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Música

Balada dos Loucos

A volta da lenda do rock Ave Sangria num hospício centenário em Recife.
Interna do Hospital Psiquiátrico Tamarineira durante o show. Foto por André Vicentini.

Texto por Natasha Felizi
Fotos por André Vicentini

Interno do Hospital Psiquiátrico Tamarineira

Chegamos em Recife cheios de fogo no rabo por causa de um festival de rock matinal onde ia rolar um show do Ave Sangria, banda pernambucana de rock rural psicodélico que se envolveu em polêmicas gays durante a fase mais escrota da ditadura militar. Sabíamos que goró ou droga seriam muito malvistos, mas diferentemente de quando o Ave Sangria implodiu, o caso não era repressão. É que o Rock na Tamarineira rola dentro de um hospital psiquiátrico em atividade, então o páreo de loucura seria hors concurs. O festival surgiu há nove anos, por causa da malfadada trajetória dos The Playboys na cena local. Formada por skatistas de Boa Viagem, bairro boy da cidade, a banda vestiu a camisa da classe dominante pra cutucar a cena punk. Há dez anos vivendo de mesada, eles convocam a organização de mauricinhos e patricinhas num movimento de classe pela expansão do mercado e contra a opressão exercida pelos pobres. Não é de estranhar que tenham ficado sem amigos. O pessoal da Tamarineira os aceitou. Seria fácil ignorar que no Ulysses Pernambucano funciona um dos hospícios mais importantes do Brasil, não fossem por uns braços se esticando pelas grades para pedir batom, dinheiro ou arremessar frutas em quem espera ônibus. Dos vários séculos de existência, ficaram as lembranças mais horrendas: camisas de força, grades de ferro, castigos, eletrochoque – coisas de quando manicômios cuidavam para que os loucos não perturbassem a paz da sociedade. Para José Lins do Rêgo quando menino, a Tamarineira era um inferno. Mas isso foi no século XIX. Depois da psiquiatria politicamente engajada de Ulysses Pernambucano e seu primo Gilberto Freyre no começo do século XX e de tudo que veio com a luta antimanicomial, a situação dos internos é bem digna. As celas de isolamento deram lugar a ateliês de terapia ocupacional e, apesar de internos, os pacientes voltam pra casa sempre que possível. Para Luis Carlos, um dos atuais diretores, a administração continua sendo uma "bronca da pesada". Única emergência psiquiátrica do estado, passam por lá todos os dias mais pacientes do que eles têm condições de abrigar - são 160 leitos mais 25 da emergência. Entre outras tretas, é comum o abandono das famílias após alguma internação de emergência. É real: alguns deles estão separados da mendicância apenas pelo hospital. Mas receber o público para um festival de rock mostra que os esforços vão no sentido contrário ao do isolamento. Se não dá para garantir que os internos não sejam excluídos do acesso à vida civil, que venham os civis curtir um som.

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Interno do Hospital Psiquiátrico Tamarineira

As atividades foram abertas pelos The Playboys. A banda cantar frustrações acadêmicas que só dizem respeito àqueles que têm acesso ao ensino superior não afastava o público. Pelo contrário, internas da plateia disputavam o acesso ao pescoço do vocalista, se dependurando. Outras, menos dadas à competição, se contentavam em sensualizar nos postes de sustentação do palco, rebolando e enchendo-os de beijos. As reivindicações das letras dos Playboys pela ampliação dos shopping centers tinham um eco ali. Remetiam à recente disputa entre os órgãos públicos e privados pela transformação do parque da Tamarineira em shopping center – uma onda de péssimo gosto de apropriações de prédios antigos do Recife por empreendimentos. O clima era de euforia e a polêmica ficou de lado. Catarina de Jah assumiu a balada depois deles. No segundo dia, a proposta era uma balada punk, com shows do KEP's e do Matalanamão. A primeira, formada de guarulhenses que rememoram os tempos em que estiveram internados no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial. João Neto, dos Playboys, contou que estava pela rua em São Paulo, na fila de um show, quando conheceu a turminha e ficou sabendo da história. Como a experiência com internação era "a cara" do festival, eles despencaram lá sem público próprio, sem muita grana e, ainda bem, livres das drogas. Já o Matalanamão prometia uma galera de responsa. Como os caras vêm do morro Alto Zé do Pinho, pico emblemático da improvável cena de punk/rap de Pernambuco que também produziu os Devotos do Ódio e o Faces do Subúrbio, a expectativa era que o pessoal de lá descesse em peso, fazendo ali a pororoca do século entre morro e hospício. Mas isso não aconteceu. Mas também era de se imaginar que os caras do Matalanamão, que celebram no nome da banda o ato da punheta, estão bem acostumados, e na real até curtem a ideia de se virar sozinhos. Denise, uma interna de duvidosos 17 anos, até tentou sincronizar sua dança malemolente com a melodia punk. Como havia cadeiras, parte da plateia curtiu o show sentada. Mesmo sem muito ibope entre a galera residente, todos os interessados se divertiram muito com "Os Peitinhos" e saíram tão satisfeitos como se a punheta tivesse sido uma trepada bem louca.

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O que a maioria das pessoas queria mesmo era ver o destaque do ano, o Ave Sangria. Depois de dois dias sem muito movimento, a expectativa de ver o hospício lotado já era. Mas lotou. Entre os doidos e a molecada nascida depois dos anos 80, a impressão era de que todo mundo esperava pela ressurreição da banda desde a década de 70. É que, apesar de toda a maluquice do rock no Brasil da época, não era comum para o provincianismo de Pernambuco uma banda de homens heterossexuais subir no palco de batom pra implorar o amor de um certo "Seu Waldyr". Vale lembrar que, antes de adotar o nome Ave Sangria – por uma trip do vocalista com uma cigana não-sei-de-onde –, a banda de rockrural tinha o nome Tamarineira Village e, evidentemente, relações astrais com o hospício. Na verdade, o nome se devia ao bairro, onde vivia a maioria dos integrantes da banda. Mas a óbvia referência ao hospício também colocava a loucura como única possibilidade diante do bipartidarismo oficial da ditadura. O primeiro disco da banda foi gravado em 1974, ano em que a oposição popular ao regime militar ficou explícita com o desempenho do partido de oposição (MDB) nas eleições proporcionais. Era foda gravar um disco em Pernambuco na época. Além da caretice, os equipamentos e estúdios eram escassos. Ao mesmo tempo, o sucesso dos Secos e Molhados deixou todo mundo de butuca para as possibilidades comerciais do rock, então era a grande chance do Ave Sangria conseguir sua brecha com as gravadoras do Sudeste. Mas, contra a iminente "liberalização" política em 74, os órgãos de repressão policial-militar resolveram escrotizar ainda mais. Foi assim que, prestes a fechar com a Continental, o Ave Sangria rodou. Um jornalista da época tinha feito uma campanha dizendo que o disco era um atentado à moral da família pernambucana e, reza a lenda, a mulher de um general exigiu que ele tomasse uma providência. Pouco mais de um mês depois de seu lançamento, o disco homônimo da banda foi retirado das lojas e das rádios pela Polícia Federal. Então a banda acabou.

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E mesmo com shows anunciados sob o nome Ave Sangria, tanto a gente quanto eles sabíamos que não havia revival possível da banda – a essa altura, a história do grupo com a loucura tinha passado da metáfora. O baterista Israel Semente tinha se suicidado e dois outros integrantes tinham literalmente enlouquecido. Perneta, a banda se apresentaria apenas com o vocalista Marco Polo Guimarães e Almir de Oliveira, da formação original. A história é mais ou menos a seguinte: depois da dissolução da banda, Agrício Noia, Paulo Rafael, Ivson Wanderley e Israel Semente, o baterista, foram contratados por Alceu Valença. Há rumores de que Alceu, vindo de uma família mais abastada, teria literalmente comprado o estilo do rock rural do Ave e o incorporado às suas músicas. Mas, até aí, boato é boato e o fato era que os últimos shows do grupo eram anunciados como Ave Sangria, o que mexia tanto com os brios saudosos do público quanto com a ira de Ivson Wanderley, o primeiro (e genial) guitarrista brasileiro a se apresentar no Festival de Montreux. O que se diz é que, justamente depois disso, ele pirou. Hoje é comum ouvir relatos sobre Ivson enquanto lenda urbana do Recife – ele perambula sozinho pelas ruas e é bastante afeito a confusões em porta de boate. Numa apresentação anterior, Ivson Wanderley apareceu furioso, reclamando que "Ave Sangria era ele, não aquilo". Os inteirados do episódio temiam que ele se repetisse no hospício, o que seria confusão em dobro. Mas Ivinho só deu as caras no primeiro dia, avançando poucos metros pra dentro do hospício e dando meia volta. Ele já tinha vivido a experiência do internamento (por alcoolismo) e provavelmente as lembranças que tinha de hospitais psiquiátricos não compensavam o rolê. Nos contentamos com a presença inusitada de um policial, uma freira e um ex-jogador do Sport, também ex-interno da Tamarineira que, reabilitado por "Deus e pelo rock", fazia ali as vezes de barman vendendo refrigerante. A essa altura, o festival estava prestes a acabar. Foram três dias de sol na cabeça e uma orquestra feminina de frevo abusava das emoções dos internos. Marco Polo estava emocionado. Almir, que não participaria do show por ter passado por uma cirurgia do coração no mesmo mês, estava lá sentado com seu violão. Só levantou para tocar e cantar "Dois Navegantes". Passada essa solenidade, o palco foi massivamente invadido pelo público. Ave Sangria era cult – uma banda que existiu por pouco tempo, participou de poucos festivais e inspira aquele tipo de nostalgia de um passado glorioso que "quase" tiveram, não fosse a injustiça de seu tempo. Esse talvez fosse o motivo, junto com o buraco de tempo que separava a juventude dos caras do público, para uma deferência da plateia civil, que se mantinha como audiência separada dos artistas. Mas não para os loucos, que estavam em casa e na verdade não davam a mínima para esse aspecto hipster do revival. O que movia essa parte do público era a música pernambucana – fosse o frevo que abriu o show, o baião de Luiz Gonzaga ou o rock rural do Ave. A interna Francisca subiu e mandou "Lamento Cego", de Jackson do Pandeiro. Reconhecendo a canção, a banda acompanhou. O público, mais ou menos. Era meio difícil reagir a uma velha louca interrompendo o show de rock para puxar um forró triste. Para dizer a real, era desconcertante. A atitude inaugurou uma série de intervenções que também teve uma ousada versão de "Deixa a Vida me Levar" que, dado o nível de delírio daquela manhã de 40 graus de temperatura, a plateia curtiu com igual entusiasmo. Foi o suficiente para que o palco fosse completamente tomado. Marco Polo recuperou o microfone, mas não conseguiu se livrar das três pacientes que o assediavam, cada uma a sua maneira – com flores ou com o dedo médio em riste. Mais a vontade com esse tipo de interação, os Playboys também voltaram ao palco para dançar e aliviar o vocalista de todo aquele amor das fãs. A esse ponto, quem viesse de fora não saberia dizer o que era banda, visitantes de fora ou internos do hospital. Daí tudo acabou.