FYI.

This story is over 5 years old.

Entretenimento

Estamos a vender a nossa liberdade à Google a troco de nada

Afinal, o que contém o misterioso contrato da Google? Que condições aceitamos ao utilizarmos os serviços da empresa, estejamos ou não conscientes deles?
Imagem via utilizador do Flickr Andresmh

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Motherboard.

Robert Epstein (@DrREpstein) é investigador e doutorado em Psicologia pelo American Institute for Behavioral Research and Technology em Vista, Califórnia. Publicou já 15 livros sobre IA e outros assuntos e foi editor-chefe da "Psychology Today".

Recentemente vi Mestres da Ilusão 2, um filme em que Daniel Radcliffe interpreta o diabólico magnata tecnológico Walter Mabry, uma espécie de cruzamento entre Mark Zuckerberg e Lord Voldemort. Mabry e os seus sócios dedicam-se a "destruir a vida de pessoas e a espiar toda a gente…enriquecendo através da venda de informação de carácter privado".

Publicidade

Estes vilões também utilizam métodos bastante macabros para se livrarem daqueles que já não servem os seus propósitos e, por vezes, enquanto o fazem, soltam até uma daquelas sonoras gargalhadas maléficas. Ha, ha, ha, ha! Uma elite de ilusionistas, chamados os Quatro Cavaleiros, interpretados por Mark Ruffalo, Jesse Eisenberg, Woody Harrelson e Lizzy Caplan são os encarregados de, através das suas habilidades mágicas, desmascarar os mauzões.

Quem imaginaria ver Daniel Radcliffe num papel de vilão? Imagem cortesia Summit Entertainment

Apesar do absurdo da história, o filme acaba por ser uma metáfora fantástica do que acontece todos os dias na Internet. Estes vilões existem de facto? Pois bem, tirando as mortes horríveis e implacáveis, há cada vez mais provas que demonstram que sim. Há um punhado de gigantes corporativos que espiam o resto do Mundo com fins lucrativos, violando a nossa intimidade e, como referi no meu mais recente ensaio, "The New Censorship", por vezes arruinando a vida das pessoas pelo caminho.

Inúmeros proprietários de pequenos negócios, por exemplo, têm apresentado queixas frequentes dos constantes e misteriosos ajustes que a Google faz ao seu algoritmo de busca e que fazem com que o motor de busca os castigue por "violarem" algum dos seus crípticos critérios. Até mesmo algumas das maiores empresas do Mundo vivem constantemente atormentadas pelo medo do Google". Deixarem de aparecer, de repente, nos resultados de busca seria desastroso para plataformas como o Youtube, Adwords, Adsense e muitas outras, propriedade da Alphabet.

Publicidade

Mas, centremo-nos no aspecto da privacidade, um problema que cada vez preocupa mais as pessoas, mas que poucos entendem na sua plenitude. Até há pouco tempo parecia que ninguém tinha problemas em ceder os seus dados a empresas como o Facebook, ou a Google, mas tudo aponta para que isso esteja a mudar. Um estudo recente, desenvolvido nos Estados Unidos da América, revela que 91 por cento dos adultos norte-americanos lamentam terem "perdido o controlo" sobre a utilização dos seus dados pessoais. Outro estudo, de que sou eu o autor, assinala que cederíamos cerca de 40 por cento menos de informação privada na Internet, se tivéssemos consciência da maneira como esta poderia vir a ser utilizada.

Creio que esta preocupação aumentaria se as pessoas compreendessem o que efectivamente está em jogo. Cada vez que alguém cede um fragmento que seja da sua intimidade à rede, está a oferecer aos gigantes que a controlam mais poder sobre a sua própria vida. É assim que as coisas funcionam. Quando utilizamos serviços de Internet "gratuitos", como o Facebook, Gmail, Youtube, Instagram, ou o motor de busca Google, estamos, na verdade, a subscrever um contrato e não em sentido figurado. Estamos, literalmente, a assinar um contrato vinculativo.

No parágrafo de 2.136 palavras "Condições de Serviço", a Google diz: "A utilização dos nossos Serviços implica a aceitação destas condições". Esta condição aplica-se, inclusive, quando não tens consciência de que estás a usar os serviços da Google, como acontece na maior parte das vezes. Há milhões de páginas web que incorporam Google Analytics, Google Adwords e Google Adsense, por exemplo. Quando visitas uma dessas páginas, estás a usar serviços Google e, portanto, ficas sujeito aos seus termos de utilização. O mesmo acontece com o Facebook, que tem "faróis" disseminados por toda a rede, ainda que em menor escala que a Google.

Publicidade

Mas afinal, o que contém esse misterioso contrato da Google? Que condições aceitamos ao utilizarmos os serviços da empresa, estejamos ou não conscientes deles? Por uma questão de comodidade, dividi o contrato com as condições do serviço da Google em três partes. Se tiveres paciência podes ler o original para comprovares se o que digo aqui está ou não correcto.

O contrato

O que tu consegues. Tu, o Utilizador, obténs um monte de coisas "gratuitas". Podes, por exemplo, colocar ao nosso motor de busca tantas perguntas quantas queiras e nós damos-te as respostas. Também permitimos que consultes os nossos mapas quando precises de indicações, bem como te deixamos ver vídeos e utilizar o nosso serviço de correio electrónico sem qualquer custo. Estás a ver? Imensas coisas grátis.

O que nós conseguimos

Em troca de tudo o que damos, reservamo-nos o direito de ficar com um registo de tudo o que faças durante as 24 horas do dia. As consultas que faças, as compras que efectues, os sites que visites, os vídeos que reproduzas, os locais a que vais, as pessoas com quem comunicas, os mails que escreves…tudo.

As letras pequenas

Reservamo-nos o direito de guardar essa dita informação e de a utilizarmos para te darmos a conhecer empresas cujos produtos consideramos que podem interessar-te, pelo que é muito provável que comeces a receber publicidade dessas empresas. Também podemos partilhar a tua informação pessoal com, bem… com as agências de inteligência, já que, graças à sua colaboração, é que podemos bombardear-te com toda esta publicidade.

Pode ser que, num primeiro momento, não soe assim tão ameaçador. Ao fim e ao cabo, não é mais que um intercâmbio de informação. A Google oferece-te informação grátis e tu, em troca, cedes-lhes os teus dados pessoais. Mas, pensa bem. Ao início pode parecer um acordo justo, mas o que é que vai acontecer à medida que passem os meses, os anos? Tu continuarás a receber essa informação gratuita diariamente a conta-gotas e, entretanto, a Google acumulou uma gigantesca base de dados sobre ti e essa informação tem um valor.

Publicidade

Actualmente, a Google factura uma ninharia de 80 mil milhões de dólares por ano a vender informação pessoal dos seus utilizadores a empresas. O Facebook, por exemplo, facturou cerca de 18 mil milhões em 2015.

Já estás a ver qual é o problema? Com o tempo, o acordo deixou-te em desvantagem. A Google começou por ter uma minúscula porção de informação sobre ti e, no final, acabou por saber tudo. E tu, entretanto, continuas com a tua informação a conta-gotas. Esta nova situação gerou uma relação de poder muitíssimo desequilibrada a favor do gigante tecnológico. A informação é poder e eles têm muito poder sobre ti, mas tu não tens qualquer poder sobre eles.

Se quiser, a Google pode utilizar o que sabe sobre ti para envergonhar-te, coagir-te, ou arruinar-te a vida. Ou para influenciar-te. Poderia dar-te informação tendenciosa para obter algum benefício, ou alcançar um determinado objectivo e tu nem te darias conta. A investigação que levei a cabo em laboratório e na Internet, demonstrou que, ao manipular a informação que te oferece, a Google pode influenciar as decisões que tomas em respeito às coisas mais insignificantes, como para onde viajar, ou o que comprar, mas também às mais importantes, como em quem votar, ou em que acreditar.

As condições gerais garantem à Google um controlo cada vez maior sobre o que fazes, pensas e dizes. Como salientou Noam Chomsky uma vez em relação às negociações à porta fechada, "a população geral não sabe o que se está a passar e nem sequer sabe que não sabe". Isto é tudo o que aceitámos sem saber: fazer parte de um mundo em que o poder está cada vez mais concentrado nas mãos de meia dúzia de executivos de grandes corporações e não só a Google, já que cada vez são mais as multinacionais que se fazem valer dos mesmos métodos.

Publicidade

Os ilusionistas dependem da distração para realizarem os seus truques; a Google também, só que o rei dos motores de busca executou um truque tão impressionante que faz com que todos os outros pareçam amadores. Fez-nos acreditar a todos que o seu pacote de serviços existe exclusivamente para nosso conforto e desfrute, desviando a nossa atenção do verdadeiro propósito: que acabemos por ceder até o último resquício das nossas vidas, permitindo-lhes explorar essa informação para poderem exercer uma maior influência sobre nós e ameaçando a nossa liberdade, como nenhuma outra entidade o fez até à data.

É preciso começar de novo. Temos que dar visibilidade absoluta ao modelo de negócio de prestidigitação da Google e proibi-lo por lei. A aparente missão da Google de organizar a informação do Mundo, deve converter-se num projecto de carácter público e não num negócio nas mãos de uma empresa exclusivamente com ganas de lucro. Espero que um dia as pessoas se lembrem com estranheza de que houve um tempo em que toda a informação mundial estava na posse de uma corporação voraz.

As bibliotecas públicas não têm programas secretos, não seguem o rasto aos hábitos pessoais dos utilizadores, nem vendem a sua informação a quem dê mais. Muito menos pressionam as autoridades, nem tentam influenciar a opinião pública. Há uns anos, um artigo publicado no The Nation sugeria a implementação de um motor de busca público e, actualmente, a organização Common Search está a estudar a forma de o colocar em prática. É importante dar a estas iniciativas o valor que merecem.

O motor de busca da Google é um índice comentado dos sítios da web que existem no Mundo. Esses sítios pertencem a todo o Mundo, não à Google, pelo que também esse índice deve ser de domínio público, bem como outros serviços "gratuitos" que nos oferece, tal como muitas outras empresas. Mas não nos equivoquemos: esses serviços nunca foram gratuitos, porque para os utilizarmos estamos a pagar com a nossa liberdade.


Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.