“Nós vamos botar fogo na moto e nele também”
Awapu Uru-eu-wau-wau durante operação contra madeireiros. Foto: Gabriel Uchida/VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

Tretas Amazônicas

“Nós vamos botar fogo na moto e nele também”

Madeireiros e invasores não param de ameaçar e roubar os índios Uru-eu-wau-wau em Rondônia.

“Nós vamos botar fogo na moto e nele também”. Essa foi apenas mais uma das ameaças que vem sofrendo Awapu Uru-eu-wau-wau, presidente da Associação Jupaú – organização que representa sua etnia. Já estava escuro na floresta quando o indígena ouviu um barulho diferente vindo da mata. Era um trator trabalhando bem próximo à sua casa na Aldeia Nova. Sem conseguir falar com a equipe da FUNAI, que estava em outra operação, Awapu decidiu ir sozinho confrontar os invasores: “Fui lá tentar impedir que eles tirassem mais madeira porque quem precisa da natureza é o indígena. Os bichos estão indo embora, eles estão derrubando até as castanheiras e a mata não vai ficar a mesma que era antes”.

Publicidade

Armas e serras elétricas apreendidas com invasores na década de 90. Foto: Ivaneide Bandeira

Naquela noite os invasores foram embora, mas várias árvores já haviam sido derrubadas dentro da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, que fica na região centro-oeste de Rondônia. Por ser uma área extensa – são quase dois milhões de hectares – as pressões externas vêm não só de madeireiros ilegais, mas também de grileiros e garimpeiros. Os ataques são muitos e acontecem há anos em vários lados, hoje é possível afirmar que quase todo o limite da terra indígena tem focos de invasão.


Pela lei brasileira, as terras indígenas são de posse da União e apenas os povos originários podem viver e desenvolver atividades produtivas na área. Ou seja, não-indígenas são proibidos de usufruir ou explorar esses territórios. Porém, a realidade dos Uru-eu-wau-wau é outra. Segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral, existem 137 processos minerários na região. Além disso, recentemente foi descoberta a existência de 699 imóveis rurais cadastrados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Rondônia dentro da área protegida. Isso sem contar os inúmeros focos de roubo de madeira por todo o território. Segundo o INPE, até 2017 a área desmatada dentro da terra indígena corresponde a quase 18 mil campos de futebol.

Acampamento de invasores sendo queimado durante operação de vigilância na década de 90. Foto: Ivaneide Bandeira

Os prejudicados por toda essa destruição não são apenas os Uru-eu-wau-wau. Ali vivem também outros povos: Amondawa, Cabixi, Oro Towati e três grupos isolados, ou seja, sem nenhum contato com o “homem branco”. Além disso, é um bioma riquíssimo e com diferentes tipos de vegetação - como cerrado, savana, floresta amazônica e floresta de altitude. O território tem ainda grande importância para o Estado. O biólogo e indigenista Israel Vale Jr. explica: “Se não fosse uma área protegida, já não existiria mais e provavelmente teríamos sérios problemas de água em Rondônia porque 17 grandes rios do Estado nascem lá”.

Publicidade

Amondawa com trator e caminhões apreendidos com madeireiros ilegais. Foto: Ivaneide Bandeira

Se a vida dos indígenas está em perigo, o mesmo acontece com quem tenta ajudar. A indigenista Ivaneide Bandeira trabalha com os Uru-eu-wau-wau há mais de 20 anos e já teve o carro metralhado por madeireiros da região na década de 90. “Tinha cidade que a gente evitava e quando passava, abaixava no carro e não parava de jeito nenhum. Mais recentemente um delegado da Polícia Federal também me disse para evitar andar por lá”, conta Ivaneide. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, Rondônia é o segundo Estado que mais mata no campo, perdendo apenas para o Pará. Além de agressivos, os invasores são também muito bem organizados.

Mapa com dezenas de lotes dentro da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau

João Alberto Ribeiro, gestor do Parque Nacional do Pacaas Novos – área que fica dentro e sobreposta à Terra Indígena Uru-eu-wau-wau – já sofreu duas emboscadas na região. Em uma das ocasiões, estava em operação de fiscalização com três brigadistas e cinco policiais militares. Eles haviam prendido um madeireiro, um trator, três motos e vários equipamentos. Na volta, os invasores tinham derrubado mais de trinta árvores no caminho e até destruído uma ponte para evitar a passagem da equipe.

Além disso, cerca de 50 pessoas cercaram o grupo e não só resgataram o madeireiro preso, como também tomaram de volta todo o material apreendido e começaram inclusive a roubar os pertences da equipe. João Ribeiro conta: “Um dos líderes chegou a propor que se a gente não mexesse com eles no sul do Parque, eles deixariam o resto da área livre e nos deixariam passar na boa porque eles sabiam de tudo, até das nossas operações”.

Publicidade

Relatório da FUNAI de 2007 que já ilustrava bem a situação da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau: “Apocalipse”. Foto: Gabriel Uchida

Em 2017, a Polícia Federal realizou uma operação no local. Foram emitidos 78 mandados judiciais em várias cidades da região. Além de diversas armas apreendidas, foram detidos policiais, fazendeiros e Nelson Bispo dos Santos, um dos chefes do esquema de grilagem. O negócio funcionava há anos da mesma maneira: a terra indígena era invadida, tiravam e vendiam as madeiras de valor, desmatavam a área, criavam lotes e vendiam – alguns por até 40 mil reais. Na época, só o grileiro Nelson Bispo tinha mais de 300 lotes no território indígena.

Apesar dos resultados da operação, as invasões continuaram. A Terra Indígena Uru-eu-wau-wau é um barril de pólvora. Revoltados, muitas vezes os índios empunham seus arcos e flechas e partem para o meio da floresta para tentar expulsar os invasores – sempre armados.

Ivaneide Bandeira durante ritual tradicional na aldeia Jamari do povo uru-eu-wau-wau. Foto: Gabriel Uchida

No meio de todo esse caos, no ano passado a Fundação Nacional do Índio fez apenas uma operação de fiscalização na área. Segundo Hércules Schiave, Chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da FUNAI de Ji-Paraná/RO, “Hoje a grande dificuldade é que temos uma área imensa com muitas invasões e nós temos poucos recursos e poucos servidores atuando na região – no total são só oito para todo esse território”.

Desde 2013 a verba da FUNAI vem diminuindo. Naquele ano, o orçamento para ações de fiscalização, proteção territorial e demarcação de terras indígenas era de 106 milhões de reais. Em 2017, esse valor caiu para 15 milhões. Só no ano passado o Ministério da Justiça cortou mais de 50% do orçamento total da entidade.

Publicidade

Crianças indígenas na aldeia Jamari. Foto: Gabriel Uchida/VICE

Enquanto a FUNAI é enfraquecida, os invasores da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau estão cada vez mais fortes. Os madeireiros já chegaram inclusive a oferecer propina para que os índios não fizessem denúncias à polícia e para que avisassem quando iriam acontecer fiscalizações. O indígena Awapu Uru-eu-wau-wau não aceitou o negócio e obviamente também foi ameaçado por isso. O sentimento nas aldeias é de revolta. O jovem Tebu Uru-eu-wau-wau protesta: “Ninguém vai na casa deles, se o índio invadir lá, eles vão meter bala na gente. Eles tem que respeitar o nosso direito como a gente respeita o deles, do jeito que está eles vão destruir tudo aqui”.

Além da organização dos invasores e da extensão do território, os acessos às aldeias e aos pontos de invasão também dificultam muito a fiscalização. Foto: Gabriel Uchida/VICE

Equipes da FUNAI e do Batalhão de Polícia Ambiental fazendo apreensão de madeira dentro da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau. Foto: Gabriel Uchida/VICE

Mesmo a castanheira tendo seu corte proibido por lei, invasores derrubam e vendem tábuas dessa espécie. Foto: Gabriel Uchida/VICE

Na região, a floresta só resiste até os limites da Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, tendo todo o seu entorno já desmatado principalmente por fazendas de criação de gado. Foto: Gabriel Uchida/VICE

Indígenas uru-eu-wau-wau se pintando com tinta de jenipapo e madeireiros detidos dentro do território durante a década de 90. Foto: Ivaneide Bandeira

Gabriel Uchida é fotógrafo, jornalista e colaborador da VICE de longa data. Ele estreou aqui mostrando seu acesso inédito aos meandros das torcidas organizadas de futebol. Desde 2016 roda pela Amazônia, mas antes passou pela Europa, África e Cuba – estadia que rendeu sua coluna Até Cubanos pra gente. Agora ele assina Tretas Amazônicas, onde dá a real sobre o que acontece no mundo da floresta, sem historinha pra turista gringo ver ou pra filme de sessão da tarde.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.