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Música

Anarquia e Paz, em Litígio

Se você pegar algum livro vagabundo sobre a história do punk rock, provavelmente encontrará umas 90 páginas dedicadas às jaquetas do Joe Strummer, mas só duas frases sobre o Crass. Isso apesar de eles terem vendido milhões de discos, criado as bases do...

Fotos de arquivo: Cortesia de Gee Vaucher e Penny Rimbaud

Legendas elaboradas com a ajuda de Gee Vaucher

Pete Wright, Phil Free e Joy De Vivre curtem o sol em um protesto contra a guerra ao ar livre, cerca de 1980.

Se você pegar algum livro vagabundo sobre a história do punk rock, provavelmente encontrará umas 90 páginas dedicadas às jaquetas do Joe Strummer, mas só duas frases sobre o Crass. Isso apesar de eles terem vendido milhões de discos, criado sozinhos as bases do faça-você-mesmo do punk e carregarem a bandeira de seus princípios anarquistas e libertários radicais até hoje, mesmo chegando à metade dos 60 anos de idade. Muitos de vocês que estão lendo essa matéria vão reconhecer o logotipo deles e o fato de eles terem sido uma banda punk, mas poucos conhecem sua história real. Por ser inspiradora e tão “antimúsica” (no sentido de que foi uma revolta total contra a indústria musical da época), achamos que todos que tenham o mínimo interesse pelo punk devem ouvi-la. Então entrevistamos os membros fundadores Penny Rimbaud e Steve Ignorant para essa breve história do grupo e para conhecer suas opiniões sobre o tema dessa edição. Durante as conversas entre mim e Penny que antecederam essa entrevista, descobri que o impensável de fato aconteceu e que o Crass, o espírito mais antiautoritário, pró-anarquia da história da música punk, está à beira de procurar a justiça para pedir a intervenção de advogados e juízes numa briga enorme por causa de uns CDs remasterizados. Apesar de nossos esforços para incluir todos os lados da história aqui, dois dos antigos membros do Crass preferiram não dar entrevista. Pedimos ao Pete Wright que comentasse a polêmica envolvendo o relançamento desses discos, mas tudo que ele disse foi: “Acho que seria melhor, nesse momento, se mantivéssemos esse assunto entre os membros da banda”. Joy De Vivre nos disse: “Enquanto as conversas estão em andamento, prefiro discutir os relançamentos apenas com os diretamente envolvidos. Preciso de calma para pensar”. Nosso respeito para todos os membros do Crass. Mas, por hora, vamos tentar contar isso tudo. Primeiro, um pouco de história… Vice: O Crass e o EXIT—seu primeiro grupo—não eram bandas tradicionais. Eram meio anti-rock ’n’ roll e antimúsica.
Penny Rimbaud:EXIT era profundamente assim. Por isso acho que foi um bom lugar para começar. A Gee [Vaucher, integrante da banda responsável pela estética do Crass] e um amigo chamado John Loder estavam envolvidos e eram totalmente antimúsica, muito em cima do que estava acontecendo nos EUA com o free jazz e na Europa com a vanguarda musical, no sentido de ser antiformato. Até aquele momento era possível dizer que a música tinha um certo formato, da mesma maneira que até o cubismo e a arte tinham uma certa forma figurativa. Claro que tinha gente fazendo fora desse esquema, mas… Mas não muitas.
O EXIT era uma tentativa sincera de operação de guerrilha. Nós simplesmente aparecíamos nos lugares e tocávamos sem termos sido convidados. Certamente não tí-nhamos nenhuma ambição, nem queríamos nos vincular ao universo da música comercial. Quer dizer, é mais ou menos como aquela sensação que tenho quando pergunto a alguém “O que você faz?”, e a pessoa responde “Sou escritor profissional”. Ao dizer isso, a pessoa simplesmente exclui a possibilidade de ser escritora. Ela se contradiz. Você pode ser um escritor ou um profissional. Se você é profissional, tudo que você quer é ganhar dinheiro, não importa como. Não é necessariamente negativo, mas na minha opinião você poderia trabalhar em um banco, e ganharia mais dinheiro do que escrevendo artigos para oThe Guardian. Essa era a nossa atitude em relação à música. Claro que não ganhávamos nada porque na maioria das vezes não tínhamos nem sido convidados. Isso acabou se transformando emhappeningse performances artísticas, então não tinha uma linha divisória entre nosso lado banda e o nosso lado grupo de teatro, ou grupo circense, ou simplesmente de um grupo de pessoas antissociais de bobeira, fazendo nada. E fizemos isso ativamente durante uns três ou quatro anos e inevitavelmente acabamos envolvidos com pessoas que levavam essa postura a sério, elas estavam tentando mesmo fazer alguma coisa com isso, especialmente Harvey Matusow e o festival ICES de 1972, na Roundhouse. Isso trouxe à Inglaterra o maior conjunto de todos os tempos de artistas de vanguarda conhecidos. Acho que nunca mais teve um festival como aquele. Veio gente como John Cage e Charlotte Moorman, era para John e Yoko terem vindo também, mas não vieram. O que é, mais uma vez, uma contradição, porque como dá pra ter grandes nomes da vanguarda? De qualquer jeito, depois do show na Roundhouse nos desiludimos, porque parecia que aquilo fazia parte de uma escada, e a cena nos pareceu bastante competitiva. Éramos todos, eu achava, artistas trabalhando juntos por uma mesma causa, ou pela liberação das mentes, dos espíritos e de todo o universo do controle através do comércio. Não tem nada pior do que o controle pelo comércio. As pessoas são muito guiadas por isso. De certa forma, as ideologias políticas são algo do qual é possível se esquivar. Você pode lidar com isso. Mas não é possível enfrentar o comércio sem dar as costas a ele completamente. Então, seja como for, era assim que o EXIT funcionava, e acho que foi por volta de 1973 que a banda se desfez, com a experiência na Roundhouse como uma das razões principais. Eu só voltei a falar com o John Loder em 1977. O que vocês fizeram durante esse tempo?
Eu estava na Dial House [a casa de campo em Epping onde o Penny e a Gee vivem desde os anos 60 e onde todos os membros do Crass moraram enquanto a banda durou]. A Gee tinha ido morar em Nova York para trabalhar com arte, e eu investiguei o caso de um grande amigo meu, envolvido no festival de Stonehenge que eu acreditava ter sido assassinado por autoridades. Fiz isso sozi-nho, e me caguei de medo. Comecei a beber demais, e escrevia umas coisas raivosas, catárticas. Foi então que o Steve Ignorant apareceu na minha porta. Ele tinha estado em Bristol, tinha visto algum show do The Clash e queria montar uma banda. Ele sabia que eu tinha uma bateria. Ele era irmão de alguém da era hippie. Ele era bem jovem. Aí começamos uma banda formada só por nós dois. Steve Ignorant:Eu conheci o Penny depois que o meu irmão foi dormir uma noite na Dial House e acabou ficando duas semanas. Ele me levou até lá um dia. Foi em 1972 ou 73. Eu já conhecia o Pen há muito, muito tempo, mas foi só em 1977, quando voltei depois de trabalhar em Bristol, que fui morar com o Pen e formamos a banda.

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Essa é a van Sherpa azul com a qual o Crass fazia as suas turnês. Todo o dinheiro ganho nos shows era arrecadação de fundos e toda a grana que conseguiam ia para consertar a van, para comprar comida para a plateia e consertar a van de novo.

Como vocês ficaram amigos?
Acho que o que me atraiu, não apenas ao Pen mas também à casa, é que foi a primeira vez em que me trataram como adulto. A minha opinião, por mais ingênua que fosse, era sempre levada em conta. O Penny e seus amigos mais velhos conversavam sempre usando palavras de 20 sílabas, mas falavam comigo como iguais. Sempre gostei de escrever, desde a escola, e quando cheguei aqui comecei a escrever direito—prosa, não poesia. E eles sempre me encorajaram. Qualquer coisa que eu fizesse, eles diziam: “Vai fundo”. O Penny não era o hippie típico. Ele não usava faixas na cabeça, nem óculos no estilo do John Lennon ou batas. Ele tinha cabelo comprido, mas não acho que dava pra dizer que eram hippies. Eram mais uns caras fora do sistema. Acho que nem isso—eram só pessoas muito espertas, saudáveis e bonitas. Como você ficou sabendo da Dial House?
Acho que foi pelos amigos da escola de arte que o Pen e a Gee frequentaram, no boca a boca. O que sempre me impressionou é que lá não tinha gente bêbada ou drogada caída pelos cantos—isso nunca aconteceu. Era um lugar bem estruturado, bem administrado. Ninguém sentia que estava lá pra bagunçar, então todo mundo respeitava. Quando você começou a fazer música?
Deve ter sido por volta de 1973, uns três ou quatro anos antes. O que te influenciou?
Eu tinha visto o The Clash em Bristol, e decidi ali mesmo que ia largar o meu emprego, e larguei. O que você fazia na época?
Eu engessava braços e pernas na Bristol Royal Infirmary. Larguei aquilo e voltei para Dagenham, que é a minha cidade natal. Achei que talvez eu conseguisse convencer os meus colegas de futebol a pegarem umas guitarras, mas no tempo que fiquei fora eles tinham conseguido empregos fixos, se casado, e não curtiam punk. Fiquei sem saber o que fazer, então decidi visitar o pessoal lá na Dial House. O Pen estava morando lá sozinho e estava datilografandoReality Asylum—não a música, mas o livreto. Eu falei que estava pensando em montar uma banda e ele disse que seria o baterista. Acho que naquela época ele tocava com uma banda que soava como um monte de latas caindo pela escada. Começamos dali. Qual foi a primeira formação? Só você e o Steve?
Penny Rimbaud:Não, colocamos todos os que fizeram parte da banda desde então, com exceção do guitarrista, um cara chamado Steve Herman, e não Phil Free, que se juntou a nós uns seis meses depois, quando o Herman se mandou para a Nicarágua. Parece que ele acabou morrendo lá em 1992.
Steve Ignorant:O Steve Herman não parecia punk. Ele era um hippie de meia idade, careca, mas, como era punk, valia tudo. Daí o Andy Palmer apareceu, e ele não tinha guitar-ra e nem sabia tocar nada, mas ele apareceu lá na casa e colocamos ele na banda. Daí veio o Pete Wright e disse que estava de saco cheio de tocar na banda folk da qual ele fazia parte. Acho que chamava Friends of Wensleydale ou algo assim. Não sei muito bem o que cantavam, talvez sobre trolls e Tolkien, esse tipo de coisa. Então a formação final eram vocês dois, Pete Wright, Gee, Andy Palmer, Phil Free, Joy De Vivre e Eve Libertine.
Penny Rimbaud:Isso. Eu entrei em contato com o John Loder e disse, “Podemos gravar uma demo?”, e ele disse, “Bom, vou arranjar uma mesa de oito canais”, foi o que ele fez, e foi assim que começamos. Ele conseguiu a mesa em parte porque quando éramos o EXIT compramos vários equipamentos bons. Usávamos umas caixas gigantes, como no show na Roundhouse. Acho que tínhamos uns 12 ou 16 alto-falantes. Tínhamos bastante aparelhagem do tempo do EXIT, que o John acabou herdando porque ninguém ligava para aquilo. Mas eu fiquei meio puto, porque ele vendeu quase tudo e comprou duas baita caixas de som Tannoy com o dinheiro. Nunca fiz nada a respeito, mas me deixou puto porque perdemos todo o nosso equipamento para que o John montasse seu estúdio. Mas era assim naquela época, não estávamos usando a aparelhagem, então ele vendeu. Então ele arrumou uma mesa de oito canais e gravamos a demo, e acho que pagamos com uma foto que a Gee deu, que era um tipo de troca bem comum. Um selo chamado Small Wonder se interessou, então gravamos pela primeira vez com eles e eles pagaram o John. Essa foi de fato a primeira gravação que ele fez em oito canais. Era basicamente só o John na sua garagem. Esse disco é oThe Feeding of the 5.000, no qual devia ter entrado uma música chamada “Reality Asylum”. Isso causou alguns problemas, não?
Sim. Foi considerada uma blasfêmia pelo promotor público, então abriram um processo contra nós. A Scotland Yard nos visitou.

Gee Vaucher, Joy De Vivre e Eve Libertine em uma lanchonete de beira de estrada em 1982.

Verdade, a noite em que a Scotland Yard foi à Dial House. Como foi isso?
Foi tranquilo, na verdade. Eles eram pessoas que normalmente davam batidas em lojas pornô imundas no Soho, lidando com umas figuras bem esquisitas, imagino. Eles apareceram na porta dos fundos e nós oferecemos chá. Hahaha. Só acho que eles não tinham ideia de que merda estavam fazendo lá. Eles não sabem disso, mas gravamos essa visita. Perdemos a fita, infelizmente, mas foi bem engraçado. Deixamos eles lá enquanto esperávamos o nosso advogado chegar para nos defender. De qualquer maneira foi ótimo, porque eles estavam lá e falavam, “Nossa, você viu esse livro? Olha isso! Beethoven e Brahms, porra!”. Eles não acreditavam na nossa coleção de discos. Só Deus sabe o que eles esperavam encontrar, porque esse lugar é lindo, e eles repararam nisso, e no fim disseram: “Bom, realmente não sei por que estamos aqui”, e eles acabaram encer-rando o processo com advertências severas de que deveríamos tomar cuidado no futuro. Era uma blasfêmia criminosa, por assim dizer, mas não oficialmente. E o selo não se recusou a lançar?
Sim. Ninguém queria prensar as porras dos discos e ninguém queria imprimir a capa. Então encontramos um cara que imprimiu as nossas primeiras capas, com as letras das músicas. Também encontramos uma fábrica especializada em música clássica para fazer nossos vinis. E prometemos às pessoas que comprassem oFeedingque enviaríamos uma gravação em fita da faixa removida se elas nos enviassem uma fita cassete, e todo dia, durante um bom tempo, ficávamos na sala de cima da casa fazendo cópias para enviar para as pessoas. Não sei quantas fizemos, mas deu bastante trabalho. E então pensamos, “Isso é muita burrice, vamos fazer um single e ver o que acontece”. E foi aí que nasceu a ética punk faça-você-mesmo da qual as pessoas falam até hoje. Vocês criaram um movimento icônico.
Sim, mas tenho que falar, na verdade eu e o Steve estávamos curtindo. Não tínhamos nenhuma ambição, interesse ou desejo de virar uma banda. E muito menos uma banda conhecida. Só queríamos nos divertir um pouco, e era o que estávamos fazendo. Quer dizer, nossas letras eram meio políticas ou agressivas porque nós dois éramos meio politizados e agressivos, só isso. E, quando os outros membros se juntaram a nós, eles estavam cientes de que não tínhamos a intenção de transformar aquilo em nada. Não existia nenhum interesse em nenhum tipo de envolvimento com as convenções musicais. O que te incomodava nas convenções musicais? Imagino que o lado comercial não seria mesmo muito atraente para um anarquista confesso.
Não tanto esse lado, mais o tipo de controle artístico. Isso é muito mais importante. Quer dizer, o lado comercial anda sozinho. O que é mais complicado é a forma de censura autoimposta que o caráter comercial traz para qualquer iniciativa. Essa é uma das razões pela qual jamais aceitei nenhum tipo de comissão. As pessoas me pediam para escrever coisas, e eu sempre dizia, “OK, eu escrevo, mas no final você pode me dar o di-nheiro se gostar, mas não vou escrever pensando na porra do seu talão de cheques”. Então sempre foi mais do que uma recusa a me envolver com negócios convencionais, porque negócios não convencionais não existem. Todo dinheiro exige bancos, os bancos pressupõem o comércio de armas, e os negociantes de armas pressupõem a existência de guerras. É impossível fugir desse ciclo. Também tinha a questão que a imprensa musical, que é muito controlada pela publicidade, ou seja, comércio, e por todos os interesses da indústria musical, estava bastante interessada na banda quando começamos a aparecer publicamente, e também peloFeeding, assim que o disco saiu. Quando se deram conta de que não queríamos nos comprometer com o esquema deles, que não estávamos dispostos a cumprir suas exigências—em outras palavras, em nos enquadrarmos—, eles nos descartaram rapidinho. Bom, não apenas nos descartaram como passaram a agir de maneira venenosa conosco, o que é a verdadeira causa do nosso histórico de cobertura negativa da imprensa até hoje. Quer dizer, compre um livro sobre o punk e você vai ter muita dificuldade em nos encontrar lá. A EMI não tentou contratá-los por uma grana alta?
Steve Ignorant:É, um cara chamado Tony Gordon. Ele era o agente do Boy George. Acho que os Cockney Rejects também se envolveram com ele e acabaram entrando numa furada. Era um monte de porcaria, na verdade, um idiota sentado atrás de uma mesa enorme e fumando um charuto. Era bem ridículo, você não botaria uma fé, parecia uma coisa saída da TV. Confesso que as minhas orelhas de moleque de bairro pobre se ouriçaram por uns 30 segundos, mas eu logo pensei, “não, não quero fazer isso”.