"Não interessa de onde vens. A minha casa é mesmo a estrada"
Surma. Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

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Entrevista

"Não interessa de onde vens. A minha casa é mesmo a estrada"

Surma vai fechar o ano com mais de 50 concertos no estrangeiro, em 13 países. Através do alter-ego artístico, Débora Umbelino diz que ganhou liberdade e maturidade, entre o palco, o carro e o hotel.

Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.

Não fuma e quase não bebe. "Tenho um costume que é beber um shot de whisky antes de ir para o palco. É psicológico. De resto, bebo uma cerveja de vez em quando. Fui vegetariana, deixei porque estava quase anémica. Era a pior vegetariana de sempre. Só comia massa com cogumelos. Agora como peixinho e carne. Não sou extremista". Débora Umbelino tem tido um 2018 em cheio, vestida como Surma. Pontos altos, a passagem pelos festivais Eurosonic (na Holanda) e South By Southwest (nos Estados Unidos), além da nomeação do álbum de estreia, Antwerpen, para melhor disco independente europeu do ano pela Associação Europeia de Editoras Independentes (Impala).

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Lançado em Outubro de 2017 pela editora Omnichord Records, de Leiria, Antwerpen foi considerado o segundo melhor álbum português do ano pelos jornalistas do Blitz, quinto para os leitores. O título é uma homenagem à cidade que Débora Umbelino conheceu durante as gravações de um vídeo na Bélgica. "Despertou-me qualquer coisa, é uma cidade mágica". Natural de Leiria, 23 anos, traz a vida tatuada no corpo. "Esta é Antwerpen conectada com Portugal e Leiria, isto quer dizer que estou sempre isolada dentro do meu cubo, esta é porque gosto de barquinhos, esta quer dizer coragem em islandês, isto quer dizer que sou muito transparente".


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Surma é Débora Umbelino a solo, depois da passagem pelos Backwater And The Screaming Fantasy. Mudou-se para Lisboa aos 17 anos, a fim de estudar jazz no Hot Club de Portugal, canta num idioma próprio, a que chama surmês, já esteve nos principais festivais nacionais, do Bons Sons a Paredes de Coura, do Super Bock Super Rock ao Milhões de Festa, mas é cada vez mais uma artista sem fronteiras. É também um dos rostos da campanha de publicidade que se inspira nos Xutos & Pontapés, paga por um operador de telecomunicações, onde aparece a cantar uma versão de "A Minha Casinha".

JORNAL DE LEIRIA: O que é que a música te trouxe de mais importante até agora?

Surma: Conhecer pessoas extraordinárias. Muitos dos meus melhores amigos foram feitos na estrada, já conheci pessoas incríveis, que me têm ajudado muito, em termos de composição, de inspiração. O facto de visitar países que nunca na vida pensei em lá tocar. Tem sido um sonho. E sem a Omnichord [editora] não estaria nem perto.

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E liberdade, também?

Muita. Sempre me senti muito liberta na música. Compor e viajar é uma liberdade extrema. Sou uma pessoa reservada e a música é um caminho para me dar a conhecer. Costumo esconder as emoções e a música é um caminho livre.

Concertos nos principais festivais de Verão, nomeações para listas de melhor disco e canção do ano, publicidade para grandes marcas. Portugal começa a ser demasiado pequeno?

Não, pelo contrário. Portugal é e será sempre o meu país de eleição. Vou lá para fora e sinto saudades, não troco isto por nada. Portugal nunca vai ser pequeno para mim.

Que objectivos faltam alcançar em Portugal?

Tenho sempre objectivos, quero sempre ir mais além, fazer mais e melhor. E as pessoas que me têm apoiado desde o início têm-me dado mais garra para ser mais perfeita naquilo que faço. Sou um bocado workaholic, o que é mau e bom ao mesmo tempo.

Nos próximos dias, actua na Áustria e no Reino Unido. Depois, até ao fim do ano, Surma tem concertos agendados em França, na Alemanha e na Islândia, no festival Iceland Airwaves. Há ainda duas datas no SIM em São Paulo, Brasil, para fechar 2018. Foto por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

O ano vai acabar com mais de 50 concertos no estrangeiro, em 13 países…

Tem sido cansativo, porque viajamos sempre às cinco da manhã e tocamos no mesmo dia e, às vezes, regressamos no mesmo dia a Portugal, mas, no final de tudo, tem sido tão gratificante e tão bom. E lá fora tive uma adesão incrível. Costumo tocar em bares e salas pequenas, que criam um ambiente mais intimista e simpático. Estão lá para te ver. Na Alemanha e na Suécia tive pessoas que vieram ter comigo e disseram que me conheciam do YouTube. E também pessoas que não conheciam e compraram o CD no final. Costumo sentir-me muito em casa quando estou lá fora. Por estranho que pareça, nos Estados Unidos foi como se estivesse em Leiria. Estranhíssimo. Vai das pessoas, são muito calorosas.

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É mais difícil para um artista português afirmar-se no plano internacional?

Não, basta seres tu mesmo. Se corre bem cá, provavelmente vai correr bem lá fora. Não é preciso imitares alguém para cresceres lá fora, basta seres tu. Não interessa de onde vens. A minha casa é mesmo a estrada e não tenho mesmo lugar fixo onde dormir. Ando sempre cá e lá, e lá e cá, e sinto-me bem assim. Vim a casa [dos pais, no Vale do Horto, Leiria] este ano umas três vezes, se tanto.

Palco, carro e hotel.

Sim, e às vezes dormir no chão, ou em cadeiras e está tudo bem. Tem sido mesmo rock 'n' roll. Já conheci pessoas incríveis, culturas diferentes, o Antwerpen foi muito à base disso. Inspiração do mundo, por assim dizer.


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Tudo o que aconteceu até à data mudou-te de alguma maneira?

Mudou muito, não só enquanto música, mas como pessoa também. Sou uma pessoa mais aberta e mais madura como compositora. Sinto-me muito mais livre quando vou para o palco. Agora apago mesmo, tanto que as pessoas batem palmas e só acordo uns dois minutos depois. É uma sensação incrível, não sabia que tinha isto dentro de mim. Estou mais livre e solta.

A Surma e a Débora continuam a ser a mesma pessoa? Ou nunca foram?

Acho que nunca foram e nunca vão ser. Acho que a Surma me dá a oportunidade de reflectir aquilo que a Débora não consegue reflectir pessoalmente. É o alter-ego de artista, por assim dizer, e abre-me para as pessoas.

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E há cinco anos estavas a terminar o ensino secundário.

Queria seguir Medicina, mas as minhas notas eram más. A música sempre foi um hobbie, tinha aulas de guitarra clássica e piano numa escola da Golpilheira. Foi tudo muito por acaso. E aconteceu. Muito naturalmente.

Já disseste em entrevistas que o Antwerpen é um disco de quarto.

Sim, sem dúvida.

És mais caseira do que festivaleira?

Sou muito caseira, até costumo dizer que sou um bocado anti-social, parecendo que não, mas sou muito. Sou um bocado bicho do mato. Nunca saio de casa, é raro. Estou a trabalhar ou vou passear só uma horita. Gosto de ir ao cinema, ao teatro, a concertos, de sair com a máquina em Lisboa e tirar fotografias. E gosto de viajar. Sou uma pessoa um bocado solitária, gosto muito de estar sozinha.


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O álbum tem um ambiente muito electrónico e espacial, mas muitos sons são naturais, produzidos com o que estava por ali…

Desde o início quis sons muito orgânicos e fazer uma coisa fora da caixa. E foi tudo feito muito no momento. Cheguei com as bases e as melodias, gravava, o Telmo teve a belíssima ideia de tocar numa plataforma metálica de iluminação para filmes, o Pedro juntou um tambor velho, eu um caderno a ser rasgado que parece um vento, sei lá, o Rui umas castanholas a cair, cada um pôs um bocado.

Do orgânico e analógico para chegar ao digital e contemporâneo.

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Sim. Acho que a piada está em improvisar e não levar as coisas muito pensadas. Já há demasiados álbuns iguais. Porque não gravar ali na hora? O processo foi muito genuíno.

É um disco tanto teu como deles?

Sim, o Rui, o Telmo e o Pedro [músicos dos First Breath After Coma]. Foi um ano e meio intensivo, a trabalhar e eles ajudaram muito, porque eu estava com muitos concertos e muito tempo fora do estúdio. Cada um meteu um bocadinho de si no álbum. A sonoridade já estava definida na minha cabeça e eles ajudaram e complementar a base. Foi uma ajuda incrível.

O que faz a diferença na Omnichord?

Sermos todos muito unidos e o facto de não haver competitividade entre nenhum de nós. Sou suspeita, porque inspiro-me muito nos First Breath After Coma desde muito miúda e ser amiga deles também ajuda. Criámos um nicho muito forte em Leiria.

De onde vem o universo que define a música de Surma?

Costumo dizer que me inspiro muito no silêncio, por estranho que pareça. Não ouço música durante o dia todo quando vou compor. Tento abstrair-me de tudo e entrar no meu próprio mundo. A fonética foi arriscar, acabou por correr bastante bem. Quis explorar essa vertente, não usar letra e deixar à interpretação de cada pessoa. São só sons. E nos concertos costumo mudar para o que me vem no momento.

Atribuis um significado a cada música, como se houvesse letra?

O instrumental leva-me para sítios estranhos e na minha cabeça são um mundo à parte. Perfeitamente definido. Daí os nomes das músicas estarem numa língua estranha, mas quererem traduzir um estado de espírito.

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Inspiras-te no silêncio. E mais?

Montanhas. Aquelas paisagens épicas. A Islândia, por exemplo, inspira-me imenso.

Precisas de estar sozinha para compor?

Preciso de estar sozinha ou não sai nada. Zero. No estúdio eles iam fumar um cigarro ou beber um café. Já me aconteceu ir para umas escadas de incêndio, num hotel.

Consegues identificar o ponto de viragem, o momento em que as coisas começaram a acontecer mais depressa?

Andei um ano e meio sozinha e acho que foi no momento em que entrei na Omnichord que as coisas começaram a andar tão depressa e tão bem, graças ao Hugo [Ferreira, fundador da editora]. Logo no início, o Super Bock, o primeiro grande festival em que toquei. Abriu-me muitas portas. E a tour Um Ao Molhe também.

E a Surma vai ser sempre só uma pessoa?

Nunca digas nunca, mas o meu objectivo é continuar assim, mesmo em palco. Sinto-me livre, sem ter de dar explicações a ninguém.

Podendo escolher qualquer um, com quem gostarias de trabalhar?

Annie Clark (St. Vincent). Para mim é uma deusa.


Cláudio Garcia é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.

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