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Música

O Ano do K-Pop

É o fim do K-pop como o conhecemos ou o surgimento de sua verdadeira era de ouro?

Em termos de música, 2014 talvez não tenha sido o melhor de todos para o K-pop. Como palavras no papel – uma narrativa num ritmo arfante e suarento – 2014 foi o mais impressionante da história do K-pop. Foi o ano em que o K-pop virou a primeira temporada de uma série da TV a cabo sobre intrigas e motivações escusas no universo do tráfico de drogas. Foi o ano em que o K-Pop conheceu Michael Bay, e se tornou uma alegoria num filme impossivelmente caro sobre arranha-céus robôs percebendo virtudes abstratas e se matando uns aos outros por causa delas. Foi o ano em que o K-pop substituiu uma epígrafe tirada do Livro do Apocalipse em mais um ensaio de Hunter S. Thompson sobre um cozidão do inferno e a danação inexorável. Foi o ano em que o K-pop se configurou como uma parede de texto, na aparência idêntica a fanfics infinitamente reblogadas, seus autores acordando na manhã seguinte e vendo sangue de verdade e fluidos corporais em suas mãos. No K-pop, 2014 foi o ano em que nada não era verdade.

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Quem dera não fosse mais fácil achar sentido nessas metáforas do que nos fatos por trás delas. Nos últimos 365 dias, um dos principais cantores do K-pop foi visto traficando metanfetamina ao mesmo tempo em que chegava ao topo da lista dos mais vendidos. Os grandes senhores das corporações olhavam de queixo caído os seus ídolos bastante jovens criarem consciência e quebrarem contratos para processá-los por violações de direitos humanos – e fugirem de volta para seus países de origem, e começarem namoros e vidas sociais. A ideia pesadamente propagandeada de que os nossos ídolos prediletos realmente amam uns aos outros desabou sob o peso do desdém exausto dos nossos ídolos prediletos por tudo que não fosse o desejo pela liberdade pessoal. Os padrões da indústria levaram a tragédias angustiantes e sem sentido, com uma contagem de corpos que chega a cerca de dezesseis fãs e algumas estrelas em ascensão. Claro, todo ano a fantasia cuidadosamente construída do K-pop como uma terra de algodão-doce, pó de fada e saias plissadas de colegial sofre o ataque de boatos e rumores hediondos – mas os fãs não estão acostumados a ver essas palavras serem tão devastadoramente verdadeiras.

E, assim, mais uma metáfora: no início de O Show de Truman, de 1998, Truman Burbank sai para a rua e vê um holofote caindo suspeitamente do céu. No final de 2014, os obcecados por K-pop saíram pra rua e viram metade do céu faltando.

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O ano começou com um período anormalmente sombrio. As melhores ofertas do K-pop naqueles primeiros meses de inverno incluíam o glacial lado B "I I Were You", do há muito esperado Crush (um disco tão desolador que até seu single ensolarado, "Happy", cheira a remorso), do 2NE1, e a colaboração entre a frontwoman CL, o companheiro de gravadora G-Dragon e Srillex, "Dirty Vibe", que introduziu um emocionante niilismo na atmosfera do K-pop. Mas a declaração mais chocante tomou a forma de um expletivo jamais antes pronunciado no mercado de singles do K-pop.

Ga-In -“FxxK U” ft. Bumkey

“FxxK U”, uma devastadora guinada solo da cantora pop Ga-In, foi o hit mais corajoso lançado no mundo inteiro em 2014. Censurar um termo tão vulgar somente no título da música é ousado, claro, mas fazê-lo sendo uma mulher no contexto de uma música e de um clipe, ambos tratando muito explicitamente do estupro doméstico, e fazê-lo num país onde os direitos das mulheres estão com décadas de atraso, é, na verdade, reescrever a definição de "ousado" dentro do contexto da música pop. (O mesmo vale para a diretora/aparentemente gênio Hwang Soo Ah.) E, além disso, fazer essa faixa ser musicalmente sofisticada a ponto de incorporar uma batida bossa nova, harmonias desalinhadas que entram numa fricção de sensualidade perturbadora, e uma série de mudanças de quatro acordes no espaço de uma ponte de oito compassos – servindo um propósito narrativo específico que sincroniza perfeitamente com a letra e com o clipe – aí é onde a expressão "obra-prima" talvez tenha que entrar na conversa.

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Como uma peça de arte única, o lançamento, em janeiro, de "FxxK U" impôs um páreo impossível para 2014, e, para completar, trouxe, em um dos seus momentos mais comoventes, uma antevisão: Bumkey, o vilão da música que responde "não me sinto desse jeito" ao "eu odeio fazer assim" de Ga-In acabou sendo preso por vender metanfetamina e ecstasy. Uma segunda carreira à qual ele, pelo visto, vinha se dedicando em Seul há vários anos. Se existe um pop star em atividade que foi flagrado em algum escândalo de tráfico de drogas mais extremo do que esse, em qualquer parte do mundo, a gente por algum motivo não deve ter reparado. Considerando que Bumkey pagará sua pena na Coreia do Sul, onde traficar maconha dá prisão perpétua e ser flagrado com pílulas em uma boate pode te colocar na cadeia antes de amanhecer, "Fxxk U" certamente continuará sendo o seu maior legado.

Akdong Musician - "Melted"

Akdong Musician, a adorável dupla adolescente composta por Lee Chanhyuk e Soohyun, apareceu com um conjunto irresistivelmente animado de músicas, o LP Play, em abril, mas logo depois do poptimismo praiano de "200%", soltou a chocante e sombria "Melted". Como se aceitando o desafio de Ga-In, a câmara de desespero pop da faixa encontra seu paralelo perfeito em uma narrativa visual feita por outra das jovens e brilhantes diretoras da Coreia do Sul, Dee Shin. Temas como distância racial, dissonância das lacunas geracionais, a vadiagem da juventude, e até mesmo a luta dos índios americanos são capturados e entretecidos com uma graciosidade até então inconcebível numa indústria conhecida pelo couro neon e pelas coreografias de dança sincronizadas. Com 17 anos recém-completados quando escreveu e produziu a música, Chanhyuk fornece uma letra que, quando cantada por sua irmã, de 14 anos, faz uso de um incisivo trocadilho coreano para amarrar tudo no final: "por que o gelo é tão frio?". Ouvido de um ângulo diferente, esse questionamento infantil cresce depressa, na medida em que "é" se transforma em "são" e que "gelo" se transforma em "adultos".

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O que é mais trágico: o caráter profético do próprio clipe viria à luz quando, apenas dois dias depois, a barca sul-coreana Sewol emborcou entre os litorais da província de Jeolla e da ilha Jeju. Mas de 12 adultos que estavam a bordo, incluindo capitão e tripulação, fugiram da embarcação quase que imediatamente, após emitirem repetidas ordens para que os passageiros ficassem onde estavam; 304 pessoas pereceram junto com o barco, a maioria delas em idade colegial ou mais jovem. Seguindo a marca indelével que "Melted" deixara horas antes, foi difícil não pensar naquele refrão fantasmagórico ao tentar encontrar sentido aonde não havia nenhum.

Ladies Code - "So Wonderful"

Em vários sentidos, a Coreia ainda não se recuperou do caso do Sewol, e, num certo sentido, parece que isso se aplica à sua indústria musical também. A operação das barcas entrou em hiato durante semanas, e daí foi atingida por sua própria tragédia assim que começava a retomar impulso: na manhã do dia 3 de setembro, aproximadamente às 1:30, o promissor grupo feminino Ladies' Code sofreu um acidente rodoviário, enquanto acelerava acima dos 130 km/h num asfalto que a chuva deixara escorregadio. Uma das cinco integrantes, EunB, de 21 anos, morreu no local. RiSe, de 23, morreu no hospital quatro dias depois. As três outras integrantes não teriam alta pelas seis semanas seguintes. Poucos dias antes de serem liberadas, dezesseis fãs morreram durante em show de quatro minutos pertinho de Seul, quando a grade metálica na qual estavam em pé para poder enxergar melhor desabou, caindo numa garagem subterrânea abaixo.

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Ambos os acidentes levantaram questões sérias sobre os padrões de segurança no K-pop: embora os fãs estivessem em uma área proibida, a falta de uma segurança no evento que os impedisse de ficar ali foi gritante. Além disso, especula-se muito que, depois de sair de um compromisso tarde da noite em Daegu, o empresário do Ladies' Code estava indo em alta velocidade para Seul, de modo a comparecer a tempo a um outro compromisso de negócios. (Compromissos às duas da madrugada de uma quarta-feira talvez sejam, para as bandas de K-pop, menos incomuns do que seria de imaginar.)

A comunidade online coreana apoiou a música "I’m Fine Thank You" para que chegasse ao topo de diversos rankings de pop domésticos, um ato especialmente comovente para um grupo que ainda estava trabalhando duro para criar sua base de fãs. Mas "So Wonderful" – claramente um tributo ao grupo clássico do K-pop, Wonder Girls – continua sendo a joia mais brilhante de seu curto ano. É uma inegável homenagem à Motown e às glórias da era disco nos anos 70, incluindo a guitarra esquema Chic e o baixo à Jamerson. Foi um dos primeiros e mais positivos exemplos de uma tendência dominante este ano: a consciência cada vez maior no K-pop não só da história global do pop, como também de sua própria história.

f(x) -"Red Light"

Embora menos grave, outro tema pesado dos últimos 12 meses foi a súbita implosão de alguns dos maiores e mais notáveis grupos da indústria. O primeiro choque veio em maio, quando Kris – um dos integrantes mais populares da EXO, uma boy band de 12 integrantes – de repente entrou com um processo contra a mesma agência que industrializara a máquina moderna do K-pop, a SM Entertainment, e abruptamente voltou para o seu país, a China, para obter mais liberdade e salário melhor. Isso foi um golpe muito forte para a banda de sucesso mais gigantesco da nova geração do K-pop, que teve que interromper abruptamente a campanha de promoção do excelente minidisco Overdose. Mas aquilo era só o começo – outro integrante chinês insanamente popular, Luhan, seguiu os passos de Kris, em outubro. A trama continua a se adensar: as batalhas jurídicas dos dois integrantes contra a SM ainda se desenrolam, ao passo que os 10 membros restantes ainda acumulam prêmios e arrastam multidões de dezenas de milhares, na China e na Coreia do Sul.

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As dores de cabeça da SM não terminaram aí. Igualmente surpreendente foi a expulsão de Jessica, em setembro, do Girls’ Generation, o grupo originalmente de 9 integrantes que talvez tenha dado início a todo o fenômeno do K-pop, com sua música de 2009, "Gee". Diferenças irreconciliáveis ficaram evidentes quando Jessica usou sua fama para lançar um ambicioso selo de moda chamado Blanc & Eclare. Assim como Kris e Luhan, Jessica era uma das integrantes mais icônicas de seu grupo, e sua saída põe em risco a viabilidade a longo prazo da banda. Mas o Girl's Generation está gravando novas músicas, e neste mês lotou a casa com quase 60.000 pessoas no Tokyo Dome, numa noite de semana. Portanto, como acontece com o EXO, esse titã não está fora da luta.

Mas o mais catastrófico de tudo foi quando os seis integrantes do B.A.P. entraram com um processo conjunto contra sua agência, a TS Entertainment, acusada por seus "contratos escravagistas" e um dossiê inacreditável de abusos: isolamento forçado dos membros da família, aplicação intravenosa obrigatória para restaurar as energias depois de muitas noites viradas em claro, presença obrigatória em shows contrariando claras ordens médicas, e um só pagamento de US$16.000 para cada integrante, depois de dois anos de trabalho contínuo e mais de US$9 milhões em rendimentos. O precedente aberto pelo resultado deste litígio, seja ele qual for, se mostrará histórico.

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Um contratempo relativamente pequeno continua a ser o mais lamentado do ano. f(x), os atuais campeões do formato CD no K-pop, tiveram de suspender abruptamente o ciclo publicitário de seu novo disco apenas duas semanas após iniciado, depois que sua integrante mais jovem, Sulli, teve um colapso e exigiu que se fizesse um hiato por tempo indeterminado, para que ela passasse tempo com o namorado e, é claro, frequentasse boates. Fato bastante improvável, o visionário single principal da banda, "Red Light", ostenta não só uma das estruturas musicais mais sofisticadas do cânone pop deste ano, como também uma letra que parece ser algum tipo de comentário indireto sobre os apuros recentes do K-pop. Embora seja possível que percamos muito em breve esse ousado quinteto, ainda temos esperança de que eles se reúnam para mais um disco clássico em 2015. (Pink Beat, do ano passado, continua a ser o disco a ser superado. Para todos.)

Seo Taiji - “Sogyeokdong”

Seria possível continuar; poderíamos continuar falando de 2014 até 2015 chegar. Mas parece mais apropriado deixar essa narrativa com o cara que, talvez para sua própria frustração, deu início a tudo: Seo Taiji. Foi esse esquisitão de óculos que, com seu disco de estreia de 1992, marcado por um apetite voraz para a digestão de gêneros, criou o molde para tudo o que o K-pop se tornaria. Hoje com 42 anos, o velho mestre apresenta Quiet Night, seu nono e melhor disco. "Sogyeokdong" – uma melancólica meditação sobre a infância de Taiji em meio à ditadura militar na Seul dos anos 80, e sobre aqueles que não sobreviveram – é a coisa mais sonoramente fúnebre que se pode chamar de K-pop este ano, especialmente a versão hit interpretada pela cantora com voz de querubim IU.

É um ponto apropriado para terminar 2014, não só pela maneira com que Quiet Night subverte os velhos lugares-comuns natalinos para transmitir uma crítica social revigorante, ou por como esse clipe responde habilmente aos padrões estabelecidos por "FxxK U" e "Melted", e nem por esse ano tantas vezes ter dado a sensação de funeral. O que mais importa aqui é que, na medida em que os recursos humanos paradoxalmente essenciais às aspirações comerciais pós-humanas do K-pop vão se dando conta da importância de seus próprios desejos – de receber um pagamento justo, de voltar à casa e à família, de fundar uma empresa de roupas, de se apaixonar – as palavras recentes de Seo Taiji vão se tornando visionárias. Em sua primeira entrevista à televisão em quase duas décadas, pediram àquele que é, na prática, o "Presidente da Cultura" da nação, desse alguns conselhos à linha de montagem de ídolos pop que há muito vêm sendo produzidos em massa com o objetivo de alcançar o mesmo sucesso que ele outrora obteve sozinho.

"Devem simplesmente fazer o que quiserem", disse ele, sem hesitar. "Fazer o que sentirem vontade de fazer."

Seja isso o fim do K-pop como o conhecemos ou o surgimento de sua verdadeira era de ouro, sabemos que ele deve estar certo.

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Tradução: Marcio Stockler