Liberação negra e o poder da violência armada em 'Mafia 3'
'Mafia 3'. Imagem: 2K Games/Divulgação.

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Liberação negra e o poder da violência armada em 'Mafia 3'

Game mostra por que radicais negros dos anos 1960 pegaram em armas para proteção.
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

“A coisa mais fácil e simples que podemos fazer é desistir”, diz Charles Laveau, apresentador da rádio pirata de New Bordeaux de Mafia 3, numa Nova Orleans fictícia de 1968. “Deixar tudo como está e fazer exatamente como nos mandaram: ser crioulos bons e obedientes. Mas que tipo de vida vamos ter então? A violência se vai, mas junto com nossa dignidade, nosso orgulho.”

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A preocupação de Laveau é clara, e apesar de o jogo se passar no final dos anos 60, ela ressoa mesmo hoje – é só perguntar para o pessoal que aplaudiu no cinema quando dizem em Pantera Negra que “a morte é melhor que a prisão”. Mas Laveau não está simplesmente defendendo a morte, ele está se juntando a uma tradição de radicalismo negro que defende a resistência armada contra opressão racial e colonial, e entre suas palavras e as ações do protagonista Lincoln Clay, Mafia 3 nos leva a considerar um aspecto do debate sobre armas que muitas vezes fica de lado.

Muito do debate recorrente sobre armas nos EUA se centra na rigidez da Segunda Emenda, que garante o direito do cidadão de ter e portar armas, e originalmente visava proteger milícias DIY durante o período colonial. Os defensores do controle de armas tendem a falar sobre como os fundadores nunca previram a invenção dos fuzis de alto poder, ou como checar antecedentes deveria ser exigido para a compra de armas. Os lados negativos ignorados da checagem de antecedentes, como a vilificação de doenças mentais e muçulmanos, revelam perspectivas estreitas do assunto entre os ativistas.

Essas visões estreitas não acabam aí: Não só o controle de armas é uma panaceia de eficácia questionável, como também ignora a história política das armas nos EUA. E ignora as perspectivas das pessoas pobres, colonizadas e não brancas no país, que continuam a experimentar as realidades dessa história, e para quem entregar as armas para um estado letal é uma perspectiva pouco atraente para dizer o mínimo. Chegar à raiz dessa perspectiva significa entender o papel que a Segunda Emenda teve em reforçar a violência supremacista branca e colonialista neste país.

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Still de 'Black Panthers: Vanguard of the Revolution'. Imagem: PBS/Reprodução.

Em Loaded: A Disarming History of the Second Amendment, Roxanne Dunbar-Ortiz escreve que “…quando armas de fogo não eram mais necessárias para se apropriar das terras dos povos indígenas, armas se tornaram uma representação da dominação racista atual — como um troféu de guerra — não só para povos nativos em seus territórios, mas para os afro-americanos e o mundo”. Introduzida enquanto os colonos ingleses atacavam comunidades indígenas para capturar e especular sobre suas terras roubadas, o propósito da Segunda Emenda era ajudar a apoiar o direito de fazer isso com as ferramentas mais eficientes à disposição. A lei protegia milícias então envolvidas em patrulhas de escravos, criadas para reforçar a escravidão e limitar o movimento livre dos negros antes e depois da guerra civil.

Em 1966, Huey P. Newton e Bobby Seale decidiram testar os limites racistas tácitos da Segunda Emenda, que sempre supôs que o dono de arma americano é branco e homem, e começaram o Partido Pantera Negra para Autodefesa. Apesar das mudanças legislativas trazidas pelos movimentos de direitos civis do sul, Newton e Seale, reconhecendo as raízes sangrentas do país, o legado da escravidão e a violência diária do estado sobre eles, decidiram que autodefesa armada era uma declaração mais poderosa para o estado e para as comunidades negras que eles esperavam organizar. Como Frantz Fanon, uma grande inspiração para os Panteras Negras, escreveu: “A mobilização das massas, quando ascenderam da liberação da guerra, introduziu na consciência de cada homem as ideias de uma causa comum, de destino nacional e uma história coletiva”.

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Os Panteras emergiram de uma situação instável e opressiva, com base na deprimida e desindustrializada Oakland, Califórnia. Na época, a força policial de Oakland tinha apenas 4% de oficiais negros (Phil McArdle, “Oakland Police Department History 1955-1993”), e regularmente revistava, assediava, batia e atirava contra os moradores negros pobres de Oakland. As revoltas Watts em Los Angeles tinham acontecido apenas alguns anos antes, as revoltas de 67 em Detroit um ano depois. Nessa mistura entraram os Panteras Negras, armados com pistolas, espingardas e rifles, andando de cabeça erguida e encarando os policiais com um swagg e uma dignidade que chocaram a todos, o estado principalmente.

Os Panteras estavam usando a mesma exibição de força e armas que historicamente tinha sido usada para oprimir pessoas pobres não brancas e a tornando um símbolo de desafio, ícone da resistência. Como Newton escreveu: “Tem um mundo de diferença entre 30 milhões de negros desarmados e submissos e 30 milhões de negros com armas de liberdade e defesa, e métodos estratégicos de liberação”.

Mafia 3 emprega a mesma energia na fantasia empoderadora, abordando o espírito militante e pró-armas de grupos como os Panteras com sua escolha de herói (um militante veterano da guerra do Vietnã negro) e cenário (uma cidade do sul fervendo com racismo em 1968). Enquanto Mafia 3 se baseia confortavelmente no estilo de jogo onde atirar em pessoas é o principal método de interação, o videogame, através de seu herói black power e cenários dos anos 60, parece uma visão diferente e rebelde de para que as armas deveriam ser usadas, e quem deveria portá-las. Armas geralmente são empregadas como ferramentas de reforço nos videogames. Jogos de tiro militar lideram esse grupo, mas muitos desses jogos envolvem atuar para o estado. The Division da Ubisoft, um exemplo infame, apresenta um grupo de soldados paramilitares fascistas, enviados para matar saqueadores e fugitivos numa Nova York sem lei, a fantasia definitiva da extrema-direita. Mesmo jogos onde seu personagem está do outro lado da lei, como na série Grand Theft Auto, apresentam transgressão, mas a serviço dos mesmos objetivos capitalistas que motivam o resto da sociedade.

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Mas em New Bordeaux de Mafia 3, o estado legal e próprio das coisas é insustentável para Lincoln Clay e aqueles em sua comunidade. Seja por causa de membros da KKK nos subúrbios próximos, ou policiais racistas exageradamente vigilantes nas ruas, Clay está em perigo permanente, um estranho cercado em terreno hostil. Ele começa o jogo numa trilha normal estilo GTA de sucesso criminal, mas é abruptamente empurrado para fora disso com uma bala e um epíteto. O mundo quer que ele desapareça, e seu curso no jogo envolve reclamar violentamente seu espaço de volta.

Invadir reuniões da KKK e atirar em viaturas da polícia é libertador e transgressor, mesmo que fechado na segurança dos limites do escapismo de um videogame. Mas isso continua transgressor pelas mesmas razões que os Panteras Negras posando para fotos com fuzis e lanças africanas eram: isso desafia o entendimento tácito de que a Segunda Emenda é só para brancos, que uma “milícia bem regulada” também pode definir um bando de irmãos e irmãs negras do gueto, incluindo veteranos, estudantes e ex-detentos.

O debate moderno sobre o controle de armas não leva em consideração a experiência dos homens e mulheres negros pobres lidando com a polícia, mesmo hoje. Com os policiais em muitas cidades americanas dispostos a abrir fogo ao menor sinal de provocação, e que veem os negros como mostrando “tendências violentas” naturalmente, é tão estranho assim nos preocuparmos em entregar nossas armas para autoridade que parece muito feliz em usá-las contra você?

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Parte do apelo de Mafia 3 é sua habilidade em apresentar as indignidades e frustrações diárias que podem levar alguém a se sentir assim. Passe por um policial na rua e ele vai olhar na sua direção, te dizer para olhar por onde anda e encerrar a conversa com um “garoto”, mesmo com Clay sendo vários centímetros mais alto que ele. Entre na loja errada e a polícia é rapidamente chamada por você ousar ultrapassar a porta com um homem negro num estabelecimento só para brancos. E quando a polícia chega, é com as armas sacadas e engatilhadas.

Isso se encaixa bem no paradigma que muitos jogos violentos empregam: Obrigar o jogador a se defender jogando o personagem num ambiente hostil, seja literalmente no inferno, numa distopia do futuro ou num exercício militar em outro país. Isso serve como uma cobertura ética para todas as pessoas que você vai matar.

Mafia 3 se separa disso em seus elementos empoderadores e fantásticos, e no senso de dignidade restaurada dessa fantasia. Afinal, tem coisa mais satisfatória que poder socar um balconista que diz que sua loja não é lugar para o seu tipo, que está ameaçando chamar a polícia para você? Há alguma forma de escapismo mais apta, no estado atual da política americana, do que poder dançar no capô de uma viatura como o escritor Aaron Stewart-Ah faz em seu tuíte sobre Watch Dog 2 (um jogo com uma promessa própria de escapismo e empoderamento, mas que comete algumas gafes imperdoáveis com o tropo no caminho):

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É revelador, e desanimador, ver como os esforços dos Panteras Negras para transformar sua própria fantasia em realidade acabaram. Em “The Revolution Has Come”, Robyn Spencer lamenta que para os Panteras “as armas se mostraram mais voltadas para eles do que eles as voltaram para outros”. Os Panteras eram o principal alvo da notória operação COINTELPRO do FBI, que visava minar e desmantelar organizações ativistas negras (o precedente claro por trás de Sessions pedindo vigilância para extremistas de identidade negra). Muitos membros dos Panteras, como Bobby Hutton em Oakland, e Fred Hampton em Chicago, foram mortos pela polícia. Muitos foram acusados de crimes e encarcerados, incluindo os dois fundadores do partido, Newton e Seale, em vários momentos. A velocidade e eficiência com que o Mulford Act proibiu o porte de armas carregadas, apesar de limitar severamente os direitos de armas de todos os cidadãos da Califórnia, aponta para a resposta frenética do estado à suposta ameaça de homens e mulheres negros se armando, como os brancos do resto do país faziam. Até hoje, 61% dos donos de armas são homens brancos.

A maioria das mídias reforçam a imagem de que armas são ferramentas que devem pertencer solenemente ao estado: o governo, a polícia e o exército. Isso inclui os videogames, que apesar do verniz ousado e atitudes punk rock falsas são conservadores sobre o que é valorizado em suas narrativas violentas, como qualquer outra forma de arte mainstream. Mafia 3, mesmo evitando muitas das motivações políticas da época, ainda me permitiu existir fora das fronteiras normais do heroísmo, me permitiu levantar a cabeça como um homem negro e me vingar quando menosprezado, em vez de dar a outra face como sempre foi esperado dos negros.

Desconfiar do estado e suas forças, como a polícia, vem de um lugar muito real. Essa desconfiança vem de viaturas te parando quando você está andando para casa sozinho, ou só passando lenta e ameaçadoramente por você. Também vem de ver policiais não serem presos depois de cada assassinato; tendo seu pagamento suspenso por um tempo, e sendo discretamente reintegrados alguns meses depois. O peso dessa realidade é grande, e jogar videogames que te colocam como uma versão sem responsabilidades de um superpolicial não alivia muito isso.

Desarmamento total pode parecer tão fantástico quanto uma revolução militante negra, considerando quão impregnado este país é com o legado do colonialismo, genocídio escravidão. As armas tiveram um papel em cada passo do processo, e ameaçar sua disponibilidade para americanos brancos só aumenta as vendas. Mas os Panteras mostraram, e Mafia 3 reflete, que é possível tirar a fantasia de empoderamento e mitos de justos dos colonizadores que capturaram esta terra. O potencial organizado dessa fantasia para construir movimentos e ajudar uns aos outros nunca deve ser desconsiderado.

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