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Música

O novo EP do Mais Valia é um manifesto do instrumental

Trio pós-rock de Jaú nomeado a partir das ideias de Karl Marx lança duas faixas em ‘Mesopotâmia’.

Foto: Andreza Silviano Francisco

O Mais Valia é um trio instrumental de pós-rock com tendência ao stoner. Alexandre Palacio (baixo), Ricardo Cezario (guitarra) e Vitor Martins (bateria) produzem um som bem climático e desacelerado, o que também evidencia boas doses de space rock. Com esta fórmula, eles acreditam estar pintando o retrato sonoro de uma paisagem que representa a sociedade contemporânea e seus aspectos conflituosos. Até chegar no recorte musical buscado, eles passaram cerca de dois anos experimentando. Dessas sessões saiu o repertório do primeiro álbum, lançado pela Sinewave no ano passado.

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O disco de estreia abriu portas para garantir a presença da banda do interior paulista nos lineups de festivais como o Exhale The Sound, em Belo Horizonte, na Casa do Mancha e no Sinewave Fest, em São Paulo, além de uma turnê pelo Rio de Janeiro e Cabo Frio. O trio também passou por eventos como o Grito Rock (Jaú, Bauru e Guaíra, no estado de São Paulo), o Rockeria, em Jaú, o Circuito Paulista de Festivais Independentes e a Virada Cultural de Botucatu.

A experiência ao vivo colaborou para deixar os músicos ainda mais seguros e entrosados, o que se comprova no novo EP, Mesopotâmia, que o Noisey apresenta nesta terça (21) com exclusividade. O lançamento traz duas músicas concebidas dentro do projeto global Converse Rubber Tracks, e foi gravado no Family Mob Studios com a supervisão de Jean Dolabella.

Ouça o disco enquanto lê a entrevista com o baixista Alexandre, que falou sobre marxismo, a experiência de gravar no esquema bancado pela Converse, a cena interiorana de onde os caras vêm e a respeito desse lance de traduzir musicalmente uma paisagem social.

Noisey: Sendo esta a primeira matéria que a gente faz do Mais Valia no Noisey, tomo a liberdade de começar pedindo para que conte um pouco de como a banda se formou, com que proposta, e dê um panorama para os leitores da caminhada até aqui.
Alexandre Palacio: A banda se formou com a proposta de produzir som autoral de uma maneira livre a partir de improvisos que surgiam durante longas sessões de ensaio. Nesses encontros não conversávamos sobre referências, estilo musical ou algo do tipo, a ideia era simplesmente experimentar e curtir o momento. Inclusive éramos um quarteto no início. Nos primeiros shows tocávamos alguns temas e improvisávamos de acordo com o que estava rolando ali no momento, e cerca de um ano depois, já como um trio, esses improvisos amadureceram e se tornaram sons que foram lapidados e gravados em nosso primeiro disco. De lá pra cá muita coisa boa aconteceu, como a ligação com o selo Sinewave, passagens por alguns festivais, participação do projeto Original’s Studio, da Levi’s, que nos possibilitou gravar e lançar o último single, “Flamingo”, o próprio Converse Rubber Tracks, que nos presenteou com esse EP — e, o mais importante, que foi ter conhecido muitas bandas e pessoas fodas e interessadas em fazer acontecer.

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O que este novo EP pela Sinewave traz de novo ao som da banda? Digo tanto em termos de gravação e sonoridade como em pegada e influências.
Realmente tiveram alguns novos fatores, até porque iniciamos o processo de composição focado nesse formato e buscando uma unidade entre os dois sons, que tivesse uma estética e uma história própria. É natural, após terminar um projeto como o primeiro disco, notar alguns pontos em que você sente que poderia ter feito melhor ou diferente, e aprender o que nem imaginava. E parecem ser coisas que você realmente aprende na prática, com a experiência de entrar num estúdio pra gravar, amadurecendo os timbres e a pegada de gravação, que nem sempre é a mesma que se tem tocando ao vivo num palco, ainda que busquemos apresentar o mais próximo das gravações ao vivo. Nunca tentamos, mas temos a sensação de que simplesmente não funcionaria gravarmos separadamente, e talvez as coisas sairiam de uma maneira bem diferente da qual estamos acostumados. Mesmo na gravação, com o som já amadurecido, gostamos de deixar a coisa fluir naturalmente, porque sempre pode surgir algum detalhe novo ali naquele momento mágico, fechado no estúdio.

Qual é a fita por trás do nome da banda? Vocês são marxistas ou algo do tipo?
Na verdade acreditamos que o uso dos famosos “ismos” mais limita do que agrega, mas a base para o nome da banda vem sim da influência do termo criado por Marx e da análise que ele fez sobre o contexto em que vivia, durante o amadurecimento desse modelo de sociedade moderno-urbana industrializada. E infelizmente a maior parte daquela lógica ainda se aplica nos dias atuais, mais de um século depois, e é cada vez mais necessário expor os fatos e estimular o debate.

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Muitas bandas do Converse Rubber Tracks foram gravadas no Family Mob Studios, inclusive o Mais Valia. Vocês acham que cada estúdio acaba imprimindo a sua estética a todas as bandas que passam por ele? No caso de vocês, por exemplo, como rolou o processo e com que ideias de captação e sonoridade vocês entraram e saíram do estúdio?
Escutamos muitas bandas que passaram pelo estúdio e, após um tempo, é possível, sim, ouvir a identidade do lugar, e isso é incrível. Além da sala, mesa, amplificadores e válvulas, a captação e mixagem são feitas por mãos e ouvidos humanos que têm seus referenciais e isso é impresso na sonoridade final. Foi muito gratificante poder gravar com os caras, o Jean Dolabella, o Fábio Gomes e o Skero, que participaram de todo o processo. No nosso caso, tentamos fazer com que as coisas fluíssem da melhor maneira possível, gravamos ao vivo, no cara a cara, e depois foram adicionados apenas alguns overdubs de guitarra em estéreo. Deixamos o processo bem aberto, sem muitas intervenções e com espaço para o Fábio fazer o que entendemos ser uma “mixagem criativa”, imprimindo suas opiniões e experimentando. Felizmente ele soube captar muito bem a sonoridade da banda e nossas referências estavam muito próximas, porque a primeira audição já nos deixou incrivelmente satisfeitos.

A capa do EP ficou bem louca. Ela tem uma mensagem ou conceito que representa a banda, ou é só uma ilustração que vocês acharam bonita?
A capa foi produzida pelo Fernando Chamarelli, que é um grande amigo da banda. Falamos sobre o conceito do EP e o resto partiu dele. Não poderíamos ter ficado mais satisfeitos, porque ficou como a imagem e a leitura do nosso som, feita por um artista com uma sensibilidade incrível. Então foi fantástico poder ter nosso som representado pela arte do Chamarelli.

Como é o rolê de vocês em Jaú? Rola uma cena, uma galera agilizando as coisas, bandas irmãs?
Jaú é uma cidade do interior em uma posição relativamente favorável, bem ao centro do estado de São Paulo. Mas a produção de música autoral está bem desaquecida no momento, ainda que já tenham florescido ótimas safras de boas bandas por ali. E sem dúvida a criação da Mais Valia é estimulada por isso e pelo que rolava quando éramos mais moleques. Mas fora dos grandes centros a análise de uma manifestação cultural fica muito limitada se fecharmos os projetos apenas nos municípios específicos, então gostamos de abordar tudo isso pelo conceito de região, onde aí sim é possível enxergar um ambiente extremamente fértil, resistindo em meio a diversas limitações de maior ou menor ordem. Em Jaú (Black Bull Fuzz; Psiconauta), Bauru (Autoboneco, La Burca, Bertran de Born, Elephant King, The Bad Mind Temper), São Carlos (Krokodil, Aeromoças e Tenistas Russas), Botucatu (Assopro, Die) e Ribeirão Preto (Dresden), existem ótimas bandas e público interessado. Já pensou se a estrutura e acesso a ambientes de difusão acompanhassem essa onda? Cada vez temos mais clara a ideia de que “a cena” dificilmente vai se reproduzir pelos meios formais. O interesse ali é outro, portanto nos parece que fica na mão de quem produz algo fora dos padrões difundir o seu próprio trabalho.

Como é possível produzir apenas instrumentalmente um "retrato da paisagem sonora ligada à sociedade moderna, seus conflitos, abusos, aflições e necessidades", como assinala o texto de apresentação do primeiro álbum?
Música é uma representação artística extremamente abrangente. Sua produção e distribuição acabaram tomando formas industriais no decorrer do último século, e um padrão foi estabelecido por meio da massificação cultural ligada ao processo de globalização. A maioria das músicas pop (do axé ao metal) seguem esse formato. Não temos a pretensão de revolucionar o modelo, porque crescemos dentro desse contexto e fazemos uso de vários elementos dele, mas a desconstrução faz parte da força motriz na Mais Valia, que foi criada para servir como instrumento coletivo de abstração a todas essas amarras, visíveis e invisíveis, que nos cercam. Gostamos muito de uma definição usada pela Sinewave para retratar as bandas do selo: todas elas distorcem o conceito de música "certa", tocam alto, pesam e sangram. Sangue metafórico faz parte da pauta política, social e cultural nos dias de hoje.

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