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Vice Blog

Fora da Prisão, Mas Não em Liberdade

A vida em uma "casa de passagem" dos EUA, um lance que deveria ajudar os detentos na transição de volta a suas comunidades.

Depois de anos de sentenças obrigatórias por porte de drogas e outras políticas de tolerância zero, os EUA agora aprisionam mais pessoas per capita do que qualquer outro país, fora, talvez, a Coreia do Norte (onde as estatísticas não são confiáveis) e as Seicheles. Essas políticas de sentenciação estão começando a mudar. Mas a nova ênfase em liberdade condicional e em alternativas ao encarceramento significam mais negócios para companhias privadas e grupos sem fins lucrativos, que comandam centros de reentrada residencial, ou "casas de passagem", que deveriam ajudar os detentos na transição de volta a suas comunidades. Esta é uma história sobre a vida numa casa de passagem.

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História publicada em parceria com The Marshall Project.

Saio pelas portas da frente da prisão às 10 da manhã. Pela primeira vez, estou em pé no "pedaço". Minha mãe e minha irmã correm para mim com lágrimas nos olhos. Nos abraçamos e beijamos, enquanto meu pai tira fotos com uma câmera digital. Era o fim do barulho dos portões de ferro se fechando, dos guardas gritando nos alto-falantes. Uma enorme bandeira americana balança acima de nós, e folhas com cor de ferrugem flutuam pelo ar frio de outono. Autumn, da raiz etrusca autu e do latim auctumnus, que significa a passagem da estação. Seis anos numa caixa com apenas um dicionário como amigo: minha mente trabalha diferentemente agora.

É difícil me lembrar de mim antes de tudo isso: um moleque universitário de 19 anos, que achou uma boa ideia se juntar a alguns colegas para roubar uma primeira edição de A Origem das Espécies, além de outros livros e manuscritos raros, da biblioteca da universidade. Depois de um tempo na prisão, você começa a esquecer até o motivo de estar ali. Quem você era, o que você queria – a punição constante mói tudo isso. Por anos, tudo que pude ver do "mundo real", como os detentos chamam, era uma pequena parte do pavimento além da cerca de arame farpado, onde eu assistia aos visitantes passarem. Eu chamava isso de o "pedaço".

Antes de chegarmos ao carro, uma funcionária da prisão nos alcança e exige ver a câmera do meu pai. Visitantes da Instituição Correcional Federal Ashland, uma prisão de segurança mínima no nordeste do Kentucky, não têm permissão para tirar fotos na propriedade da prisão. "Questão de segurança", ela explica, deletando fotos do meu rosto magro e pálido.

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Assim que o carro começa a andar, me sinto enjoado. Não consigo lembrar a última vez em que fui transportado por algo além dos meus próprios pés. Minha mãe me passa um saco de papel marrom cheirando a bacon e salsicha. Pelo tamanho, ela deve ter comprado quase todo o cardápio de uma lanchonete local. Quando ela me perguntou, uma semana atrás, o que eu queria como primeira refeição, respondi apenas "café da manhã". Foi um pensamento empolgante na hora, mas agora não consigo dar nem uma mordida. Desço a janela, fecho os olhos e respiro fundo. Meu pai se vira e pergunta como é estar livre. Tudo que consigo pensar é em vomitar.

Estacionamos numa área de descanso na estrada, e corro ao banheiro dos homens. Em vez de vomitar, congelo na frente do espelho. É a primeira vez que me vejo fora da prisão. Minhas roupas não parecem certas, algo está fora do lugar. Ouço a descarga, portas abrem e fecham. Sinto-me paralisado, como uma pedra no fundo de um rio. Homens entram e saem, me olhando de um jeito estranho. Um freak – do inglês médio freke, significando "criatura ousada".

Normalmente, meu pai é um motorista lento, mas, hoje, ele está acelerando. A viagem da prisão federal, no leste de Kentucky, até minha nova casa de passagem, em Louisville, deve levar umas três horas, e a Bureau de Prisões tinha me dado exatamente três horas e 15 minutos. Se eu me atrasar mais de um minuto, posso ser declarado um fugitivo e os US Marshals vão cuidar do meu retorno. Alguns detentos evitam o estresse pegando um ônibus, ou pelo menos dizendo isso. A Bureau de Prisões te dá mais tempo para a viagem de ônibus; então, se você arranjar alguém para te buscar secretamente na estação, você pode acabar com dois ou três dias de liberdade se estiver indo a outro Estado. Quando eu perguntava aos colegas detentos o que eles fariam com esse tempo extra, a resposta era geralmente a mesma: "Cerveja, pizza e boceta", não necessariamente nessa ordem.

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Chego à Casa Dismas, em Old Louisville, com apenas um minuto restando. O prédio é uma igreja neogótica reformada, com torres de tijolos vermelhos e janelas lancetas. Todas as portas estão trancadas, mas, depois de acenar com os braços na frente de uma câmera de segurança por alguns minutos, eles me deixam entrar. Um homem afro-americano magro de meia-idade, de camisa abotoada até em cima, está sentado atrás de uma janela de acrílico na recepção. Ele me pergunta o que quero, eu digo que estou me apresentando da prisão federal para soltura antecipada supervisionada. Não estou, ele me informa: não há novas chegadas agendadas. Depois de muitas explicações, cliques de mouse no computador e uma ligação, ele finalmente concorda em me admitir.

Empurro a porta para me despedir da minha família na calçada, mas ela já está trancada. O processo de admissão já começou, diz o homem da recepção; então, não posso ir a lugar nenhum sem uma permissão formal. Enquanto explica minha situação, ele passa um detector de metal por cima da minha virilha e vai rapidamente para o teste do bafômetro. Sou escoltado até uma sala no porão para urinar num copo plástico com o cara da recepção observando. Enquanto espero pelo resultado do teste de drogas, outro funcionário, um monitor de residente, fuça na minha mochila atrás de algum contrabando.

Os monitores são como os carcereiros das casas de passagem. Eles mantêm os residentes na linha e comandam as operações diárias. Um deles, um homem com formato de pera e quase a minha idade, 20 e poucos anos, me leva para conhecer o local. Ele fica suado só de andar comigo pela casa, que tem uma cafeteria, uma sala de ginástica, televisões separadas para homens e mulheres e fileiras de telefones públicos. Outro residente me mede quando passo. Os mandachuvas são fáceis de reconhecer, especialmente num ambiente onde os homens podem se mostrar na frente das mulheres. Misto ou não, isso parece meu primeiro dia na prisão.

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"Tenho permissão para tomar ar fresco, em apenas alguns momentos do dia, numa pequena área cercada adjacente à casa de passagem. Posso ver, ouvir e quase cheirar a cidade – ela está tão perto –, mas não a posso tocar."

Passo o resto do dia preenchendo formulários e assistindo a vídeos sobre o Dismas Charities, o grupo sem fins lucrativos que comanda a casa de passagem. Batizado em homenagem a São Dimas, o ladrão penitente que foi crucificado ao lado de Jesus, o local opera 30 centros de reentrada residenciais em 13 Estados. Um vídeo garante que o Dismas promove reabilitação através de "práticas comprovadas", capacitando infratores com "educação, emprego e apoio". Seu lema é "Curando o Espírito Humano".

Dias passam. Fico sentado esperando alguém me mandar fazer alguma coisa, mas eles só falam que tenho de continuar esperando. Tenho permissão para tomar um pouco de ar fresco, em apenas alguns momentos do dia, numa pequena área cercada adjacente à casa de passagem. Posso ver, ouvir e quase cheirar a cidade – ela está tão perto –, mas não a posso tocar. Na maioria dos dias, acabo fumando cigarros e assistindo a reprises de How I Met Your Mother com meus colegas de quarto, dois traficantes que acabaram de sair de uma prisão estadual.

Tento ler Tudo Se Ilumina, de Jonathan Safran Foer, mas não consigo me concentrar. Minha mente acelera, não consigo ficar parado. Tudo que consigo pensar é em sair. O anseio era muito mais fácil de suprimir na prisão, quando o lado de fora estava mais distante. Lá, tudo se apagava: amigos, família, amor. Lembro-me da manhã que acordei sentindo que tinha perdido meus sonhos. Minha imaginação não conseguia mais acessar meu passado e só trabalhava com imagens da minha vida estreita e escura na prisão. Prometi a mim mesmo que, quando saísse, apreciaria a liberdade – apreciaria mesmo a liberdade. Mas, na casa de passagem, preso entre isso e o buraco, eu ainda sonhava com a prisão. Limbo – do latim limbus, a região que faz fronteira com o inferno.

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Alguns dos colegas residentes matam o tempo com drogas, e há muitas para se escolher na casa de passagem. K2, também conhecida como spice, é popular, porque pode ser comprada em lojas de conveniência e supostamente não é detectada em testes de surpresa. Uma noite, um dos meus colegas pergunta se quero experimentar. É como maconha sintética, ele diz – só ingredientes naturais. Por tédio e curiosidade, dou uma chance, fumando o baseado inteiro sozinho no banheiro. Quando volto, vejo pânico nos olhos dele. Ele explica que eu só devia ter dado alguns pegas.

Nas dez horas seguintes, alucino da pior maneira. Vozes abafadas gritam por cima dos alto-falantes, como se alguém estivesse chamando meu nome. Imagino que é meu conselheiro finalmente me chamando em seu escritório. Pergunto aos outros residentes se eles ouviram meu nome ser chamado, mas ninguém mais consegue decifrar os pronunciamentos.

Pelo resto da noite, me escondo no meu quarto, anotando pensamentos freneticamente num caderno para me acalmar.

Acordo de um sonho sobre a prisão – a inquietação, o barulho. Do meu lado, na cama, está uma folha de caderno com a minha letra. A anotação diz "Não deixe a escuridão te comer", o que acho que ouvi numa música no rádio. Homens estão gritando alguma coisa do lado de fora da minha porta. Em certas manhãs, pulo da cama desorientado, com o coração disparado, achando que perdi a contagem de cabeças do bloco de celas. Já estive no buraco antes e não quero voltar. Mas vejo meus colegas de quarto deitados em suas camas, olhando para mim como se eu fosse louco.

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Depois do café da manhã padrão (ovos borrachudos e mingau), vou até o banheiro dos homens com uma garrafa de desinfetante, umas luvas de borracha, escovas e um balde. A casa não "abre" até que todos os residentes completem suas tarefas diárias. Novatos pegam o banheiro, o mesmo que na prisão. Começo pelas privadas, porque os caras sempre espirram quando mijam – nunca falha – e, depois, vou aos chuveiros. Todo mundo faz suas tarefas o mais rápido possível, mas eu levo o tempo necessário. Acho que, se vou ter de usar o banheiro também, que ele esteja realmente limpo.

Mais de uma semana se passa até eu finalmente conhecer minha conselheira. Ela me dá permissão para sair da casa toda manhã dos dias de semana com o único propósito de arrumar um emprego. Tenho de produzir uma lista de cinco empregadores potenciais que vou visitar, e a lista tem de ser aprovada com um dia de antecedência. Os residentes vasculham as Páginas Amarelas atrás de qualquer negócio que pareça aceitável, mas o truque é achar locais próximos: só temos quatro horas e ainda temos de usar transporte público. O Dismas exige que eu informe qualquer empregador potencial do meu status de ex-condenado; além disso, o gerente do lugar onde eu for me inscrever tem de assinar um formulário detalhado provando que realmente preenchi uma inscrição. Se eu retornar a casa no final do dia sem pelo menos cinco assinaturas de gerentes, estou violando os termos da casa de passagem.

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"Quase todo dia, ouço os monitores ameaçando mandar os residentes de volta à prisão se não fizerem o que eles mandam. E alguns são realmente mandados de volta."

Muitos residentes têm medo de voltar sem as assinaturas; então, recorrem a falsificações. Mas os conselheiros verificam as entradas; logo, os residentes frequentemente são pegos e disciplinados. Quando conseguir um emprego, a casa de passagem vai ficar com 25% do meu salário bruto. Isso se chama "pagar pela sua cama". A Bureau de Prisões designou que eu devo ficar no centro de reentrada por seis meses. Se eu cumprir todos os requisitos, o gerente correcional comunitário (o diretor da casa de passagem) pode me garantir soltura antecipada e me colocar em prisão domiciliar sob a supervisão de um oficial de condicional federal. Mas, mesmo assim, ainda vou ter de pagar pela minha cama pelo resto dos seis meses. Então, em teoria, vários residentes acabam pagando pela mesma cama no Dismas.

À noite, eu me exercito na sala de ginástica e procuro trabalhos na internet. Os computadores da casa são controlados por um software de filtro, que só acessa mecanismos de busca de empregos. Numa lista, encontro uma postagem do Dismas, uma vaga em período integral como monitor de residente na minha casa de passagem. "Um emprego significativo, que tem um impacto positivo na comunidade", frisa o anúncio, "ajudando indivíduos a se recuperar para que eles possam ser novamente cidadãos produtivos e responsáveis". De acordo com a descrição, o monitor deve garantir a prestação de contas dos residentes, aplicando todas as regras, responsabilidades e restrições. O trabalho paga US$ 9 a hora. Não é preciso experiência, só um diploma do colegial ou supletivo.

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Para mim, está claro que os monitores precisam de mais treinamento para lidar com os tipos que vivem aqui. Algum tempo atrás, um residente recém-saído de uma prisão federal esfaqueou uma mulher até a morte com um picador de gelo no banheiro do Dismas. Mesmo para os mais estáveis, é um período precário. Quase todo dia, ouço os monitores ameaçando mandar os residentes de volta à prisão se não fizerem o que eles mandam. E alguns são realmente mandados de volta.

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Em uma noite, uma comoção tem início na entrada da casa e todo mundo corre até lá para ver o que está acontecendo. Um dos residentes mais antigos, um homem grandalhão, com membros de tronco de árvore e bolsas escuras embaixo dos olhos, está gritando "Vou queimar este lugar!". O homem, que é mentalmente instável, arremessa a prancheta de assinaturas na parede.

"Você quer voltar à prisão?", o monitor em formato de ovo grita por trás da janela de acrílico da recepção.

"Vocês não me conhecem!", o homem continua. "Vocês não sabem onde eu estive!" Ele avança pelo corredor, chutando portas.

O monitor de residente ordena pelo alto-falante que todos voltem a seus quartos. Um colega contou que estava perto da cena e pôde ouvir o monitor acusar o residente de ficar com os 25% de seu pagamento da semana. O homem trabalha no Dizzy Whizz, uma lanchonete fast food a alguns quarteirões da casa. Ele volta do trabalho toda noite num uniforme sujo de óleo, cheirando a batata frita. Ele não fala muito, só trabalha o dia inteiro e recebe a visita da família nos finais de semana. Ele insistiu que já tinha pagado sua parte, mas o monitor disse que não e que seus privilégios de visita estavam revogados. Ele tinha uma visita agendada para a manhã seguinte.

Ficamos deitados em nossas camas pelo resto da noite ouvindo o homem gritar e socar as paredes na área comum. O monitor residente, ainda atrás da janela de acrílico, fala com ele pelos alto-falantes, mandando-o voltar ao seu quarto.

A polícia finalmente chega, e a casa fica em silêncio.

Na prisão, outros detentos tinham me falado que as casas de passagem eram a pior parte. Achei difícil de acreditar, mas quase todo reincidente dizia isso. Alguns caras arranjavam brigas e perdiam o direito de sair sob condicional de propósito – só para evitar as casas de passagem. Alguns simplesmente se recusavam a ir e cumpriam seus meses finais no buraco. Agora, começo a entender.

Essa história foi publicada em parceria com The Marshall Project, uma organização de notícias sem fins lucrativos que cobre o sistema de justiça criminal norte-americano. Assine a newsletter ou siga o The Marshall Project no Facebook e Twitter.

Tradução: Marina Schnoor