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Identidade

Um Tupi pode ser o primeiro santo queer da igreja católica

Tibira é símbolo de uma campanha que pretende fazer a igreja reconhecer o que pode ter sido a primeira execução homofóbica do Brasil.

Esta matéria foi publicada originalmente na VICE US.

A história é sangrenta: "Em 1612, uma expedição francesa com 500 colonizadores chegou ao norte do Brasil, como parte de uma onda de poder colonial europeu em busca de açúcar, ouro e outras riquezas", me disse Ashkan Sepahvand, pesquisador pós-colonial do Museu LGBTQ Schwules em Berlim. "Eles formaram uma missão, chamada São Luís em homenagem ao Rei Luís IX, na região costeira do nordeste do Maranhão."

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Missionários acompanhavam os colonizadores, disse Sepahvand, com a intenção de ensinar aos nativos o modo de vida cristão. O objetivo era "purificar a terra de seus males" e "extinguir o pecado" entre a população nativa — entre eles a sodomia. "Na verdade, a palavra 'faggot' ['bicha'] vem dessa época, uma referência aos pequenos pedaços de madeira usados para acender as fogueiras de execução", disse Sepahvand.

Em 1614, um indígena tupi chamado "Tibira" foi sentenciado à morte pelo crime de sodomia. Ele seria executado num espetáculo público, para servir de lição aos locais: relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo não seria mais tolerado. E assim Tibira foi amarrado na boca de um canhão e explodido. "Mas só depois de ter sido batizado", disse Sepahvand. "Com essa aparente 'benevolência', os missionários queriam garantir que depois da morte, Tibira chegaria ao Céu e poderia escolher entre o grupo de anjos masculinos ou femininos cantando a glória de Deus." Aleluia, né.

A razão para sabermos sobre esse assassinato espetacular é porque um monge capuchinho francês que passava pelo Maranhão registrou a execução em seu diário de viagem. O relato de Yves D'Evreux é o único registro da execução de Tibira. Naturalmente, a passagem foi rapidamente esquecida; só mais um entre inúmeros exemplos das monstruosidades cometidas pelos colonialistas europeus e a Igreja Católica no Brasil e além. Mas quatro séculos depois, algo incomum aconteceu: um grupo ativista gay da Bahia cruzou com esse incidente em suas pesquisas sobre a história local. O diretor do Grupo Gay da Bahia e um dos principais ativistas pelos direitos gays do Brasil, Luiz Mott, decidiu colocar a morte de Tibira novamente nos holofotes alguns anos atrás, e deu início à uma campanha para destacá-lo como o primeiro caso documentado de assassinato homofóbico na América Latina, e portanto, o primeiro "mártir" homossexual da região.

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O objetivo de Mott é fazer a Igreja Católica reconhecer oficialmente Tibira como um "santo queer". A campanha rendeu manchetes no Brasil e, em dezembro passado, Mott conseguiu fazer lobby para erguer um monumento em homenagem a Tibira em São Luís do Maranhão.

Essa campanha pela canonização, claro, provavelmente está destinada ao fracasso — é mais um ato político que qualquer outra coisa. Mesmo assim, Mott continua a espalhar a história de Tibira; ele doou parte dos arquivos de sua organização ao Museu Schwules, na Alemanha, inclusive um panfleto publicado em 2014 que marcou o quarto centenário da execução do indígena, com a única representação visual conhecida de Tibira na capa.

O panfleto da Bahia chamou a atenção de Sepahvand enquanto ele fazia a curadoria para uma exposição no Schwules chamada Odarodle: An imaginary their_story of naturepeople, 1535-2017, atualmente em exposição no museu, que visa recontar a história LGBTQ a partir de uma perspectiva pós-colonial. (Revelando tudo agora: sou um funcionário do Museu Schwules e membro de seu conselho de diretores.)

Para essa exposição, Sepahvand encomendou um novo trabalho inspirado na história de Tibira do artista nipo-brasileiro Lucas Odahara. Intitulada Their Sounds Echoing Between You and Me, a obra é comporta por painéis de azulejo azul e branco, que retratam fragmentos de desenhos produzidos por volta da época da execução de Tibira: "estudos do século 17 das paisagens, flora e habitantes nativos do Brasil por pintores da era colonial, além de detalhes de canhões e soldados das pinturas de guerra ocidentais daquele tempo", segundo a declaração artística de Odahara. A obra tenta invocar uma "câmara de eco visual", criando "um corpo cortado em pedaços e espalhado pela cena" — assim como Tibira foi despedaçado pelos colonialistas que odiavam sua sexualidade.

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Their Sounds Echoing Between You And Me por Lucas Odahara. Foto por Daniel Weigel.

"Histórias dos primeiros séculos de colonização no Brasil são muito interessantes para mim", me disse Odahara. "Assim como a história de Tibira, elas só existem da perspectiva europeia. Então isso apresenta um problema óbvio: como podemos pensar naquele momento no tempo sem seguir e repetir uma narrativa com uma única perspectiva?"

Ainda que a história de Tibira possa nunca ser totalmente conhecida, ela é mais relevante do que nunca. "Especialmente depois do golpe parlamentar de 2016, estamos testemunhando uma escalada da tensão na questão dos povos indígenas do Brasil." Odahara disse que a história de Tibira "representa, para mim, uma repetição dessa história", citando a proposta de uma emenda constitucional visando retomar reservas indígenas protegidas, relatos de tribos não contatadas sendo assassinadas por mineradores de ouro, e a censura de uma exposição de arte queer por evangélicos de direita. Isso sem mencionar a censura a uma peça em Jundiaí no começo do mês, onde uma atriz trans fazia o papel de Jesus, ou o fato de que semana passada um tribunal brasileiro decidiu que homossexualidade pode ser tratada por psicólogos como uma "doença" no futuro.

Esses eventos e outros forçam uma pergunta: por que alguém iria querer a benção da igreja para uma figura como Tibira? "A estratégia de reenquadrar Tibira como 'santo' certamente revela o poder político da contrapropriação — usar a linguagem da Igreja contra ela", observou Sepahvand. Mas ele aponta que os efeitos do colonialismo no Brasil contemporâneo são incrivelmente complexos: "a distinção entre opressor e oprimido é confusa, se não contraditória às vezes", ele diz.

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Outros são mais críticos. Mott e seu grupo "querem validação e aceitação das mesmas instituições que causaram todo esse horror e homofobia", me escreveu o jornalista José Gabriel Navarro, que entrevistou Mott para um jornal LGBTQ brasileiro em 2014. "É como se eles só pudessem ser felizes, e se sentirem aceitos, se seu antigo opressor der sua benção, o que nunca vai acontecer."

É essa complexidade que torna o ativismo político e expressão artística sobre colonialismo tão desafiadores. Sepahvand disse que sua exposição visa fazer mais do que apenas destacar as injustiças contra populações indígenas. "Simplesmente demonstrar 'o errado' não muda muita coisa", ele disse. Em vez disso, a tarefa aqui era empoderar pessoas que se sentem "de algum modo 'alienadas' — seja racial, sexualmente ou por ser de uma classe social diferente". Seu objetivo é reescrever estruturas de poder para elementos "não familiares, surreais ou queer" da sociedade, um processo que "confunde as pessoas, ou até as deixa putas". Mas isso é algo bom segundo Sepahvand, "porque joga um osso para nossa necessidade contemporânea de 'compreensão' rápida, de fácil digestão e imbecilizada" da injustiça colonial.

Mott, de sua parte, estava sorridente ao lado do monumento que ele ajudou a erguer em dezembro passado, um "índio" de pedra, acima de uma inscrição dizendo "A primeira vítima de homofobia no Brasil".

Kevin Clarke mora em Berlim e trabalha para o Museu Schwules . Ele fez a curadoria da exposição Porn That Way e é autor do livro Porn: From Andy Warhol to X-Tube .

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