Dois anos de 7×1: nós aprendemos alguma coisa?

No dia seguinte da abertura da Copa do Mundo no Brasil, me deparei com um homem largado no chão com as calças arriadas, óculos escuros torto e a carteira jogada do lado do seu corpo. Estava dormindo o sono dos justos, daqueles que somente uma noitada de caipirinha pode oferecer. Sua face era tão serena que mal parecia que estava na calçada da esquina da Avenida Consolação às 8:30 da manhã. Um grupo de pessoas estava reunido em volta do homem, mas ninguém parecia querer tomar alguma atitude. Um jovem tirava foto da cena, rindo. Não aguentei e fui acordar o fulano — sabendo de antemão que ele era gringo. Com muito custo, ele despertou, levantou do chão com as calças no tornozelo — incapaz de levantá-las- e eu, num gesto de bondade, levantei sua calça, fechei o zíper e passei sua carteira. O gringo estava com uma camiseta da Colômbia e, muito agradecido, tentou beijar minha mão. Dispensei o gesto e indiquei um ponto de táxi próximo. Um senhor, chocado com a cena, perguntou o que tinha acontecido enquanto todos nós observávamos o colombiano se afastar. “Copa”, respondi.

Mesmo após uma série de turbulências que antecederam o evento, desde o 7º ato das Jornadas de Junho de 2013 aos protestos anti-Copa abraçados por uma camada revoltosa da esquerda (onde a violência policial lambeu sério), os brasileiros pareciam felizes e convictos de que o espectro maligno do Maracanaço de 1950 na final contra o Uruguai seria finalmente deixado pra trás. Tudo seria resolvido. A tarifa abaixou, nossos jogadores eram jovens, saudáveis, religiosos e promissores. O técnico Felipão reproduzia ensinamentos motivacionais dignos de uma palestra do TED que convenciam bem, num simulacro da campanha vencedora de 2002 no Japão e Coreia do Sul. Ainda sentíamos os rastros da Era Lula no primeiro mandato da presidente sucessora, Dilma Rousseff. Dava para perdoar o gringo bêbado na esquina da Consolação, todos nós estávamos embevecidos de ambição com esse evento.

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Dilma mandando um “tóis” para Neymar nas suas redes sociais em 2014. Foto: Reprodução/Twitter.

Tudo acabou quando Kroos roubou a bola de Fernandinho na entrada da área brasileira. Já se iam 3 gooools da Alemanha em menos de 25 minutos de jogo. A tabela com Khedira e a zaga inteira no chão eram o retrato mais fiel de que havíamos, de alguma forma, falhado enquanto nação. Daquele ponto não havia mais volta, como se os três gols anteriores já não mostrassem o absoluto apagão da defesa canarinho. O castelo de (pouco) foco, (meia) força e fé (cega) que havia levado aos trancos o escrete canarinho à semifinal da “Copa das Copas” desfazia-se no ar como a profecia do Bom Velhinho. Ainda tomaríamos mais três gols, no maior vexame da história do desporto nacional. Crianças choravam, adultos riam nervosamente, alguém que levantou para mijar se perguntava se era replay. Não era, era apenas a confirmação do início do pesadelo e também a descoberta que é possível ter barra de rolagem para listar os gols na televisão. Aquela terça-feira foi pior pra muita gente.

queimaram bandeiras do Brasil na Vila Madalena ônibus foram incendiados e lojas saqueadas

O 7×1 se tornou imediatamente um marco da vergonha brasileira. Antes fosse parecida com o Maracanaço em 1950, quando perdemos de 2×1. Agora nós, o país de Terceiro Mundo, que tinha como um dos principais produtos de exportação jogadores de ponta e no futebol um dos poucos pontos de unificação e orgulho nacional, éramos humilhados mundialmente na nossa própria casa. Pior, a seleção da Alemanha foi honradíssima. Nem zoaram a gente direito, deram até um golzinho de lambuja para o Oscar. O que fortaleceu os discursos sobre a tal “eficiência europeia”. Foi a maior desmoralização brasileira, exceto pelos memes.

Pra quem quiser relembrar. Ainda é ruim de assistir.

A história começava mais cedo, é claro. Na abertura do evento, um vergonhoso coro era transmitido mundialmente a partir de São Paulo, diretamente dos caros camarotes e cadeiras da partida inaugural, entre Brasil e Croácia: “Ei, Dilma, vai tomar no cu!”, uma manifestação de carinho da torcida logo após o hino nacional. A popularidade da presidente havia despencado em 2013, após demonstrar a patente falta de habilidade política (dividida com o prefeito de São Paulo Fernando Haddad) em lidar com as Jornadas de Junho.

O 7×1 forneceu ao brasileiro a analogia ao fracasso de qualquer projeto possível de país, potencializou as nossas mágoas sobre nós mesmos, nossa inviabilidade enquanto nação, acossados sob o tema da eficiência europeia, reduzidos novamente à periferia do mundo. Pior ainda: o trauma foi tão imenso que nunca nos permitiu olhar a nós mesmos de maneira racional, em busca das nossas falhas, voltamos a projetar tudo num abstrato outro: a Seleção que não nos representa, a culpa é do governo, fora corrupção. Passamos de uma mitologia heroica pseudo-junguiana, livre de todo mal ou culpa, de volta à uma neurose freudiana cega.

A euforia deu lugar à melancolia, e o país que parou durante um mês para mostrar sua alegria ao mundo voltou ao trabalho cabisbaixo, sem a capacidade de enfrentar os desafios que se anuviavam à frente. A baixa taxa de retorno do investimento governamental no evento (até as trabalhadoras do sexo sentiram que o retorno esperado foi pífio) era aos poucos refletida também no decréscimo da produção industrial, e por fim não havia espírito para enfrentar a combinação entre falta de chuvas, fortalecimento do dólar (ambos com impacto direto na inflação) e queda nos preços das commodities – que começa, veja só, em junho de 2014 — aliadas à Lava Jato, que trariam uma das piores crises econômicas nunca antes vistas na história desse país. Guido Mantega, o Felipão da equipe econômica, foi demitido ainda durante a campanha de Dilma à reeleição. De 2015 para frente parecia inevitável a metáfora entre a defesa brasileira e a política econômica do Executivo, em pé de guerra com a Câmara — Levy e Barbosa eram os novos David Luiz e Dante.

Mas quem havia florescido mesmo era um sentimento de purgação total, que visse na derrota todos os males. Enquanto a crise corroía a pouca aprovação de Dilma, o impeachment se movimentava em banho-maria, propalado pelo birrento Aécio Neves (PSDB-MG) quase imediatamente após a sua derrota, e reforçado pelo agora renunciado Eduardo Cunha e o interino Michel Temer.

Mais que isso, esse terrível evento para a nação brasileira foi a primeira leva de terra sobre o caixão sobre o otimismo e a mimadice advindos da Geração Lula, ignorante politica e socialmente, especialmente sobre as condições que levaram à sua existência e a disparidade histórica que havia em relação às gerações anteriores ao processo de redistribuição de renda e oportunidades. Os jogadores evangélicos, certos de que o plano de Deus era a vitória, refletiam a própria visão de muitos torcedores que atribuem às próprias crenças tudo de positivo em suas vidas, se der bosta a culpa mesmo é de algum Satã que atuou sob forças obscuras. O 7×1 tornou essa visão umbiguista mais exposta para quem via de fora. Assim, as melhores condições de vida durante os últimos 13 anos não seriam fruto de um processo político, mas sim consequência individualizada da providência divina — imagine o impacto desse pensamento na vida política.

Torcedores revoltados na Vila Madalena queimam a bandeira do Brasil. Imagem via.

A camiseta da seleção brasileira se tornou um símbolo da revolta nascida do 7×1, uma cor de quem quer um país de bem e sem corrupção. Ninguém pareceu se importar em vestir, literalmente, a camisa da CBF, acusada de um esquema fortíssimo de corrupção que envolveu pagamentos de mais de 120 milhões de reais. O sentimento forte de rancor e frustração, potencializado com a profunda crise política e econômica do país, falava mais alto. A falta de articulação e comunicação popular do PT, aliado a um pragmatismo entre a cretinice e a falsa ingenuidade na questão da corrupção, fez do partido o alvo mais fácil para ser apontado como o capiroto responsável pela crise, com Dilma no papel de personificação terrena do coisa-ruim. Como resultado, à semelhança da reação à desastrosa campanha da Copa de 2006, impichamos um incompetente Parreira para em seu lugar termos um inexperiente e arrogante Dunga, patrocinado pela CBF, o PMDB do futebol. Insistimos tanto em não aprender com os erros que o colono mais grosso do futebol brasileiro estava no comando da seleção, novamente, até esses dias.

No fim das contas, a recusa em enxergar nossa responsabilidade no Mineiraço cotidiano lembra que, apesar da superioridade alemã ou da fragilidade do cenário externo, o brasileiro, assim como seu escrete, não tem ninguém a culpar sobre a profundidade desse 7×1 chamado crise a não ser ele mesmo.

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