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Os jovens iraquianos não estão tristes com a morte de Soleimani — mas têm medo de pagar o pato

“Queremos os dois países fora daqui e não queremos o Iraque no meio dessa guerra.”
Uma iraquiana segura um cartaz no funeral do general iraniano Qasem Soleimani, do chefe paramilitar iraquiano Abu Mahdi al-Muhandis, e mais oito pessoas. Distrito de al-Jadriya, Zona Verde de alta segurança de Bagdá, 4 de janeiro de 2020. (Foto de AHMAD A

O Iraque agora é palco de uma disputa entre Irã e EUA – e seus civis acham que provavelmente terão que pagar o preço.

Nas primeiras horas da sexta-feira, Qassem al Soleimani – o general mais poderoso do Irã e chefe da Guarda Revolucionária Iraniana – foi assassinado por um drone americano quando saía do Aeroporto Internacional de Bagdá.

Milhares de iranianos tomaram as ruas no sábado para participar de sua procissão funerária na cidade.

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Depois do líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei, Soleimani era o segundo homem mais poderoso do Irã. Nos últimos quarenta anos, ele teve papéis importantes em todos os conflitos da região. Ele também era acusado de controlar uma milícia responsável pela morte de milhares de civis no Iraque, Líbano e Síria.

A milícia xiita do Iraque é conhecida como Unidades de Mobilização Popular ou UMP, e foi fundada e treinada por sua Guarda Revolucionária. Durante as primeiras batalhas contra o ISIS, elementos das UMP foram acusados de matar iraquianos sunitas inocentes.

A morte de Soleimani é o desenvolvimento mais significativo e sério das tensões entre Irã e EUA, depois de meses de agressões crescentes entre as duas potências.

Khamenei jurou realizar uma “vingança severa” pela morte de Soleimani – então é muito provável que o Iraque seja um local-chave para futuras retaliações. E onde há luta, há danos colaterais na forma de sofrimento de civis.

O Iraque tem testemunhado mais de 30 anos de conflito: centenas de milhares de pessoas morreram entre a guerra do Irã e Iraque e as invasões americanas para combater o ISIS.

Sanções, corrupção e conflito aniquilaram a infraestrutura do país. Quase toda família foi afetada pela guerra ou pela falta de serviços. A perspectiva de outro conflito, dessa vez entre dois inimigos em seu território, é uma ideia insuportável para a maioria dos iraquianos.

Uma das poucas faíscas de esperança para a juventude iraquiana são os protestos antigoverno que começaram em outubro do ano passado. Manifestantes ocuparam a praça Tahrir no centro de Bagdá, pedindo mais empregos e serviços além do fim da corrupção. Pela primeira vez em anos, um otimismo tentador tem se espalhado entre a população, enquanto as gerações mais jovens arriscam a vida para forçar uma mudança política.

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“Queremos os dois países fora daqui”

Mesmo que uma guerra por procuração provavelmente vá obstruir seu movimento por mudanças, alguns manifestantes dizem que estão felizes por Soleimani ter morrido.

“A maioria dos manifestantes sunitas e xiitas apoia o ataque”, disse Ali, um estudante da cidade de Basra, no sul do Iraque. “Soleimani era responsável por todas as milícias apoiadas pelo Irã no Iraque. Os protestos são contra a interferência do Irã, mas isso não significa que somos pró-EUA. Queremos os dois países fora daqui e não queremos o Iraque no meio dessa guerra.”

Nos últimos três meses, mais de 500 pessoas foram mortas pelas forças do governo e milícias. Mas apesar de toda a violência eles perseveram, transformando o centro do Iraque numa visão coletiva não-sectária de arte, música e resistência.

No final de novembro, a mudança parecia mais perto que nunca quando o primeiro-ministro iraquiano Adel Abdul Mahdi entregou sua renúncia. Ele continua no poder como parte do governo de transição. Os manifestantes querem um novo líder pró-democracia, mas considerando os últimos eventos, agora eles temem que ele seja substituído por uma marionete política.

Os manifestantes muitas vezes gritam slogans anti-Irã, pedindo o fim de sua interferência na política local.

Como resultados, alguns acreditam que serão alvo de ataques de retaliação de elementos das UMP e seus apoiadores.

“Nas redes sociais, pessoas estão alertado para não mostrar reações emocionais [com a morte de Soleimani], porque milícias podem usar isso para dizer que os manifestantes apoiam os EUA”, disse Ahmed, um artista de Bagdá.

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“Os manifestantes estão felizes com a morte de alguém que tinha as mãos sujas com o sangue de centenas de manifestantes nos últimos meses, mas, ao mesmo tempo, não querem escolher um lado, queremos um país liderado por nosso povo, sem interferência de fora”, ele disse.

O governo iraquiano acusou os EUA de uma quebra séria de soberania, e agora encara cada vez mais pressão de algumas facções políticas para expulsar as tropas americanas do país.

Enquanto isso, os EUA mobilizou cerca de 3 mil soldados extras para o Oriente Médio, com alguns deles sendo mandados para o Iraque. Os iraquianos ainda sentem a dor do legado violento dos EUA, e soldados voltando para sua região não é um desenvolvimento reconfortante para os locais.

Enquanto o Iraque continuar o epicentro da batalha entre Irã e EUA, a economia não terá oportunidade de se recuperar, e haverá mais instabilidade política. Para os iraquianos, esse é mais um revés para sua luta por um futuro livre de violência e corrupção.

O impacto de longo prazo dos últimos eventos é tão impossível de prever quanto a morte de Soleimani.

Ninguém poderia ter antecipado que o ano-novo testemunharia o fim de um homem que muitos consideravam invencível. Mas entre toda a incerteza, o que fica claro é que o vencedor desse conflito dificilmente será o povo iraquiano.

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