As Olimpíadas precisam de um vilão – e a carapuça serve direitinho na Rússia

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VICE Sports

As Olimpíadas precisam de um vilão – e a carapuça serve direitinho na Rússia

Em grande parte da História, os Jogos Olímpicos foram "guerras sem tiros". Agora, com o escândalo de doping, temos enfim uma nova narrativa de bandido e mocinhos.

Foto: EPA

"Quem devemos odiar nos próximos Jogos Olímpicos?" Foi a pergunta que o jornalista do New York Times Richard Sandomir fez em 1991, quando a União Soviética ruiu. Após descartar o Iraque, a Líbia e Cuba como adversários ínfimos, Sandomir deu de ombros e concluiu que a CBS, rede transmissora do evento na época, tentaria uma nova abordagem: dessa vez, seriam bonzinhos. Narrativas de superação ilustram as Olimpíadas desde então. O repórter político David Von Drehle tirou sarro dessas historinhas água-com-açúcar, na revista do Washington Post, no ano 2000: "Uma doença quase fatal é interessante, ou um parente morto. Uma fazenda de família falida, um membro mutilado, algum distúrbio de aprendizagem ou uma contenda qualquer com um técnico. Na falta de um caso do gênero, uma avó dedicada, um pai cego ou uma crise de identidade sexual dão boas cenas de glória pessoal." Tudo isso compõe o complexo olímpico industrial que Von Drehle descreveu como "orgia comercial". Dezesseis anos depois, nada mudou. A enxurrada de bom mocismo dissimulado só se intensificou. Há meses, minha caixa de entrada vive inundada de conversinhas sobre esperanças olímpicas, histórias sobre dificuldades, sobre vencer probabilidades e correr atrás de sonhos. As trajetórias dos atletas convergem numa amálgama de arcos narrativos idênticos que geralmente terminam com um pedido para anunciar um produto. Finalmente, estamos prestes a reverter essa espiral de bobagens. O escândalo de doping na Rússia nos presenteou, mais uma vez, com um vilão potente para secarmos e combatermos. Só que, agora, a batalha não é comunismo versus capitalismo; no lugar, temos jogo limpo versus jogo sujo. O Comitê Olímpico Internacional decidiu, na semana passada, que os russos do atletismo não poderão competir no Rio. Outras modalidades também estão ameaçadas de não poderem jogar no evento. Uma pena: o COI não só deveria deixar os russos jogarem, como deveria vê-los como um presente divino. No mínimo, a participação da Rússia lembraria as Olimpíadas de sua verdadeira vocação. Em grande parte da História, os Jogos Olímpicos foram "guerras sem tiros", conforme descreve a célebre frase de George Orwell. Von Drehle defende com convicção que o fundador das Olimpíadas modernas, Pierre de Coubertin, foi inspirado pela derrota da França na Guerra Franco-Prussiana. O evento era, basicamente, uma prova de superioridade nacional realizada em um estádio, em vez de campo de batalha. Evidentemente, havia intersecções entre as arenas. Em 1928, o diretor do Comitê Olímpico dos Estados Unidos era o general Douglas MacArthur, que depois comandou a frente do Pacífico na Segunda Guerra Mundial.

O Estádio Olímpico de Berlim, 1936. Foto: Bundesarchiv, B 145 Bild-P017073 / Frankl, A. / CC-BY-SA 3.0

As Olimpíadas de 1936, em Berlim, serviram de ferramenta para a Alemanha Nazista se gabar da suposta superioridade genética – e para o restante do mundo mostrar que a nação estava equivocada. Para muitos americanos, era a chance de reagir à narrativa nazista em um momento em que uma guerra generalizada parecia impossível. Depois da Segunda Guerra Mundial, as Olimpíadas serviram de fachada para a Guerra Fria, um embate de estilos de vida, para o mundo decidir qual funcionava melhor. Mike Eruzione — jogador que marcou o gol da vitória contra os sovietes na partida de hóquei conhecida como "Milagre no Gelo", momento olímpico decisivo para os Estados Unidos — descreveu o evento como "uma forma de descobrir qual é a melhor nação". Não "a melhor nação de todas", mas "a melhor das duas". Havia apenas duas opções em jogo. Os nervos estavam à flor da pele. Antes dos jogos em Helsinki, em 1952, Arthur Daley escreveu no New York Times que os americanos precisavam se dedicar mais às Olimpíadas do que os sovietes. "Haverá 71 nações nas Olimpíadas de Helsinki", continuou Daley. "Os Estados Unidos bem que gostariam de vencer todas elas, mas a única que conta mesmo é a Rússia soviética. Precisamos silenciar a máquina de propaganda comunista. Nos esportes, para os companheiros vermelhos, agora é tudo ou nada. Vamos calar a boca deles!" O Comitê Olímpico dos Estados Unidos foi estabelecido pouco tempo depois, em 1961, especificamente para melhorar o desempenho americano contra os sovietes. Todo e qualquer acontecimento, na época, era um referendo acerca dos sistemas econômicos e políticos das duas nações. Toda medalha de ouro soviética era anunciada pela máquina russa de propaganda como "prova irrefutável da superioridade das culturas socialistas sobre a cultura decadente dos estados capitalistas", conforme declarava um típico exemplo. Os fãs compraram a briga. O principal exemplo disso, claro, é a transmissão posterior da partida Milagre no Gelo (que não passou ao vivo), com 34,2 milhões de espectadores, audiência impressionante para uma partida de hóquei em 1980. A cargo de comparação, a semifinal de 1992 entre os Estados Unidos e a Equipe Unificada (composta por 12 das 15 antigas repúblicas soviéticas) contou com 11,7 espectadores. Em geral, os índices de audiência das Olimpíadas nos Estados Unidos mantêm uma baixa constante desde a era soviética — a única exceção é Londres 2012, que surpreendeu geral, inclusive a própria NBC. (Vale notar que os números oficiais da rede televisiva podem confundir um pouco, pois tratam de um "total de espectadores" sem contar o aumento significativo de horas de transmissão nas últimas décadas.) Dois grandes fatores foram o rol de medalhas americanas conquistadas e um fuso horário favorável à cobertura durante o horário nobre; as redes sociais também exerceram um papel importante, indicando à NBC os eventos favoritos dos fãs em tempo real. Mas Londres é a exceção, não a regra. Desde o fim da Guerra Fria, a audiência olímpica tem sido sistematicamente mais baixa que o esperado.

Estádio Aquático Olímpico do Rio. Foto: Michael Madrid-USA TODAY Sports

Por mais que Jogos Olímpicos livres de chauvinismo sejam bem-vindos, muita gente acaba entediada. A NBC lançou uma campanha de marketing de 100 milhões de dólares este ano — 33% mais robusta que a de Londres — para nos lembrar de que as Olimpíadas importam. (E certamente importam para a NBC, que gastou 1,23 bilhão de dólares em direitos de transmissão com os jogos do Rio.) Os comerciais focam em personalidades individiuais. De novo, nas "histórias de superação". Mas os Jogos Olímpicos não precisam de histórias boazinhas. Precisam de personagens malvados, para torcermos contra. Fãs de esportes criam causos do nada, só para ter o que detestar; Cristiano Ronaldo, Tom Brady, Bill Belichick e LeBron James são os primeiros nomes que me vem à mente entre as diversas personalidades esportivas que odiamos só pela graça de odiar. O escândalo de doping é uma resposta para as nossas orações. Reacendeu aquela rivalidade ferrenha que chamou a atenção do mundo inteiro para as Olimpíadas modernas. Mais uma vez, os russos são vilões sob medida, agora com a mácula de um programa trapaceiro que envolve meio país. Banir os russos em qualquer instância desperdiça a oportunidade das Olimpíadas serem relevante de novo. A vã tentativa de manter os esportes honestos é um fracasso de proporções épicas, então talvez seja hora de abrir mão. Embora seja injusto para os atletas decentes jogar contra gatunos, o desequilíbrio competitivo não seria maior do que a desigualdade de recursos entre os países que investem milhões e milhões de dólares por ano e as pequenas nações com orçamento apertado. Também ignoraria, convenientemente, a realidade de que atletas sujos competem com esportistas virtuosos há décadas. Se não forem os russos, vai sobrar para outros atletas (talvez até americanos!). As Olimpíadas são uma indústria multibilionária, financiada por anunciantes e emissoras que visam obter lucros. Não é cínico admitir isso; é a realidade nua e crua. Passou da hora de as tratarmos pelo que são: um produto de entretenimento. Que tal abraçarmos a rixa entra jogo limpo e jogo sujo, ainda que seja uma simples narrativa? É como Van Drehle escreveu 16 anos atrás: "as pessoas querem uma boa briga, e não um abraço". Tradução: Stephanie Fernandes