'This Is America' não é só uma crítica, é uma afirmação

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'This Is America' não é só uma crítica, é uma afirmação

Ao contrário do que foi dito exaustivamente nas redes sociais nos dias anteriores, "This Is America" não é apenas uma crítica cega e sem qualquer consciência de si da música pop.

Na madrugada de sábado pra domingo, depois de ser ambos apresentador e convidado musical do Saturday Night Live, Donald Glover começou o que se tornou a maior conversa em cima de um clipe desde "Formation", da Beyoncé. Sob sua alcunha rapper Childish Gambino, Glover lançou o clipe de "This Is America", um quase-plano-sequência distópico e violento de quatro minutos de duração, dirigido por Hiro Murai.

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Murai também é responsável por algumas outras obras-primas, como "Hive" do Earl Sweatshirt e "Never Catch Me", parceria entre Flying Lotus e Kendrick Lamar. Ele e Glover já haviam trabalhado juntos em alguns outros clipes do Gambino, como "3005" e "Sweatpants", e em alguns episódios de Atlanta, série roteirizada e estrelada pelo músico. Em "This Is America", a dupla aponta para toda a cultura racista dos Estados Unidos: armas, violência policial, as leis segregacionistas de Jim Crow, o estereótipo do homem negro criminoso.

Durante a semana, muitas análises semióticas e estéticas foram feitas sobre a simbologia do clipe, como a dança de Glover, que seria um artifício para distrair do caos e violência que ocorre no fundo e uma metáfora pra cultura pop e o hip hop omisso; ou o momento em que ele atira no coral que o acompanha, uma referência ao Massacre da igreja de Charleston em 2015; ou quando, atrás de todo o caos, aparece um cavalo branco carregando uma figura vestida de preto — a morte?

Mas nem tudo é crítica em "This Is America". Dentro de toda a destruição que ocorre em volta dele, Gambino se recusa a se colocar como figurante passivo ou usar sua arte como mero instrumento político. Durante aqueles quatro minutos, Donald Glover está se afirmando como homem negro e, mais do que isso, como um artista negro.

Pra sacar isso, é preciso conhecer um pouco da carreira de Glover. Nascido na Califórnia, mas criado nos subúrbios de Atlanta, centro do tráfico de drogas no sul dos Estados Unidos, Glover começou como ator e roteirista mas aos poucos foi trazendo à frente sua carreira como rapper com o lançamento de Camp em 2011 e o definitivo because the internet, em 2013. O trabalho de Gambino sempre foi ambicioso, mas nunca deixou de ser pop e um fruto de sua época: o próprio Glover chegou a afirmar que seus primeiros sons pareciam "uma paródia do Drake".

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Com a popularidade do trampo, Glover aproveitou para trabalhar em Atlanta, uma série de comédia/drama que, da mesma forma que "This Is America", retrata algumas das muitas realidades de um homem negro nos Estados Unidos. Atlanta talvez seja o que nos dá mais dicas para entender o que realmente se passa no clipe: na série, Glover passa longe de negar, rejeitar ou se colocar distante da violência da cidade em que foi criado. Ele pensa em si mesmo — e qualquer outro homem negro — como parte ativa daquela cultura.

Isso é mais ou menos o que se passa em "This Is America": o caos está sempre cercando Glover, mas ele se afirma como participante daquilo que acontece à sua volta. É ele quem segura a arma que mata o homem tocado violão, e é ele quem massacra o coral da igreja. Ao se recusar a cair no automatismo de rejeitar o estereótipo atribuído ao homem negro e negar a cultura da violência, ele aponta o dedo de volta na cara dos que esperam que a arte negra seja sempre crítica e ajustada a uma cultura branca. Glover toma de volta seu direito de ser niilista.

Isso fica claro, também, pela participação dos cinco rappers que fazem os ad-libs na faixa: além de Young Thug, que também canta nos segundos finais da música, 21 Savage, Quavo (do Migos), BlocBoy JB e Slim Jxmmi endossam Gambino com os sons que os deram a pecha de "mumble rappers".

O site FanSided sugere que Glover esteja fazendo uma alusão ao estado formulaico do hip hop, mas eu não acredito que esse seja o caso. Esses artistas que acompanham o rapper são os que costumam ser acusados de ignorar o estado político dos Estados Unidos ao cantar sobre armas, drogas e dinheiro. Ou seja, exatamente a realidade em que está inserido um homem negro norte-americano. Ao chamá-los pra engrossar seu coro, Glover os apoia e, de novo, se coloca como artista que é parte ativa do contexto em que vive.

Tudo isso é reafirmado em diversos momentos do clipe, mas talvez tenha seu ápice nas cenas finais, em que Gambino dança em cima do carro. Ao contrário do que foi dito exaustivamente nas redes sociais nos dias anteriores, "This Is America" não é apenas uma crítica cega e sem qualquer consciência de si da música pop. Tanto a música quanto seu clipe têm um tom muito mais afirmativo do que negativo: Glover está se colocando ao centro da cultura, da violência, da negritude. Está se afirmando como participante ativo daquilo que o cerca, e deixando claro que, como artista, pode fazer o que quiser.

No fim do clipe ele corre — fica difícil de saber se dos outros ou com os outros – porque, como ele já mostrou tantas outras vezes, também não há escape da violência, do racismo e do caos. Mas há a opção de se posicionar afirmativamente sobre sua própria cultura, e é isso o que Glover faz em "This Is America".

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