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Cartier, o maior artista português vivo

Alguém processe este tipo. Não, a sério. Ele está a pedir.

Quando fui visitar o Cartier, no seu ateliê na Casa Amarela, no Porto, esperava fazer-lhe apenas algumas perguntas e vir embora, mas acabámos por ficar a conversar a tarde toda. Cartier, nome artístico de Paulo Ramos, é um artista de rua com espírito punk, que brinca com a sociedade através da arte. Aqui na VICE achamos que ele é o maior artista português vivo. VICE: Olá, Cartier. Como é que te tornaste artista?
Cartier: Comecei a pintar tarde, aos 25 anos. Tive formação em joalharia e tinha aulas de desenho técnico e ilustrativo em que tinha de usar aguarelas. E curti, tinha cores… como a televisão. A minha professora incentivou-me. Disse-me que o meu desenho era bruto, honesto, que era livre. E eu sentia-me bem. Para mim, quando uma pessoa se sente bem está a ser livre. Porquê joalharia? Não é uma cena muito vulgar.
Eu fui para joalharia porque o meu pai é latoeiro. Eu trabalhava na latoaria e, de vez em quando, os meus amigos pediam-me para fazer umas pulseiras e assim. Comecei a trabalhar aos 18 anos porque não gostava muito da escola, era daqueles alunos muito baldas. Houve um ano em que tive 200 e tal faltas. Muitas vezes não me apetecia fazer os testes, ia só lá assinar e tinha zero. Entretanto, a minha mãe faleceu e eu fui acabar o 12.º ano na António Arroio, já com 25 anos. Quer dizer, não sei se acabei — não fui ver as notas. Aprendi o que tinha a aprender e vim-me embora. Há coisas más que trazem coisas boas. Se isto é divino, como eu acredito que a vida é divina, então acho que essa foi a mudança que eu precisava para voltar a estudar e tirar o curso de joalharia. E a tua mãe nunca tripou contigo por causa da escola?
A minha mãe aceitava na boa. Dizia mesmo: “Se não te apeteceu fazer o teste, não faz mal." Eu chumbei quatro anos e a minha mãe nunca me pôs de castigo. Ela deu-me uma educação brutal. Eu sinto-me feliz. Faço o que gosto. Quando tu és feliz, as pessoas que te rodeiam também são felizes.     És disléxico, não é? Como é que foi crescer com esse problema?
A dislexia não é nada de muito grave, mas dificultou-me um bocado a vida. Fui um bocado aquele aluno à parte, tive aulas de acompanhamento. Lembro-me que a primária foi muito complicada, porque fisicamente não era visível que tivesse algum problema. Dava muitos erros, lia mal e isso dificultou-me no processo de aprendizagem normal. Mas chegaste a um momento em que começaste a usar a dislexia a teu favor.
A arte ajudou-me bué, por isso é que eu digo que a arte é importante para o mundo. A arte deu-me coisas do quotidiano que me fizeram sentir bem. Comecei a apaixonar-me. A criação é um mundo fantástico que todos nós sabemos fazer. A vida pode ser uma chatice ou um poema. A vida para mim é uma cena fantástica. Eu sou divino e acho que também és divina. E é bom, isso. Quando amas o mundo, aprendes. Tentas que as coisas sejam melhores. Oh, obrigada! E então o que é para ti a arte?
A arte é criares uma liberdade. Quando estás a pintar estás a criar algo de novo, uma liberdade qualquer, uma forma de ser nova. É um sentimento. A arte é uma palavra. Para mim, um desenho é uma palavra, uma conversa. Tem o nome de desenho porque alguém lhe deu esse nome e depois, como temos um dicionário, temos de seguir esse dicionário. Mas o desenho é uma reacção, uma emoção. E a pintura torna-se pedagógica porque estás a ver o quotidiano, o mais puro. Porque há coisas que não são puras hoje em dia por culpa do comércio. Quando amas alguém, a tua mãe, ou um amigo, isso é a cena mais pura do mundo e é bom, é pedagógico. Quando a cena tem emoção, algo de puro, estás a aprender bué. E isso são coisas simples. Quando é que decidiste adoptar o nome de Cartier?
Eu não assinava os meus quadros e as pessoas não entendiam porque pensam que o nome é o mais importante. Não é, o que importa é haver amor, paixão pelo quadro. A assinatura é criarmos uma identidade que nos dá importância, a nós. Uma vez tinha de pagar a renda, estava eu a vender quadros na rua, ao pé da Cartier, e umas pessoas pegaram num quadro meu e perguntaram: “Então, mas não assina?” E eu tentei explicar que não interessa o nome, que estavam a ver amor, a ver emoção, mas eles não compraram. Alguns dias depois, estava a pintar e veio-me essa cena: “Então, se eles querem uma identidade vou pôr Cartier!” E agora soa-me bem. “Olha o Cartier” e eu, vendedor de rua, a sentir-me “yeaaaaah!”, tipo king. Outras chateiam-me. Isto é uma brincadeira, preferia não assinar, mas há pessoas que vêem e compram só pelo nome. Fala-me da tua arte.
Eu sou um artista punk. A minha pintura é um bocado interventiva. Não é fácil para as galerias gostarem. Eu nunca fiz arte para vender. É um percurso que eu estou a criar, onde me sinto bem a discutir.     Qual é a cena com todos aqueles pénis?
É o que eu gosto de representar. Acho que devemos ter presença, ter tesão. Por isso é que o sexo vem muito para as artes — é uma cena livre, boa. Quando encontras o amor, é magnífico. Por isso é que o sexo e o prazer do corpo estão ligados à arte. Cria emoção e a arte é emoção. O Picasso uma vez disse: “Se eu soubesse o que é a arte, não diria a ninguém.” Eu acho que ele sabia muito bem: a arte é emoção. É a tal cena de ser feliz. Ser feliz está na liberdade e no amor. E o amor traz liberdade. Mas há bocado disseste que as pessoas não vêem esse amor…
Nesta sociedade as pessoas têm um ideal de vida que pensam ser o correcto. Tu não podes mostrar esquizofrenia, depressão, dislexia. Criaram-se uns códigos. Quando dizes no Natal, "vou para Direito, vou para Medicina”, a família fica logo contente porque vais ganhar dinheiro. O ideal é ter dinheiro, teres uma casa e um carro aos 18 anos. Eu não sou contra o consumismo porque o consumismo deu-nos coisas boas. Hoje em dia podes ter uma banda e gravar em casa. Podes ir estudar para Berlim e vais à internet e tens contacto com os teus pais. Eu não sou contra o capitalismo por essas razões, mas eles deram cabo da sociedade, transformaram as pessoas em robôs. As pessoas já não têm tempo para nada, porque trabalham oito horas, fazem o que não gostam porque têm de pagar aos bancos. Vemos muita televisão, muito carro bonito, roupas, telemóveis… E como é que é ser artista no meio disso tudo?
Em Portugal ser artista é nem saberes se podes pagar a renda. Foi por isso que fui para a rua vender, fazer performances. Há uma diferença entre Porto e Lisboa: em Lisboa tens arte institucional, há Dalis, há Picassos, há Pollocks, há Basquiats, tens o CCB e a Gulbenkian; no Porto é uma arte mais de vanguarda, mais ocupas e assim. Acho que se ganhava em dividir isso, havendo mais galerias no Porto e se esta arte mais oldschool fosse para Lisboa. Não sei por que é que há esta divisão. São coisas que se fazem no mundo, a rivalidade não sei.     E em que é que andas a trabalhar agora?
Estou a usar a escrita, pintura e vídeo. Tive uma ideia que é fazer uma intervenção num livro da Taschen, numa colecção de livros de artistas. Comprei os livros dos autores de que gostava e fiz como se fosse uma criança a rabiscar, a escrever no livro. É um estudo descomprometido, não é um estudo de rigor de texto nem nada disso. Gosto de ver estas imagens e acho que é uma maneira de aprender. Por exemplo, aqui digo: “A que horas jantas?”. Foi de certeza alguém que me fez essa pergunta e eu escrevi aqui. E depois vou deixar isto na Fnac, para as pessoas encontrarem.     E sei que estás a trabalhar no Manifesto Intelectual do Caralho. Queres-me explicar como é que isso surgiu?
Isso veio um bocado quando eu estava a fazer desenhos e percebi que havia muito a cena do caralho, do órgão sexual. Porque não tem mal nenhum, isto é um pénis. Eu acho que não tem mal nenhum mostrar aquilo que sou: sou um homem, com pénis. Não tinha problema nenhum em estar aqui despido a falar contigo. Na arte há essa construção da forma, do sexo, porque quando encontras o amor tens uma estrutura que te acompanha. E é bom quebrar tabus porque a sociedade tem muitos tabus. Não é andar na rua a mostrar os órgãos, não é isso. Mas se tiver um pénis numa montra, que mal é que isso tem? É como mostrar um cotovelo ou um joelho. É melhor isso do que uma publicidade estúpida. Como aqueles gajos ali a gritar “EHHHHH!” e aqueles ali, todos contentes, com as raparigas. A vida não é isto…   E o que é que tens feito ao nível da performance?
Fizemos uma intervenção na Casa Amarela chamada O Vírus, em que, e durante dez dias, qualquer pessoa podia intervir na cidade do Porto. Eu escolhi um café, falei com uma amiga e decidimos fazer uma performance chamada A Última Ceia em Casa do Papa Júlio. Tínhamos comida, havia ganzas, vinho. Mas as pessoas que lá iam só tinham um fundinho de copo de vinho, o corpo de Cristo, e não podiam tocar em mais nada. Depois havia um livro da Taschen em que eu intervi, o do Miguel Ângelo, numa espécie de altar, e havia um microfone para as pessoas poderem lê-lo. É aquela discussão de eu ter muita comida, muita fartura, e eles não terem nada. É isso que eu queria mostrar: que quando uns têm muito e outros não têm nada, gera-se ódio. Eu tenho vídeos disso, se depois quiseres ver. Aliás, isso até está na Polícia Judiciária agora [risos]! Um dos meus amigos teve um acidente nesse dia e as filmagens foram confiscadas.   Explica-me porque estou curiosa: porque é que o teu ateliê se chama Galeria Disney?
Sei que começou com uma brincadeira, mas já não me lembro bem… Não tens medo que a Disney te ponha em tribunal?
Eu até queria, mas eles não fizeram nada. Não me ligam nenhuma. Acho que ir a um julgamento para debater qualquer coisa, mesmo que eu saiba à partida que não tenho razão, vai ser giro isso. Imagina-te com 50 anos a defender a Galeria Disney e os putos a dizer: “Não, a Disney não é isso!” Eu queria ser processado pela Disney, era fixe. Se isso acontecer avisa-me, gostava de assistir.
Olha, mas afinal tu vais fazer o quê com isto? Falar sobre mim, sobre o meu trabalho? Sim, basicamente é isso.
Podes dizer que eu tenho uma namorada? Tudo bem. Se quiseres mesmo, eu digo.
Obrigado.