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Tecnologia

Sonhos de Hiroshima: Como uma Lenda do Cinema Abordou o Terror Nuclear

A grande missão dos romancistas e cineastas é conseguir mostrar a essência das piores atrocidades já cometidas.
Crédito: "Sonhos", de Akira Kurosawa

O último dia 8 marcou o 69° aniversário da queda da bomba atômica em Hiroshima. E essa é uma boa ocasião para tentar dar sentido a um dos momentos mais sinistros da humanidade.

Minha humilde opinião é de que normalmente os romancistas e cinegrafistas melhor refinam e contam a atrocidade em sua essência mais cristalina. E foi assim quando o diretor japonês Akira Kurosawa relatou as duas bombas que atingiram as cidades de Hiroshima e Nagasaki no seu último filme, Sonhos, lançado em 1990.

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Até 1945, a galera não conseguia entender a magnitude das armas nucleares. O que aconteceu nesses dois momentos da alquimia científica e tecnológica foi tão elementar quanto o próprio universo. Mas para a maioria das pessoas, deve ser sido algo como o que a lenda da ficção científica, Arthur C. Clarke (2001: Odisseia no Espaço) disse em 1973: "Qualquer tecnologia suficientemente avançada é impossível distinguir de magia."

Claro que o poder da bomba foi real e físico. Mas o verdadeiro poder delas foi o terror psicológico que as acompanhou – uma forma de terrorismo em si. Como os romancistas e cineastas poderiam começar a contar com o poder de alquimia de uma obliteração atômica que caiu em cima de Hiroshima e Nagasaki?

Se alguém estava preparado para essa missão de contar essa história, esse alguém era Kurosawa. Ele era (e ainda é) renomado por seus filmes de samurai. Os Sete Samurais, o filme clássico de Kurosawa sobre sete guerreiros defendendo uma cidade infestada de bandidos – que foi transformado em um faroeste de Hollywood, Sete Homens e um Destino. A edição não linear de Rashoman, do Kurosawa, influenciou cineastas desde Werner Herzog até Quentin Tarantino.

Apesar de não ser visto como um filme mediador na época de seu lançamento, Sonhos carrega um tipo incrível de ressonância física que é muito subestimada – do tipo necessário para conter a mágica científica jogada em Hiroshima e Nagasaki; incluindo imagens registradas e liberadas pelo exército dos EUA, que com certeza aprenderam um pouco sobre imagens tocantes com Hollywood. De fato, as paisagens lúdicas em Sonhos são um aceno às paisagens mágicas de sonhos no próprio cinema.

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Composto por oito sonhos divididos em oito capítulos, cada um éuma representação cinematográfica de sonhos que Kurosawa teve durante a sua vida. Dos oito, "A Nevasca" e "O Túnel" são os dois mais assustadores e poderosos. "A Nevasca" segue, em um angustiante slow motion, um grupo em uma expedição em uma montanha ficam enterrados embaixo da neve, antes de encontrarem um demônio da neve. "O Túnel" segue um oficial militar japonês da Segunda Guerra Mundial enquanto ele emerge de um túnel, apenas antes de encontrar o seu pelotão morto.

No sonho "O Monte Fuji em Vermelho", Kurosawa usa a arquitetura de um sonho para atingir o sentimento de terror que as bombas de Hiroshima e Nagasaki causaram no psicológico japonês. Na sequência, um homem aparece no meio de uma multidão dispersa fugindo do Monte Fuji, que está imerso em chamas vermelhas apocalípticas, uma referência à série impressa em madeira "Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji", da artista japonesa Katsushika Hokusai, que transmite como o sol nascente se transforma em uma montanha vermelha no outono.

O sonho filmado em "O Monte Fuji em Vermelho" subverte o trabalho de arte. A montanha não é vermelha por causa da luz do sol nascendo, mas por causa do desastre do reator nuclear. O que é claro aqui é que Kurosawa está desenhando um paralelo entre o sol e as armas nucleares, ambos dependentes de energia atômica. Um que dá vida e outro que a tira.

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Alguns podem dizer que essa parte do sonho é mais profética sobre fusão do reator nuclear de Fukushima no Japão em 2011. Isso faz algum sentido, mas Kurosawa não estava, até onde eu sei, interessado em profecias. É muito mais provável que ele estivesse tentando expôr os demônios que as duas bombas atômicas implantaram na sua cabeça e na consciência coletiva dos seus compatriotas.

O que é realmente interessante na sequência do Monte Fuji em torno da chama nuclear é que ela parece totalmente irreal; os efeitos especiais são surreais ao ponto de parecerem caricaturais. E essa qualidade irreal, na verdade, na minha mente, espelha o que deve ter parecido a experiência atômica devastadora irreal daqueles cidadãos de Hiroshima e Nagasaki. O filme tem esse potencial único de criar esse tipo de realidade caricatural.

Em "O Monte Fuji em Vermelho", a devastação nuclear acontece lentamente, enquanto em Hiroshima e Nagasaki, tudo aconteceu em um instante. As chamas começaram e as pessoas continuaram se dispersando. Então Kurosawa faz um corte abrupto para uma cena na costa do mar, onde sobreviventes se reuniam. O homem que foi visto correndo no meio da multidão no comecinho ainda estácorrendo tentando entender o desastre. Há poucas respostas para suas questões.

O que ele aprendeu, com um homem de terno, é que o gás vermelho radioativo à deriva sobre o chão é Plutônio-239, e que há 10 milhões de gramas disso espalhado, e que isso causa câncer. O homem também aprende que o gás amarelo é Estrôncio-90, que "entra em você e causa leucemia". O gás roxo, por sua vez, é Césio-137, que afeta a reprodução, gerando mutações.

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É logo após essa descrição que Kurosawa produz arrepios profundos existenciais. Eles vêm na forma do diálogo com o homem de terno.

"A estupidez dos homens é inacreditável", diz o personagem. "A radioatividade estava invisível. E por causa do seu perigo, eles a coloriram. Mas isso só te deixa saber que tipo te mata. O cartão de visitas da Morte."

O homem que procura por respostas então vê sua própria morte chegando na forma de uma nuvem de Plutônio-239. E, em uma das sequências mais arrepiantes do cinema, ele tenta dispersar o gás radioativo com a sua jaqueta, lutando em uma batalha perdida contra a estupidez monumental da humanidade.

De alguma forma, essa é a praga dos romancistas ou dos cineastas: eles podem apresentar todas as verdades do mundo em uma realidade literária ou cinematográfica, mas tem alguém realmente ouvindo? Alguém está aprendendo?

Tradução: Letícia Naísa