liga para ele para checar seu estado de saúde.

Acabo de descobrir que vou virar pai; minha esposa me ligou dois dias atrás para contar a novidade. Não consigo pensar em outra coisa, meus pensamentos bruxuleando em termos binários, o que era suportável quando isso era apenas parte de um trabalho — você vai ser papai — , mas estranho quando estou olhando para o fantasma —Já sou quase um pai— de uma bomba nuclear.

Penso sobre a vida desse deserto, destruída em um átimo de segundo e substituída por vidro. Penso sobre as 40.000 pessoas que desapareceram instantaneamente em Hiroshima. Penso sobre a saúde mental de uma criança que nasce em um lugar onde esse tipo de coisa é possível. Penso sobre essa criança crescendo e fazendo tudo certo, fazendo boas escolhas, penso sobre o verdadeiro poder desse mundo escondido onde o olho não alcança, atrás de uma porta do governo, ou até mesmo no futuro. Penso sobre tudo explodindo e sobre as coisas que sobrevivem.

"Ela mudou o mundo", disse Murray após deixarmos a cratera. Isso é um eufemismo; a bomba ainda está mudando o mundo, mesmo que as plantas já tenham crescido sobre seus restos. Os países estão mais uma vez apostando nas armas nucleares e expandindo seus arsenais. Países com sérios conflitos, como a Índia e o Paquistão, por exemplo. Mesmo assim, ignoramos essa ameaça — tirando a histeria israelense, o alarde sobre o acordo nuclear do Irã parece mais ligado à política do que a uma preocupação genuína.

Mas a bomba ainda é a destruidora de mundos. Ainda cumpre seu papel.

"Quando o assunto são as armas nucleares, existe uma divergência entre o que as pessoas pensam e a realidade", disse-me Mecklin, do Boletim. E agora, essas "decisões são feitas em círculos muito pequenos. Se o presidente quiser lançar um ataque nuclear, ele pode. Não haveria nenhum plebiscito. Nenhum debate no congresso. O presidente pode simplesmente destruir algum país. Em outros países, o controle é ainda menor. As pessoas podem smplesmente fazer essa decisão." Essa é uma ameaça gravíssima à humanidade.

"E colocar isso na cabeça dos jovens é muito difícil", disse Mecklin. "Esse tema não está em voga. É tão assustador pensar em armas nucleares que as pessoas comuns nem chegam a pensar sobre elas."

Isso faz de Murray uma pessoa muito incomum. Ele pensa constantemente sobre a bomba há muitos anos. E o que ele acha de estar aqui 70 anos depois, refletindo sobre o nascimento da bomba atômica?

"Acho isso muito interessante", ele diz. "Minha memória não é o que era. É normal lembrar de algo errado depois de um ano, imagine 70 anos depois. Eu queria ver como esse lugar está hoje e estou feliz por ter vindo. Ele está do jeitinho que eu imaginava."

Ele afirma não ter tido nenhuma reação emocional.

"Já pensei tanto sobre isso ao longo dos anos, questões difíceis como 'será que foi certo'? Será que poderíamos ter agido diferente? Eu acho que já saturei todas essas questões", ele diz, franzindo o cenho.

Mas não há nenhuma resposta satisfatória — como poderia haver?

Apesar da participação no projeto Manhattan ter deslanchado sua carreira, apesar de seu imenso amor pela física e da oportunidade de conhecer algumas das mentes mais brilhantes do século, o peso da bomba é tão grande que ele trocaria tudo pela oportunidade de não fazer parte dessa destruição. "Se você me perguntasse agora", ele diz, "se eu pudesse escolher entre estar ou não envolvido, o que eu escolheria? Acho que eu escolheria não estar envolvido."

"O que eu quero dizer é: não me arrependo de ter participado desse projeto. Na época, aquela parecia ser a escolha certa. Quando fiz essa escolha, eu não sabia o que ela significava."

"Mas suponhamos que eu soubesse. Eu ainda acreditaria que estava fazendo o certo."

Tradução: Ananda Pieratti